Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Todas as mulheres de Rubem Fonseca

Está na praça um novo livro de Rubem Fonseca, Elas e outras mulheres. A mídia, com as exceções de praxe, faz o de sempre: entrega a jejunos literários o livro de um de nossos maiores escritores. E justamente uma coletânea de contos, o gênero em que o autor vem levando nossas letras às suas fronteiras, desde 1963, quando fez sua estréia com Os prisioneiros. Não ia escrever sobre o modo como o novo livro foi recebido – um pouco, para dar um tempo, já que escrevi dezenas de artigos e três livros sobre sua obra – mas, depois de ler alguns artigos, achei que os leitores merecem que fixemos outros parâmetros e que enfim eles leiam Rubem Fonseca iluminados por visões diversas.


Um comentarista pergunta, tratando da iniciação sexual de um menino por uma prostituta e comparando a personagem Alice, de Rubem Fonseca, à famosa Fräulein que faz coisa semelhante em Amar Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade:




‘O pai de Fonseca sentiria o mesmo orgulho? Pouco provável. O homem de Fonseca é chauvinista, orgulhoso de sua ignorância e sempre pronto a tratar a mulher com pulso firme – o suficiente para quebrar seu maxilar’.


Ao comentar Belinha, o segundo conto (todos os 27 contos têm como títulos nomes de mulheres), novo deslize, quando compara a personagem de ficção com Suzane von Richthofen: ‘O desfecho só não é igual porque o assassino, homem de princípios, acha incorreto alguém querer matar pai ou mãe’.


Diz mais o resenhista:




‘Sua narração brutal, artificialmente construída para chocar burgueses escandalizáveis, não dispensa palavrões ou monótonas descrições de acrobacias sexuais – coerentes com a imaginação e nostalgia de um senhor de 81 anos’.


Ora, em nome do filho, lá vem pau no pai. E em segundo lugar, dos três momentos decisivos de uma narrativa – abertura, tramas e desfecho – justamente o último é que dá o sentido de tudo o que antecede.


Prêmios literários


Reprovem-se também com a devida severidade a arrogância e o preconceito de resenhistas que misturam narrador e autor e atribuem à idade um peso que ela não tem.


Ademais, que narração não é artificialmente construída? A literatura é um artifício. Um fascinante artifício, arrebatador. Consiste em fazer parecer o que não é, na mesma medida em que a nem a fotografia é o fotografado!


Quando Rubem Fonseca lançou Feliz Ano Novo – que ficou proibido de 1976 a 1989, sendo liberado depois de rumoroso caso judicial, já que o autor processou a União, que então se viu obrigada a produzir a posteriori as razões da censura –, um conhecido do autor reprovou-lhe o conto-título por implausível. Achava que aquele bando de marginais não poderia invadir uma festa e submeter todo mundo. Pois lhe aconteceu algo muito semelhante algum tempo depois.


Os escritores não se jactam de adivinhos, mas eles são antenas da raça, como dizia Paulo Leminski, e têm um quê de profecia no que escrevem, ainda quando suas vidas contrariam seus livros, como aconteceu a Stefan Zweig, que publicou um livro otimista sobre o Brasil e se suicidou. (Bem, é preciso muito cuidado para escrever sobre Zweig no território onde pontifica Alberto Dines…).


Quanto às restrições ao léxico de Rubem Fonseca, pior ainda. Aqueles que reprovam os palavrões do texto equivocam-se mais uma vez: certamente não conseguirão mostrar que eles são desnecessários ou incoerentes, pois até mesmo o verbo ‘f….’, hoje na boca de crianças de pré-escolas, já sem o peso de épocas recentes, não escandaliza mais ninguém. Sabe-se que, neste caso específico, o verbo traz a neurose sexual na linguagem, pois se assim não fosse, designando, não uma extraordinária desgraça, mas o ato amoroso, seria natural que fosse respondido com ‘que o senhor também se f…., o senhor e sua família, que todos alegremente se f….’.


O escritor sabe que as palavras dizem mais do que aparentam dizer ou que fingem dizer. E os comentaristas precisam tratar com menos ligeireza um escritor que domina como poucos o ato de escrever. Um pouco de modéstia a jornalistas não faria mal. Hoje, também literariamente, são muitos os que desqualificam, denunciam, agridem, julgam e condenam.


Sabe-se também que em nossa imprensa é usual que as penas sejam perpétuas. São poucos os que têm coragem de reconhecer seus erros. ‘Voltemos à modernidade. Mário de Andrade pode ser um bom começo’, disse um dos comentaristas. Sim, mas voltemos também a comentaristas mais cuidadosos. O certo é que ler Rubem Fonseca não exclui outras leituras, de modo que se pode ler quem se queira. E os leitores, que cada vez lêem menos jornais, cada vez lêem mais Rubem Fonseca.


