Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Tramas, conflitos, escolhas e bifurcações

‘Romances sem personagens, personagens sem conflito, ações sem enredo, enredo sem pé nem cabeça – e depois os autores se queixam que sua obra é sem leitores.’

A margem imóvel do rio (Porto Alegre, Editora L&PM), de Luiz Antonio de Assis Brasil, é um dos dez livros finalistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, o maior do país, em segunda edição, e um dos poucos romances que chegaram à reta final.

Num universo que visava selecionar os grandes lançamentos de mais de mil editoras nacionais, a Companhia das Letras está presente com quatro dos dez finalistas: Paulo Henriques Britto, Sérgio Sant’Anna, Chico Buarque e Bernardo Carvalho. Uma pequena editora de Curitiba, a Travessa dos Editores, comparece com uma peça de teatro de Décio Pignatari. A Landy, a Planeta, a 34 e a Perspectiva, com um livro cada uma, completam o quadro.

Como de hábito, o escritor gaúcho situa as tramas num passado um pouco mais remoto, cujos traços principais a História já fixou. No caso, é o Brasil de Pedro II. Um historiador é enviado do Brasil meridional para descobrir a verdadeira identidade de Francisco da Silva, um estancieiro gaúcho. Lá se depara com um mundo em tudo diferente do Rio de Janeiro.

O contexto histórico é apenas o pano de fundo de mais um romance magistral. O leitor que já conhece a prosa do autor sabe que tem diante de si um romance com tramas, personagens, conflitos, dramas, escolhas, caminhos, bifurcações. Quem ainda não o conhece, fica surpreso: por que a mídia oculta tanto bons escritores como Luiz Antonio de Assis Brasil enquanto abre páginas e páginas para mediocridades que destilam declarações, quando não estapafúrdias, cobertas de banalidades que já se tornaram usuais?

Autor de dezesseis romances – nenhum dos concorrentes que o acompanham tem uma obra romanesca vasta e complexa como a sua – Luiz Antonio de Assis Brasil, apesar de autor reconhecido no exterior e nos círculos bem informados como um dos grandes romancistas atuais, é insistentemente ignorado pela mídia. E não é de agora. Estreou em 1976! Com vários romances transpostos para o cinema, premiado no Brasil e no exterior, ele segue sua vida de professor na PUC de Porto Alegre e grande incentivador de novos talentos nas oficinas literárias que coordena há vários anos.

De Gramado, onde costuma refugiar-se nos fins de semana, ele concedeu ao Observatório a entrevista que se segue.

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Você tem uma ficção fortemente vinculada ao Brasil meridional e a seu passado histórico. Mas quem escreve um romance, escreve uma história de amor, você concorda? O fato de situar personagens e tramas no pretérito foi uma opção consciente ou algo que se foi impondo pelas complexidades do ofício?

Luiz Antonio de Assis Brasil – Sim, quem escreve, escreve uma história de amor. E ainda mais: escreve-a para quem ama. Quanto à segunda questão: de fato, a maioria dos meus romances e novelas dão-se no passado. Bem entendido, o passado é sempre um tempo ‘presente’, isto é, foi experimentado como presente por quem o viveu. O tempo ‘atual’, que um escritor pretende captar, já é passado no instante em que é reduzido à escrita. Resumo: todos os romances são obras do passado – para uns, mais passado distante; para outros, mais próximo, mas sempre serão passado.

Você fez um percurso intelectual singular entre os escritores brasileiros. Recebeu sólida formação humanista nos primeiros anos, em escola dos jesuítas em Porto Alegre. Depois veio o viés da docência universitária, passando pelo doutorado, com experiência administrativa na Prefeitura de sua cidade, além de sua participação, por quinze anos, na Orquestra Sinfônica. Não lhe vou perguntar se tais coisas influenciaram sua prosa, afinal temos que evitar a redundância, mas certamente os leitores têm interesse em saber a medida de tais influências, se houve predomínio de uma atividade etc. O que você quer dizer sobre o inevitável tema das influências do meio em que vive o escritor?

L.A.A.B. – O ‘que’ escrevo e ‘como’ o escrevo derivam da minha trajetória enquanto ser humano e enquanto leitor aplicado. A cada livro sempre tento obter uma impossível síntese de minhas experiências. Sendo impossível, cada livro é uma tentativa e um malogro. Daí que já são 16; um dia morrerei, claro, mas com a certeza de que nunca escrevi aquele livro que tanto procurei. Restam fragmentos: a música como tema romanesco e busca de sonoridade frasal; as estruturas de poder como reminiscência de meus percalços pela administração; um certo cacoete pedagógico a revelar o professor. Enfim, sou condenado a ser eu mesmo.

