Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um jornal perseguido por ACM

Este livro é a história do Jornal da Bahia, que circulou de setembro de 1958 a fevereiro de 1994, contada por seu fundador e diretor durante vinte e cinco anos, logo após ter vivido uma longa e significativa experiência nas fileiras do Partido Comunista do Brasil, na clandestinidade.

Afastei-me do movimento comunista em 1957, após o informe do premier Nikita Kruschev, Secretário do Partido Comunista da União Soviética, ter denunciado “os crimes cometidos por Stálin contra o socialismo”.

Diante dessa frustrante experiência, dei início ao trabalho para a realização de um velho sonho: um jornal independente, livre de injunções partidárias e políticas. Este jornal seria minha nova trincheira. Através dele, continuaria a lutar por um Brasil melhor, uma sociedade mais justa e um povo mais feliz.

Convoquei velhos companheiros e jornalistas vindos do PCB, ao lado de jornalistas novos e idealistas, e fundamos um grande jornal.

O Jornal da Bahia nasceu num momento especial da história do país. O Brasil e a Bahia procuravam romper a estagnação em que viviam. O governo do presidente Juscelino Kubitschek, empossado em 1956, havia lançado o slogan desenvolvimentista de “50 anos em 5”.

JK estava construindo a nova capital da República, Brasília, implantando a indústria automobilística e um parque industrial no Brasil. Os resultados desta política alcançaram a expressiva taxa de 7% do crescimento do PIB. A euforia dominava todos os setores da vida nacional e a Bahia estava inserida naquela conjuntura progressista.

Havia muita esperança e confiança no desempenho do novo jornal. Na primeira metade do século 20 predominava no cenário jornalístico baiano a existência de uma imprensa conservadora e vinculada a líderes políticos: A Tarde, de Ernesto Simões Filho, o Diário de Notícias e o Estado da Bahia, de Assis Chateaubriand , O Imparcial de propriedade do coronel Franklin Albuquerque e o jornal Diário da Bahia, do Partido Social Democrático.

A Bahia esperava há muito tempo por um veículo de imprensa independente, sem tutores, resultado da conjugação da vontade e esforço de toda a população, que subscreveu em massa seu capital social. O Jornal da Bahia tornou-se um jornal moderno, inovador, alcançando grande êxito. Uma vitoriosa campanha de assinaturas por dez anos permitiu-lhe construir uma bela sede própria no terceiro ano de funcionamento.

Verdade verdadeira

O Jornal da Bahia marchava firmemente seu caminho, quando, em abril de 1964, a vitória da ditadura, que chamaram de “revolução”, impôs uma longa censura em toda a imprensa do país. Em 1970, foi nomeado para governar a Bahia o ex-prefeito e governador biônico Antonio Carlos Magalhães, que se tornou inimigo implacável do jornal, obcecado pelo propósito de fechá-lo.

Para isso, usou os métodos mais arbitrários e maquiavélicos durante quatro anos, envolvendo a suspensão de toda a publicidade do governo e das prefeituras; intimidação e perseguição de anunciantes, reduzindo 90% da publicidade; tentativa de obter o controle acionário da empresa; sonegação de informações oficiais e pressão sobre a Junta Comercial para retardar aumento de capital.

Nessa luta, o Jornal da Bahia recebeu grande apoio da imprensa brasileira e dos órgãos de classe nacionais e internacionais , que se empenharam junto ao presidente da República para acabar com essa inominável perseguição, mas tudo em vão.

Os fatos narrados neste livro são a expressão da verdade, por mais absurdos e inverossímeis que pareçam.

O Jornal da Bahia sobreviveu heroicamente a essa catástrofe e circulou até o ano de 1994, vinte anos depois.

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Trabalhei incessantemente, durante dois anos, aos 85 anos de idade, para escrever este livro. Eu devia esta denúncia ao povo da Bahia e aos jornalistas do Brasil, para que fique registrado em nossa história este inominável atentado praticado contra a liberdade de imprensa em nosso país e o nome de seu autor, Antonio Carlos Magalhães.

Pesquisei com afinco na Biblioteca Pública de Salvador e no arquivo preparado pelo jornalista Gustavo Tapioca Silva, diretor-secretário do Jornal da Bahia, logo depois que ACM deixou o governo, em março de 1975. Com sua preciosa colaboração e dos jornalistas Leví Reis Vasconcelos e Marcelo Simões, ex-redatores daquele jornal, foi possível entregar ao público este livro. Sou muito grato a eles, bem como a Miguel Macedo, pelo trabalho de editoração eletrônica.



