Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Um livro para ser vivido

Se alguém me pedisse para descrever as entrevistas de Edwar W. Said (1935-2003) ao jornalista David Barsamian, publicadas no Brasil pela Ediouro em 2006, diria simplesmente ‘que o livro não pode ser lido, mas apenas vivido’. Resenhar uma obra tão singular e importante é realmente difícil. Somos obrigados a escolher entre dar ênfase ao trabalho do jornalista, que soube escolher os temas e perguntas para extrair do entrevistado o que realmente interessa ao público, ou colocar em relevo as respostas ofertadas pelo entrevistado. Optamos por dar ênfase às manifestações do entrevistado, muitas das quais são absolutamente desconhecidas do público brasileiro, muito acostumado a uma cobertura pró-israelense no que se refere à questão Palestina.


Uma das primeiras revelações feitas por Said é que ‘(…) bem poucos árabes não-palestinos vêm para os territórios palestinos, e quase nenhum deles, praticamente nenhum, vai para Israel’. Mais adiante, o próprio entrevistado frisa: ‘Aonde quer que você vá em Israel, as placas das estradas são escritas em inglês e em hebraico. Não existe nada em árabe. Então se você é um árabe e não sabe hebraico ou inglês, você está perdido. Isso é proposital. Essa é uma forma de excluir 20% da população. Então é muito importante que os israelenses sejam forçados intelectualmente e moralmente a confrontar as realidades da sua própria história’. Assim, não é difícil compreender a recusa dos árabes não-palestinos em visitar a região. Apesar de também ser habitado por árabes, Israel baniu a língua árabe deliberadamente. Fica parecendo que os israelenses não se consideram parte do Oriente Médio, que não fazem questão alguma de normalizar suas relações com os vizinhos.


Mais do que isto, os israelenses parecem determinados a apagar da história a história da ocupação da região a partir de 1948. Por isso, Edwar W. Said cita as palavras do grande general israelense Moshe Dayan, em meados de 1970: ‘Não há um lugar construído nesse país onde não tenha havido antes uma população árabe’, disse. ‘Nós os tiramos à força.’ Se o próprio artífice da diáspora palestina, que comandou a ocupação de Jerusalém, foi capaz de reconhecer este fato não podemos dar crédito e atenção à propaganda israelense de que a região era inabitada antes de 1948.


Isolamento e insulamento


Justamente por isso o entrevistado frisa que não ‘(…) é possível entender o que está acontecendo hoje e a situação dos palestinos sem entender o que aconteceu em 1948’, diz. ‘Uma sociedade construída principalmente por árabes na Palestina foi erradicada e destruída. Uma população árabe de oitocentas mil pessoas foi expulsa intencionalmente. Os arquivos sionistas são muito claros e muitos historiadores israelenses têm escrito sobre isso’.


Ao referir-se ao processo de construção de Israel, Said nos alerta que quem introduziu o terror na região foram justamente os grupos sionistas: ‘Nos anos 1920, colocar bombas nas feiras-livres árabes para aterrorizar a população era uma das técnicas dos primeiros grupos de extremistas sionistas’. Curiosamente, apesar de mostrar e retratar com repugnância o uso do terror pelos palestinos, a imprensa brasileira nunca deu ênfase aos antecedentes terroristas sionistas na região. Segundo Said, que não é anti-semita e abomina publicamente o holocausto dos judeus, é necessário admitir a existência de Israel sem esquecer, entretanto, que os israelenses construíram seu Estado recorrendo ao uso da força. Sem esquecer, também, que Israel sistematicamente aterroriza uma população civil desarmada na Cisjordânia e em Gaza.