Não há livro seu em que não encontremos vestígios de uma figura literária solar para você, que é Eça de Queiroz. Explico melhor a questão: são visíveis o cuidado com a técnica narrativa, a fixação de marcas nos personagens que criam identidades singulares para eles e principalmente o rigor com a língua portuguesa. Por que ele marca tanto a sua ficção? Entre tantos autores que você leu, o apego a Eça tem alguma razão particular, pessoal?

L.A.A.B. – Talvez. Foi de Eça o primeiro romance que li: A relíquia. Eça ensinou-me tudo: uma precária ironia, a forma de descrever personagens com duas palavras, a estrutura do romance e, em especial, o sentido de causa e efeito que deve fundamentar qualquer narrativa. Alguém já disse que se a personagem deve morrer de tuberculose pulmonar no décimo capítulo, deve tossir um pouco no quinto, ter alguma febre no sétimo, e assim por diante. Não obedecida essa regra, o romance vira um disparate. Eça é, sim, o primeiro; mas com o suceder das leituras percebi que outros grandes autores seguiam os mesmo princípios. Mas Eça tem a primazia. Quanto ao rigor com a língua portuguesa, penso assim: é muito mais trabalhoso escrever de maneira desleixada. Por outro lado, ‘escrever certo’ sempre dá mais resultados, em termos de exatidão do que desejamos escrever. Depois que se pega o jeito, isso se incorpora a nosso modo de narrar e nem pensamos mais no assunto.

Mas Eça não escreveu apenas Os Maias, aquela perfeição, talvez o ponto mais alto de sua obra. Machado de Assis, por exemplo, provando, como disse, ‘a lealdade da minha crítica’ e ‘a sinceridade da minha admiração’, fez duras restrições ao escritor português quando da publicação de O primo Basílio. Você acha que no Brasil – a resenha de Machado é de 1878 – tanto tempo depois, os escritores aprenderam a conviver com a crítica? Há algum tipo de desinteligência entre o criador e o intérprete, o resenhista, o autor de teses, de ensaios, enfim entre quem cria e quem comenta a criação? Em resumo, há ambiente intelectual para uma crítica sincera e dura como aquela?

L.A.A.B. – Hoje em dia, o autor cola-se à obra, e não se fala de um sem falar no outro. O autor deve estar muito presente, ostentando na mídia aquilo que realiza na solidão e no silêncio. É a tal sociedade do espetáculo. Quanto à crítica, ela por vezes entra no mesmo esquema, e confunde as coisas. Contudo, é a crítica que areja a obra e a contextualiza. Machado foi duríssimo com o Eça de O primo Basílio e, parece-me, tinha algo de razão, especialmente quando denuncia a falta de vida interior das personagens – ressalva feita à Juliana, claro. A carta que Eça escreveu ao Machado, em resposta, é um primor de elegância. Sabe-se lá, entretanto, se é verdadeira. Um fato é certo: preservou-se a aparência de respeito entre os dois maiores prosadores do século. Isso, hoje, no século das vaidades acesas, seria raríssimo.

As oficinas literárias que você ministra na PUC, em Porto Alegre, destacam-se como experiência pioneira que revelou autores e produziu leitores. Este trabalho é parte do convívio intelectual com outros docentes ou é espécie de extensão, de algo a mais que você faz por sua condição de escritor-professor?

L.A.A.B. – Creio que essas oficinas – que, aliás, entram no vigésimo ano de funcionamento ininterrupto – derivaram da conjugação da profissão de ensinar e do ofício de escrever. Não sei qual veio antes. Nisso sou meio anfíbio: há momentos em que sou escritor a pleno; noutros, o professor prepondera; mas é assim com todo mundo. Com respeito a isso, tenho constatado que, lentamente, assistimos a uma ‘academização’ da literatura: os escritores saem, de modo crescente, da Universidade – e esse é um fenômeno universal. Daí porque certas obras – nominadas de pós-modernas – trazem a marca de uma estilização abstrata e própria para que se lhes aplique tal ou qual teoria, especialmente a teoria da moda. Se havia antes o escritor que escrevia para escritores (o famoso writer’s writer), hoje isso mudou: grande parte dos escritores escreve para os teóricos. O público começa a cansar-se desse esquema: romances sem personagens, personagens sem conflito, ações sem enredo, enredo sem pé nem cabeça – e depois os autores se queixam que sua obra é sem leitores.

Há um evidente salto de qualidade depois de Um quarto de légua em quadro e A prole do corvo, seus dois primeiros romances, saudados por crítica e público com entusiasmo. Um dos resenhistas, aliás, foi o então futuro ministro Tarso Genro, que em 1978 o comparou a Thomas Mann. O senhor parece ter sido o único discordante, pois em seguida mudou toda a carpintaria. Houve algum incidente ou projeto que o fez mudar os rumos de sua prosa?