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Apresentação

Emiliano José (*)

Preso pela ditadura no final de 1970, saí da prisão em setembro de 1974. No início de 1975, depois de passar pela Tribuna da Bahia, desembarcava no Jornal da Bahia, a convite do chefe de reportagem Césio Oliveira. Encontrei uma redação em festa. Comemorava-se o fim próximo do primeiro governo biônico de Antonio Carlos Magalhães. Havia razões de sobra para esse clima festivo, e delas vamos falar com mais vagar nessa apresentação.

Antes, cabe o registro da atitude de dois empresários diante dos perseguidos políticos: Joaci Góes e João Falcão. Eram os que encabeçavam a Tribuna da Bahia e o Jornal da Bahia. Não se atemorizaram em nos acolher. E eram tempos difíceis, de intensa repressão, de nuvens e de sombras. E não só nuvens e sombras emanadas do manto ditatorial do Planalto, mas também as do poder tirânico local. Essa atitude de coragem, de grandeza, de espírito aberto não pode ser relegada ao esquecimento.

E quando digo nos acolher, não o faço apenas como um plural majestático. Estou me referindo a tantos que, saídos das prisões políticas, foram encontrar abrigo nos dois jornais. Nas duas redações nos reencontramos. Certamente alguns nomes me escaparão. Mas, corro o risco de lembrar Oldack de Miranda, Dalton Godinho, Tibério Canuto, Otto Filgueiras, José Carlos Zanetti, Francisco Vasconcelos, Denilson Vasconcelos, entre outros. E aqui estou me referindo à geração de 1968, não aos vários ex-militantes ou mesmo militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), anteriormente acolhidos, especialmente neste caso pelo Jornal da Bahia.

De cara, senti o calor humano quando cheguei. Lembro, como hoje, de uma moça bonita, perguntando, lá do fundo da redação, quem havia escrito matéria sobre o Hospital Juliano Moreira, que ficava então no Engenho Velho de Brotas, onde funciona atualmente a Secretaria de Educação da Prefeitura de Salvador. Era Mara Campos, penso que trabalhando no copy, chefiado, se a minha memória estiver boa, por Gilson Nascimento, e que contava com a participação, entre outros, de Fernando Vita. Eu havia escrito a matéria. Ela queria elogiar a reportagem. E ela talvez não tenha imaginado o quanto aquela atitude me honrava.

Convivi ali com figuras especiais do jornalismo baiano. Com Frederico Simões, Anísio Félix, Césio Oliveira, Vander Prata, José Carlos Prata, Dailton Mascarenhas, Zé Fernandes, Rafael Pastore, Rêmulo Pastore, Mário Freitas, Moacir Ribeiro, Carmela Talento, Linalva Maria de Souza, Lúcia Cerqueira, Levi Vasconcelos, Adilson Borges, Limiro Besnosik, Helington Rangel, Nadya Argolo, Newton Sobral, Jânio Lopo, João Carlos Teixeira Gomes, Marcelo Simões, Sérgio de Souza, Narciso Kalili, Utamá Sebastião, Caco Caetano, Guido Guerra, Jorge Lindsay, Tânia Vieira, Marcos Luedy, Mariana Soares, Cidélia Argolo, Diana Tourinho, Maria Estella Carvalho, Renato Pinheiro, Misael Peixoto, Edivaldo Esquivel, Einar Floriza, Vera Martins, e Catela, Vigota, Teófilo, Anísio Carvalho, estes últimos fotógrafos, entre tantos companheiros.

Sei do risco de citar nomes, passado tanto tempo. Certamente, muitos ficarão de fora. Mas, é quase imperioso fazê-lo pelo que tem de emoção, parte da vida, pessoas que nunca esqueceremos, algumas da quais já morreram.

Violência e desfaçatez

O Jornal da Bahia, nascido em 1958, foi um importante sopro de renovação na imprensa baiana. Renovação não apenas no sentido gráfico, mas no pensamento. Foi uma sacudidela vigorosa na vida jornalística do Estado. Conseguiu agrupar não só nomes importantes do jornalismo como uma parcela significativa da intelectualidade baiana. Assumiu-se como um veículo de opinião, sem com isso deixar de respeitar os critérios de rigorosa apuração da notícia.

A trajetória do Jornal da Bahia – nascimento, vida e morte – é aqui esmiuçada pelo seu criador, jornalista João Falcão. Uma trajetória bonita, de traços épicos pela sua capacidade de resistência. Uma trajetória reveladora do quanto podem homens e mulheres dispostos a não ceder ao arbítrio, à arrogância, à estupidez de um pequeno tirano. Reveladora, ainda, do quanto o jornalismo pode ser digno, do quanto ele pode quando a alma não cede à tentação da covardia, da submissão.

