Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um escritor com o pé na lama

Edney, embora Silvestre, é um repórter que prefere sair a campo em missões, podemos dizer, menos selvagens. Gosta mesmo é de ter descoberto, no interior do Ceará, um professor de balé cujo ofício transforma filhos de pescadores em bailarinos. Na semana passada, tendo de subir o morro do Borel, no Rio de Janeiro, foi identificado por um menino: ‘Olha o Caco Barcelos!’ Ao que respondeu, contrariado: ‘Não, meu filho, o Caco é o de olho azul.’ Apesar desse seu gosto pessoal, a cobertura de abacaxis é uma das especialidades do cardápio jornalístico de Edney Silvestre, 55, na Globo desde meados dos anos 1980.

Vangloria-se, por exemplo, de ter sido um dos primeiros repórteres do Brasil a chegar ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001. Não é um desembarque na Normandia, mas de qualquer modo lá estava o Edney. Com um pouco de boa vontade (talvez muita), seu cabelo lembra o Wolverine do cinema. Assim ele surgiu em reportagens na região serrana do Rio de Janeiro durante a cobertura da tragédia das chuvas. Experiente (‘eufemismo para velho’, diz), ficou chocado com o que viu. Deu-se conta do horror ao subir numa montanha de lama e escombros, em Nova Friburgo, e perceber que ‘caminhava sobre dezenas de cadáveres’.

Dois prêmios em 2010

Pela primeira vez em vários meses, interrompeu a escrita de seu novo romance, A Felicidade é Fácil, que vinha ganhando pelo menos um parágrafo por dia, ainda que obrado num saguão de aeroporto. Em Nova Friburgo ‘não tinha como entrar no personagem’.

‘Há coisas inimagináveis acontecendo ali, como as cenas dos pais com seus filhos mortos no colo, inchados por causa do afogamento’, relata. ‘Um comandante dos bombeiros me falou, em off [sob condição de anonimato], que deve haver cerca de mil mortos só em Nova Friburgo. No final, acho que as notícias serão ainda piores.’

Edney é hoje essa figura dicotômica: ao mesmo tempo em que chafurda a lama em suas reportagens, esquiva-se para redigir um paragrafinho que seja de seu novo livro, ambientado em São Paulo no início dos anos 90. Está no nono capítulo, planeja ao menos outros seis. Entrega o original à editora Record em junho e espera vê-lo nas livrarias em outubro – mesmas datas em que lançou o sortudo Se eu Fechar os Olhos Agora (Record).

Vencedor no ano passado dos prêmios São Paulo de Literatura, categoria estreante, e Jabuti de Melhor Romance, o livro será traduzido em cinco países até 2012 – França, Alemanha, Holanda, Sérvia e Portugal.

Estorvo é ‘confuso’

Se o Edney Silvestre fechar os olhos, vai achar que está sonhando. Ainda mais depois de ter abandonado um romance em gestação e desistido de outro, recusado por um editor. Tendo posto a mão numa bufunfa considerável – R$ 200 mil pelo Prêmio São Paulo e R$ 3 mil pelo Jabuti –, tratou de reinvestir o dinheiro. Transformou um quarto de hóspedes em escritório, comprou um Macintosh do qual passou a apanhar rotineiramente, refez o assoalho de seu apartamento no Rio, no Leblon.

Sua estreia rendeu, ainda, uma polêmica com relação ao Jabuti – que premiou como livro do ano Leite Derramado, de Chico Buarque, segundo colocado na categoria em que Edney saiu vencedor. Edney nunca cruzou o Chico no Leblon porque, enquanto ele caminha na areia, Chico prefere o calçadão. Só leu um livro dele, Estorvo, de 1991. Achou ‘confuso’ – um estorvo.

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Confundido com Ênio da Silveira

Se o Edney Silvestre se transformar de fato num grandessíssimo escritor, será mais ou menos como aquele pintor extraordinário que começou a carreira vendendo lata de tinta numa casa de material de construção. Ou o excepcional tenor que surgiu primeiro anunciando na praia os biscoitos Globo. Edney despontou para as letras como alguém cheio de dedos: no Tribunal Regional Eleitoral de Valença (RJ), sua cidade natal, batia à máquina os títulos de eleitores. Não era bico, mas profissão – datilógrafo, a primeira a constar na carteira de trabalho.

De família simples, sua mãe trabalhou como tecelã e o pai tinha sido funcionário da Central do Brasil até abrir um armazém, onde vendia ‘de víveres a tamancos’. Talvez por se chamarem Maria e Joaquim, tenham labutado bastante na hora de batizar os filhos. Saiu assim: Edney, Edmond, Edmir, Edinil, Ederson e Edna. Edney aprendeu a ler na biblioteca de Valença. Começou com Os Três Porquinhos, partindo em seguida para Thomas Mann e Joseph Conrad. Depois de familiarizar-se com o inglês nas sessões contínuas do cinema, passou à leitura da revista Time. Hoje fala também um pouco de francês e, ‘macarronicamente’, o italiano.

Já no Rio de Janeiro, datilografava trabalhos escolares e fazia traduções de ‘livros de cowboy’ – o que evoluiu para alguns títulos estrangeiros da então celebrada editora Civilização Brasileira.

Terminou preso pela ditadura, confundido com o editor Ênio da Silveira – que, de acordo com os militares, tentava se safar sob o pseudônimo do falso tradutor Edney Silvestre.

Tragédias pessoais

Cooptado pela escrita, foi redator de publicidade, repórter de O Cruzeiro e O Globo. Mandado a Nova York como correspondente do jornal carioca, trocou o impresso pela televisão em meados dos anos 1980. Dividia a redação com o estúdio improvisado onde Paulo Francis gravava seus comentários, não sem antes emitir duas dúzias de palavrões.

Uma vez, sua mãe ligou de Valença para elogiar: ‘Estava ótima a reportagem de ontem.’ Edney estranhou o inesperado interesse de dona Maria pelo assunto da clonagem humana. ‘Não, Edney’, explicou ela, ‘estou falando da sua gravata, estava ótima.’ Sem a gravata, Edney tem o pescoço grande e rosado, além de olhos ligeiramente para fora, uns cílios inclinados para baixo.

Quando vai falar alguma coisa grave, ele franze a sobrancelha sobre o olho direito, ao mesmo tempo em que abre o esquerdo. Repetiu isso toda vez que falou da tragédia na região serrana do Rio, sua última cobertura. Nela, ele reviveu algumas de suas tragédias pessoais. Como o incêndio que destruiu o pequeno armazém do seu Joaquim no final dos anos 1950. Edney foi retirado das chamas de pijama, o pai saiu de robe, a mãe, de camisola. Foi tudo o que restou do patrimônio da família.

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Jornalista