Sobre a lamentável situação de isolamento e insulamento imposta à população palestina pelas armas israelenses, o intelectual americano afirma: ‘O que aconteceu é que, para todos os palestinos, 1948 e a fundação do Estado de Israel significou fundamentalmente que 78% da histórica Palestina árabe se tornaram israelense. Isso foi admitido. A Cisjordânia e Gaza em conjunto constituem 22% da histórica Palestina, e é sobre isso que a atual disputa se dá. Os palestinos não estão lutando por causa dos 78% perdidos. Eles lutam pelos 22% ainda restantes. Desses 22%, os israelenses ainda têm controle sobre 60% da Cisjordânia e 40% de Gaza’.


Sem crédito


Esta é uma informação valiosa, porque a geografia do conflito quase sempre deixa de ser mencionada claramente na imprensa brasileira, principalmente a televisiva. O que vemos na telinha é a cobertura dos atentados e a reação israelense. Vez por outra somos informados de que Israel está apenas reagindo aos homens-bomba, como se fosse apenas vítima, e não o Estado que construiu uma política discriminatória e claramente imperialista. A imagem que temos do confronto é distorcida e muito benéfica aos interesses israelenses.


Não à toa o entrevistado também faz questão de mencionar outro fato importante: ‘A ocupação é uma forma de violência, contra a qual atirar pedras e o ocasional e terrível terrorista, por pior que ele seja, não são nada em comparação à punição coletiva que três milhões de pessoas têm sofrido nos últimos 33 anos. Israel é o único país no mundo onde a tortura é sancionada legalmente. Quase 20% dos cidadãos de Israel, que não são judeus, mas palestinos, são tratados essencialmente como os negros eram na África do Sul. Eles têm os direitos negados, não têm permissão de possuir, alugar ou comprar propriedades. Suas terras são regularmente confiscadas. Essa é uma política de violência e discriminação do tipo mais estarrecedor’.


Portanto, na próxima vez em que você se deparar com um texto dizendo que os árabes são bárbaros, racistas e anti-semitas não dê muito crédito à informação. É muito provável que o autor seja algum defensor fanático de Israel. Na verdade, muitos israelenses são fundamentalistas, anti-árabes e, principalmente, antipalestinos.


Imagem e realidade


Edwar W. Said salienta que Israel é um Estado ‘incomparável de várias formas’. Diz ele: ‘É um Estado sem constituição. É governado por um conjunto de leis básicas. Faz distinções muito radicais entre judeus e não-judeus, até mesmo nas estatísticas. Tudo é governado através de quem é e quem não é judeu. Isso é impraticável. É um Estado administrado efetivamente através da autoridade religiosa. Muitos cidadãos de Israel estão verdadeiramente preocupados com o destino de judeus seculares que não aceitarão ser governados por clérigos conservadores e ortodoxos’.


Muitas vezes vemos a imprensa brasileira enfatizar que Israel é um Estado moderno, uma democracia parlamentar ocidental cercada de tiranias árabes e teocracias islâmicas. Em razão disso, a afirmação do entrevistado causa estranhamento. Said nos diz que Israel não tem constituição (certamente porque não quer atribuir cidadania plena aos palestinos que vivem em seu território) e, portanto, não pode ser comparado à França, à Itália e a outros países ocidentais. O Estado israelense é governado por religiosos, portanto, é uma teocracia parecida com a do Irã dos aiatolás ou o Afeganistão dos mulás. E é racista porque discrimina os não-judeus, assemelhando-se ao regime sul-africano antes da abolição da separação entre brancos e negros.


A distinção entre a realidade israelense e a imagem construída de Israel deve ser atribuída à propaganda. E a propaganda pró-isralense nos EUA é tão grande que os judeus americanos encaram os palestinos de maneira diferente da dos israelenses. Said enfatiza: ‘Porque os israelenses moram lá e vêem palestinos a cada minuto como seus empregados e garçons, em restaurantes de Tel-Aviv, ou como seus choferes e motoristas de táxi, todas essas pessoas que moram nos Territórios Ocupados e em Jerusalém sabem que eles estão lá como uma presença física. Essa é a consciência sionista israelense sobre os palestinos. Os sionistas americanos, ao contrário, realmente não vêem os palestinos como algo real. Existe um tipo de elemento fantástico no qual os palestinos são uma ficção ideológica desnecessária criada para importunar os israelenses e por esse motivo agir como avatares do anti-semitismo.’