L.A.A.B. – Creio que o incidente foi a consciência de que deveria escrever melhor, escrever de maneira decente. Ademais, qualquer criador está sempre mudando no plano formal; é o caminho da sobrevivência. Gostaria de ser julgado pelos livros que escrevo agora, mais uma tolice, é claro.

Uma das cenas mais bem narradas de sua prosa – e são tantas – é quando em Manhã transfigurada – sargento Miguel, marido de Camila, descobre que a mulher perdera a virgindade com um peão anônimo. Ele se sente traído, como se a propriedade ganhasse autonomia diante do proprietário, como observou, se não me engano, o crítico Antônio Hohlfeldt, hoje vice-governador do Rio Grande o Sul. E vem o desfecho trágico do que o marido considerou traição. Você utilizou conscientemente a linguagem cinematográfica, com simultaneidades de mirantes narrativos, ou a história lhe veio inconscientemente com aquele ritmo?

L.A.A.B. – Não me recordo bem, mas imagino que minhas decisões tenham sido conscientes. É um método de que não me afasto. Isso é necessário, no romance.

Em Perversas famílias, um republicano empedernido constrói um castelo medieval e se casa com uma condessa austríaca. Em As virtudes da casa, a chegada de um estrangeiro, o naturalista francês Félicien de Clavière, muda na família de coronel Baltazar, misto de estancieiro e chefe militar. E você volta ao tema do adultério, indispensável ao romance para fixar os conflitos. Micaela, até então esposa fiel, sente forte atração pelo novo homem que se torna seu hóspede. Mas você contempla o viés de vários personagens, ao contrário, por exemplo, de Machado, que em Dom Casmurro fixa-se na versão quase exclusiva do marido, cujo relato tudo filtra. Como observou com muita propriedade o escritor Sérgio Faraco – aliás, um dos maiores contistas brasileiros –, você deu voz a cada um dos quatro personagens, obtendo um desempenho que a mim semelha o desses meninos que nos encantam com vários objetos nas esquinas, jogando todos para cima, sem deixar cair nenhum. Pode-se dizer que o romance, subliminarmente, dá uma idéia da desarrumação geral que os imigrantes, forçados ou não, no varejo e no atacado, provocaram na sociedade gaúcha?

L.A.A.B. – De fato, o tema do estrangeiro me apaixona. O estrangeiro tem a função de questionar, de estabelecer uma estranheza no que era óbvio. O estrangeiro tem sido uma fonte permanente de obras artísticas.

Comente o destino: qual o papel da escritora Valesca de Assis em sua vida?

L.A.A.B. – É minha mulher há mais de 30 anos, e isso deve significar alguma coisa. Ela é importante de duas maneiras: entendendo minhas ausências fechado no escritório, minhas distrações e, também, lendo meus originais. Como escritora atenta, possui uma elevada capacidade crítica, e – para meu terror, é absolutamente sincera.

Faz 28 anos que você estreou com Um quarto de légua em quadro (1976). O que você destaca como principal celebração na vida de escritor?

L.A.A.B. – A passagem do tempo, e a certeza de que se criou algo. Algo de nós não morrerá. Ainda, as amizades, aquelas que ficam.

Obteve importantes prêmios, como o prestigioso Pégaso de Literatura, no plano internacional, e o da Biblioteca Nacional, no Brasil, premiação que um escritor como Rubem Fonseca, por exemplo, quando recebeu o mesmo prêmio, considerou o maior que um escritor pode almejar: ser premiado pela Biblioteca de seu país! Livros bem recebidos por crítica e público, multidões de leitores, narrativas transpostas para o cinema etc. Como o senhor planeja os próximos passos, depois do belo díptico O pintor de retratos e A margem imóvel do rio, seus livros mais recentes, empenhados na obsessão de examinar o caminho dos viajantes que revelaram um outro Brasil?

L.A.A.B. – Não estou seguro que tenha as ‘multidões’ de leitores que o generoso entrevistador me atribui. Alguns leitores, talvez. De qualquer sorte, é algo sobre o qual não se possui o controle nem a avaliação. Quanto à pergunta: talvez eu permaneça algum tempo nessa mesma trilha. Mais do que os viajantes como ‘instabilizadores’, interessam-me os viajantes como pessoas que podem refletir sobre a realidade, distinguindo a civilização da barbárie. E o Rio Grande do Sul, em especial, sempre viveu entre essas duas entidades notoriamente antagônicas. Assim o díptico, talvez, venha a transformar-se em políptico.