Sem querer ensinar padre-nosso a ninguém, lembro que o autor arrebatou recentemente dois grandes prêmios literários: o Juan Rulfo e o Camões. Lendo certas resenhas, o leitor pode achar que os dois júris se enganaram e premiaram um autor medíocre. Será que os resenhistas consultam pelo menos a ‘cozinha’ do jornal em que trabalham?


Ato de ler


Elas e outras mulheres será mais bem entendido à luz do percurso do autor até aqui. Parece que está todo mundo enganado: os leitores que o receberam bem em outras línguas, aqueles que o premiaram, aqueles que defenderam teses sobre sua produção literária e principalmente aqueles que agora, como sempre fazem com os livros do autor, levaram também estes contos para as listas dos mais vendidos. Isso é tanto mais significativo por sabermos que poesia e conto são os patinhos feios dessas listas. É raro que ali apareçam.


Outros, justiça se faça, tiveram mais cuidado. Não se deixaram envolver pela pressa de ‘dar primeiro’, usual em nossa imprensa.


O texto de Mànya Millen, em O Globo, por exemplo, é de uma correção ímpar:




‘Um novo livro de Rubem Fonseca sempre causa um certo frisson. Toda a imprensa recebe o exemplar no mesmo dia e devora-se o conteúdo com pressa para saciar logo a curiosidade dos fãs do escritor. (…) Ainda vamos apreciar o mestre com calma, como ele merece, para oferecer aos leitores uma avaliação mais precisa do conjunto’.


Ser doutor em letras pode enganar. Conhecemos bem algumas coisas, ignoramos muitas outras. Mas Rubem Fonseca é o autor que menos ignoro. Quando propus sua obra para tese, em 1977, não fosse o apoio corajoso que tive de Guilhermino César na UFRGS, em Porto Alegre, não teria conseguido. O projeto foi recusado pela coordenação de Letras. Foi o orientador quem o bancou. Depois, no doutorado, na USP, em São Paulo, embora não tenha tido a mesma dificuldade, tive outras: ali havia professores que não admitiam que alguém conhecesse Rubem Fonseca melhor do que eles. Quando vi um de meus professores assinar a apresentação dos Contos Reunidos do autor, pensei em avisar: falta um conto! Mas achei que ia ser mal entendido e deixei passar.


É um conto que não está lá e é muito, mas muito, muito bem escrito e tem um tema originalíssimo, destoante das outras narrativas de Rubem Fonseca e que lembra a Nau Catarineta. (Aliás, que critérios a TV Cultura utilizou agora para reapresentar aqueles belos teleteatros dos anos 1970? Nem Nau Catarineta nem o esplêndido trabalho que Antunes Filho fez sobre um dos meus contos, com Karim Rodrigues no papel principal, estão entre os que foram programados para se ver de novo.)


Será que por trás dessas restrições a um autor tão talentoso como Rubem Fonseca não está uma certa birra da imprensa, inconformada com o desdém que ele lhe dedica, pois que, procurado, sempre nega entrevistas?


Quanto a este leitor contumaz de Rubem Fonseca, gostei muito de Ela e outras mulheres, (sobre ele vou escrever em outra oportunidade). Principalmente porque, à semelhança de Dalton Trevisan (também degustei com prazer que só a boa literatura nos dá o mais recente Macho não ganha flor), ele não se repete. Não é que não se repetiu agora, não se repete nunca. Sinceramente, com as devidas licenças prévias, quem se repete são os resenhistas, que livro vem, livro vai, dizem mais ou menos as mesmas coisas, ao passo que o escritor veio com um NOVO livro. Qualquer lista dos melhores lançamentos de 2006 deve começar por estes dois livros extraordinários. Que vitalidade, que criatividade, que versatilidade nesses dois contistas!


Concluo citando um trecho que pode servir de metáfora ao ato de ler, extraído do conto Olívia:




‘Acho que é um vício profissional, essa coisa de ficar alerta, talvez pressinta uma ameaça em toda pessoa que passa perto de mim. Não é paranóia, e, se for, graças a ela já escapei duas vezes de me foder, e numa delas o cara que ia me ferrar estava vestido de padre, mas eu chumbei o puto antes. Peguei também quem fizera a encomenda, um sujeito que achava que eu tinha roubado dois caminhões de contrabando dele. Eu disse, com a pistola enfiada no nariz dele, olha aqui, seu cretino, eu não me meto em contrabando, sou matador profissional, é isso que eu faço, não faço mais nada, entendeu, é minha única fonte de renda, entendeu?’.


No próximo livro de Rubem Fonseca, pautem profissionais, por favor! Os leitores agradecem.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br