EUA e Iraque


Isso ajuda a compreender melhor por que os americanos são passivos em relação á brutalidade praticada contra os palestinos. Brutalidade esta que é financiada em parte pela ajuda dos EUA a Israel. Mas o entrevistado não se limita a criticar Israel, os EUA e o sionismo. Ele também volta suas baterias contra os próprios árabes e islâmicos:


‘O mundo árabe está num estado lastimável. Todos os governantes sem exceção são tirânicos e antidemocráticos. Não existe democracia. Os árabes estão pagando um preço alto por isto’. E não poupa a Autoridade Palestina: o ‘orçamento palestino, por exemplo, não tem quase nada voltado para infra-estrutura, mas dispõe de grandes somas para a burocracia. Este é o tipo de distorção assimétrica que você tem. As pessoas vão à mesquita e escolas religiosas para conseguir um tipo de sustentação que não encontram em outros lugares’. A lastimável situação do Oriente Médio árabe justifica em parte a ausência de doações dos EUA a palestinos e árabes. Afinal, não adiantaria nada reforçar uma estrutura de poder descomprometida com a melhoria de vida da população.


Sobre os EUA e sua guerra contra o Iraque, Said é enfático. ‘O governo [Bush] está nas mãos de uma quadrilha. Acho que podemos falar de um regime aqui, ou uma junta, e não de um governo que é democraticamente eleito ou representativo, no verdadeiro sentido da palavra. O Partido Democrata não existe como força alternativa. A administração Bush é dominada por um grupo de neoconservadores com cabeça militar fanaticamente pró-Israel. Eles estão determinados a prosseguir com esta guerra contra o Iraque, não por razões que tenham algo a ver com a segurança americana, mas ao invés, como eles disseram, para garantir o predomínio mundial para os Estados Unidos, não importa o custo em termos de sangue e dinheiro, não importa que danos sejam feitos ao resto do mundo’.


Investimento valioso


A preocupação de Said com o nível de informação nos EUA é justificada. O que podemos esperar da maior potência do mundo quando ela usa livremente seu poder militar à revelia de sua própria população? As entrevistas foram feitas antes do início da guerra contra o Iraque. É interessante notar que naquela época o entrevistado estava preocupado pelo fato de que ‘nenhuma atenção é dada ao Iraque como o centro cultural de todo o mundo árabe e, na verdade, da civilização muçulmana. O Iraque é uma civilização contínua que data das milenares Suméria, Assíria e Babilônia’.


Ainda sobre o Iraque informa: ‘Foi a sede do califado abássida, o ápice da civilização árabe. O Iraque hoje é vital à cultura árabe. Há um provérbio que diz que os egípcios escrevem, os libaneses publicam e os iraquianos lêem. Bagdá é certamente a capital artística do mundo árabe. E de todos os países árabes o Iraque é o mais favorecido com recursos humanos e naturais. Ele possui grande quantidade de água e petróleo. Tem uma classe média e profissional altamente desenvolvida, que foi gravemente enfraquecida pelas sanções’.


Estes são os aspectos que julgamos mais importantes de mostrar ao leitor. A obra traz a visão de mundo do entrevistado e sua compreensão da questão palestina. Edwar W. Said nos revela, ainda, um pouco de sua própria história de vida como árabe nascido em Israel, cristão, orientalista e estudioso da literatura. Por fim, as entrevistas também abordam questões importantes como a atuação da ONU no Oriente Médio, a política externa dos EUA, origens do terrorismo e sua imagem construída na era Bush. O livro é um investimento valioso para qualquer pessoa que pretenda conhecer melhor o que anda ocorrendo no mundo.

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Advogado, Osasco, SP