O jornalismo pode ser a expressão de espíritos livres, como no caso do Jornal da Bahia, que não se submeteu às contingências do momento, por mais violentas que elas tenham sido. Toda essa impressionante demonstração de dignidade, de união de uma equipe admirável de jornalistas, da tenacidade de João Falcão, só fazem tornar mais claro o quanto de mal pode fazer o espírito e a prática ditatoriais, pois apesar de tudo isso o jornal, anos depois, extinguiu-se para tristeza de quantos puderam viver aquela extraordinária experiência.

O fim do Jornal da Bahia não se deu durante os anos mais duros de perseguição. Acabou no dia 22 de fevereiro de 1994. Morreu de forma lenta, insidiosa, como resultado de uma das mais cruéis, odiosas perseguições de que se tem notícia na imprensa brasileira, só possível, é necessário dizê-lo, pela vigência da ditadura militar, absolutamente conivente com o tiranete da província.

Antonio Carlos Magalhães, sabem-no todos, é um autêntico filhote da ditadura. Foi prefeito biônico de Salvador entre 1967 e 1970. Governador biônico entre 1971-1975. Governador biônico entre 1979-1983. Só pôde ser prefeito e governador devido à confiança que nele depositava a ditadura. Numa única vez, em 1990, tornou-se governador com voto popular, depois de ter pavimentado todo o seu caminho graças à sua condição de impressionante bajulador dos militares, e nessa condição ele, quando quer, é inexcedível.

Ainda que tenha havido tantos outros filhotes da ditadura, Antonio Carlos Magalhães é, talvez, aquele que melhor se adequou ao figurino ditatorial. Ele serviu aos militares com gosto, imenso deleite. De um lado, bajulava-os. De outro, nadava de braçada naquele ambiente.

Podia fazer tudo que lhe aprouvesse com seus adversários e até tratar mal seus aliados – nem sei se é possível chamá-los aliados. Melhor denominá-los subordinados. Para além da análise política, não custa dizer que, sob a ditadura, ele podia extravasar seus instintos perversos, seu impressionante espírito autoritário e, ainda, usar e abusar dos recursos públicos sem que nada lhe acontecesse. Mais ainda, apoiado sempre pela ditadura.

A perseguição que ele moveu ao Jornal da Bahia, primeiro na condição de prefeito e depois como governador é um episódio quase inacreditável pela violência, desfaçatez, cinismo, arrogância, prepotência, pequenez, tudo aquilo que os pequenos régulos incorporam em suas personalidades. Entre o fim de 1968 e março de 1975, Antonio Carlos Magalhães perseguiu o Jornal da Bahia de forma implacável, só não conseguindo fechá-lo então devido à tenacidade de João Falcão, da equipe de jornalistas sob o comando de João Carlos Teixeira Gomes e da união de todos os demais funcionários.

Bravura e tenacidade

Uma primeira característica da perseguição foi a tentativa de asfixia econômica. Suspender toda a publicidade oficial e pressionar abertamente o empresariado baiano e do Sul do País de modo a que ninguém anunciasse no Jornal da Bahia. E nisso o governador biônico teve sucesso. O medo de represálias levou a que as empresas deixassem de anunciar. O curioso é que, quando provocado pela imprensa sobre essa política de aniquilamento econômico, Antonio Carlos Magalhães não negava. Ele tentava tornar a ilegalidade natural.

Outra forma foi a pressão sobre a própria família de João Falcão, denunciando-a falsamente como sonegadora de impostos. Não contente com isso, pediu o enquadramento do redator-chefe, João Carlos Teixeira Gomes na Lei de Segurança Nacional “em face de ofensas à sua honra e dignidade” veiculadas, segundo ele, pelo Jornal da Bahia. Antonio Carlos era mais real do que o rei. João Carlos Teixeira Gomes foi absolvido. O Conselho Permanente da Aeronáutica se julgou incompetente para apreciar o processo movido pelo governador biônico.

Como o jornal não recuava de sua posição independente, Antonio Carlos Magalhães passou ao terrorismo. Uma bomba foi jogada contra o próprio João Falcão, no centro da cidade, tendo explodido a poucos metros de distância dele. Noutro episódio, o carro do redator-chefe, João Carlos Teixeira Gomes, teve os pneus cortados e esvaziados, o pára-brisa e a chaparia pichados e a pintura riscada.

No auge da crise, com imensas dificuldades financeiras, uma campanha, marcada pelo criativo slogan Não deixe esta chama se apagar garantiu que o jornal não sucumbisse. A campanha garantiu um aumento substancial da circulação, expressando uma impressionante solidariedade da sociedade baiana ao jornal. O apelo ao povo, a última esperança como diz João Falcão, deu resultado. Não para tirar o jornal da crise financeira, mas para dar-lhe o alento da continuidade. Resistência, bravura, tenacidade – tudo isso se expressou na trajetória do Jornal da Bahia nesse período.

O bom combate

Às vezes, reflito sobre a precária memória da imprensa brasileira. Antonio Carlos Magalhães notabilizou-se, em vários episódios, por perseguir jornais e jornalistas, inclusive agredindo-os fisicamente. É um notório inimigo da liberdade de imprensa, para não falar de outros aspectos de sua vocação tirânica. A história do Jornal da Bahia é a mais grave e tenaz perseguição que ele moveu contra um meio de comunicação, mas não é a única. No mínimo, pede-se esse registro, que devia ser renovado a cada dia, para que o jornalismo tenha alguma capacidade de produzir sua própria memória, uma memória que não seja tão pródiga em absolver seus próprios algozes.

O livro de João Falcão presta um grande serviço à memória do nosso jornalismo. Não se trata de um simples episódio regional. É a história de um grande jornal, de jornalistas de coragem, uma história de amor à liberdade, de insubmissão à tirania. E é, também, parte da história de um tiranete, que nunca se acostumou aos ventos democráticos e que trata os recursos públicos como coisa de família. João Falcão demonstra isso em relação ao primeiro governo de Antonio Carlos Magalhães com uma profusão de casos.

Não foi fácil certamente travar a luta contra o tirano local sob uma ditadura. E João Falcão não se esquiva diante das ambigüidades de que o jornal foi vítima para enfrentar o ditadorzinho da província. Teve que, em vários momentos, fazer concessões à ditadura, não fazer o enfrentamento aberto contra ela, para poder fazer frente a Antonio Carlos Magalhães. No raciocínio de João Falcão, era inimigo demais para confrontar de uma vez só. Tinha consciência do significado da ditadura, mas considerava necessário fazer um discurso que não levasse em conta tudo o que de mal ela fazia ao povo brasileiro para poder enfrentar a violência, a tirania do biônico que ela colocara no governo da Bahia.

Sei que não é fácil a um democrata como João Falcão reconhecer que foi constrangido a essa tática política. Mas, ele o faz. Não tergiversa. E essa é uma qualidade fundamental do jornalista sério ou, se quisermos, do memorialista. Não escreve apenas aquilo que poderia parecer o espetáculo da coerência completa, mas revela as circunstâncias complexas da imprensa regional, submetida à tirania obsessiva de um soba disposto a tudo para calar a voz de um jornal com acentuada veia crítica. No texto, no entanto, ele também acentua que a ditadura nunca se colocou ao lado do jornal, apesar não só dos protestos do próprio Jornal da Bahia, como de vários outros veículos de comunicação nacionais, com destaque para O Estado de S.Paulo.

Ao terminar a leitura, há uma sensação de alegria pela resistência. E outra, de tristeza, pelo fim do jornal, sua morte. No Jornal da Bahia, fui repórter, pauteiro, chefe de reportagem, editor de política. Convivi com dezenas de amigos e amigas, como já disse, a maioria deles profissionais exemplares. A fase da sede da Barroquinha, a mais longa, foi a mais rica para todos nós. Ao ler o texto de João Falcão, voltaram os dias tumultuados e felizes de um jornal cheio de vida, que soube combater o bom combate e que deixou marcas que jamais se apagarão. De alguma forma, é possível afirmar-se que aquela chama não se apagou – ficou como marca da luta pela liberdade de imprensa, como marco da capacidade de resistência às ditaduras de quaisquer espécies.

(*) Jornalista

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Sobre o autor

João Falcão nasceu em 1919 em Feira de Santana, Bahia. Formou-se em direito e atuou na vida política brasileira dos anos 1930 a 1960. Militou durante vinte anos no Partido Comunista do Brasil, inclusive como elemento de ligação com a Internacional Comunista (Komintern). Fundou, em 1938, a revista Seiva, fechada pela ditadura Vargas em 1943, e, em 1942, o matutino O Momento, que, superando dois fechamentos pela mesma ditadura, só encerrou suas atividades por decisão de seus integrantes, após a divulgação, em 1956, do relatório em que Nikita Kruschev acusava Stalin de cometer contra o socialismo.

Responsável de 1947 a 1950 pelo aparelho clandestino do ex-senador Luiz Carlos Prestes no Rio de Janeiro, foi, em 1955, deputado federal, chefe da delegação brasileira ao Congresso Mundial da Paz em Helsinque e visitante da União Soviética e da China Popular.

Abandonando a militância no Partido Comunista, fundou, depois de 1956, o Jornal da Bahia, cuja trajetória heróica é tema deste livro.

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Jornalista