Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um repórter no bonde da história

Em 1996, a Rússia vivia um novo ciclo histórico, com a realização das primeiras eleições diretas para presidente depois da extinção da União Soviética. A utopia de Marx e Lênin cedia lugar à glasnost e à perestroika, processo de abertura política e econômica iniciado 10 anos antes por Mikhail Gorbachev. A ‘roda quadrada’, rótulo conferido pelos críticos ao socialismo de Estado, começava a girar em ritmo vertiginoso, mudando os rumos do século 20. No dia da votação, um domingo, começo de tarde em Moscou, a imprensa voltou as atenções para Gorbachev, o arquiteto da guinada russa para a democracia.

O repórter brasileiro Geneton Moraes Neto estava lá. Do seu posto privilegiado, ele anotou: ‘Era exatamente meio-dia e quarenta e nove minutos quando Gorbachev, candidato a presidente, caminhou em direção a uma urna eletrônica instalada numa sala do primeiro andar do Instituto de Química e Física da Academia de Ciências da Rússia, num bairro chamado Colina dos Rouxinóis’.

A odisséia de Geneton é contada no livro Dossiê Moscou, uma imersão que revela os bastidores daqueles dias velozes na capital russa. Na reportagem, ele circula num ritmo febril em busca de informações que possam dar conta do instante desmesurado. Geneton se vê a um passo de Gorbatchev, fotografa-o, estuda-lhe os gestos, tenta apreender a essência daquele momento histórico.

Em Moscou, o repórter entrevistou personagens dignos de uma trama romanesca, como se saídos de um enredo da Guerra Fria: um ex-general da KGB; o filho do homem que coordenou o assassinato de Leon Trotsky no México; a primeira cosmonauta a flutuar no espaço; um velho jornalista do Pravda; o filho do ex-todo-poderoso do comunismo soviético Nikita Kruschev.

O dossiê lança uma luz sobre o colapso da utopia socialista, e entremeia as cenas do cotidiano moscovita com depoimentos de marxistas de velha cepa. O livro inclui entrevistas com os historiadores Eric Hobsbawm e Leandro Konder. Em sua ‘expedição Moscou’, Geneton visitou o Museu Vladimir Maiakóvsky, criado no pequeno cômodo que abrigou o genial poeta da revolução, inserindo um contraponto lírico à narrativa.

No olho do furacão, Geneton realizou o sonho de todo repórter: estar presente no lugar onde a história acontece. Em Moscou, testemunhou o desmoronamento da velha ordem, mostrando a incredulidade dos indivíduos que mal acreditam no que vêem. Banida das redações, a grande reportagem encontra o desaguadouro ideal em mergulhos de fôlego como o que empreendeu esse repórter pernambucano, atuando na TV Globo/Rio desde 1985. ‘O livro-reportagem é hoje o grande espaço para a reportagem no Brasil’, diz. ‘Os repórteres deveriam acender uma vela na porta de cada editora, em sinal de agradecimento a editores que resolveram apostar no filão do livro-reportagem.’

Convencido de que a reportagem é a única função realmente importante no jornalismo, Geneton Moraes Neto escreveu o Dossiê Drummond (1994), com a última entrevista concedida pelo poeta mineiro. Em parceria com Joel Silveira, escreveu Hitler/Stalin: o pacto maldito (1990) e Nitroglicerina pura (1992). Em 1997, lançou o Dossiê Brasil. Sobre a tragédia do futebol brasileiro em 1950, escreveu Dossiê 50 (2000). Na internet, mantém em seu site (www.geneton.com.br) importantes entrevistas e reportagens. Atual editor-chefe do Fantástico, da TV Globo, Geneton concedeu por e-mail a entrevista que se segue, em que fala de seu novo trabalho.

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Você foi um dos poucos jornalistas brasileiros presentes em Moscou no dia da eleição histórica que mudou os rumos da velha União Soviética. Como foi se sentir num posto tão privilegiado?

Geneton Moraes Neto – O sonho de todo repórter é estar presente no lugar onde a história acontece. São raras estas chances. Ali, na primeira eleição presidencial realizada na Rússia depois do fim da União Soviética, posso dizer que vi a história acontecendo a um metro de onde eu estava: vi, anotei, gravei e fotografei o momento em que, pela primeira vez na história, um ex-líder soviético – no caso, Mikhail Gorbachev – participava de uma eleição direta para presidente. Era uma cena impensável nas décadas anteriores, quando os antecessores de Gorbachev ocupavam o Kremlin. Ninguém imaginaria Lênin, Stálin, Kruschev, Brejnev, Andropov ou Tchernenko dirigindo-se a uma cabine de votação numa eleição direta, como Gorbachev fez.

Naquele momento lhe passou pela cabeça o fato de que outro jornalista, o americano John Reed, testemunhou em Moscou outro fato histórico da vida russa, a revolução bolchevique de 1917?

G. M. N. – Dez dias que abalaram o mundo é o livro-reportagem clássico sobre a revolução de 1917 na Rússia. Não foi por acaso que John Reed recebeu uma deferência incomum para um estrangeiro: terminou sepultado no Kremlin. É um grande exemplo de uma reportagem apaixonada. A paixão na hora de reportar um grande acontecimento é algo que já não se vê hoje, quando o tom dos textos é marcado por uma ‘aridez de paisagem lunar’, como diria o eterno Nelson Rodrigues.

Em duas ocasiões você esteve muito próximo de Mikhail Gorbachev, uma no Rio de Janeiro e outra em Moscou. Que impressão ele lhe causou?

G. M. N. – Uma imagem marcante: as feições de Gorbachev exibiam um ar de enigmática melancolia no momento em que, depois de falar aos repórteres à saída da cabine de votação, ele se afastou da comitiva e caminhou sozinho por uma alameda em direção a um portão de ferro. Em que ele estaria pensando depois de dar por encerrado um ciclo histórico? Digo no livro que Gorbachev exibia, ali, naquele instante de solidão, o ‘ar atônito dirigido contra todo o ordenamento das coisas’. É assim que um personagem do genial romance O Leopardo [do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa] descreve o olhar de um coelho abatido. Assim vi Gorbachev naquele instante. As fotos que documentam este momento estão no livro.

Nas primeiras eleições para presidente após a extinção da União Soviética, Gorbachev obteve menos de 1% dos votos. Não seria um caso típico de profeta que não se fez ouvir em sua própria terra?

G. M. N. – Ninguém precisa ser cientista político para descobrir por que Gorbachev é impopular na Rússia e venerado no exterior. Os russos jogam sobre os ombros de Gorbachev a responsabilidade pelo desaparecimento de uma superpotência – a União Soviética –, o estopim de uma crise econômica que castigou a população pelos anos seguintes. A votação que ele teve, em todo caso, foi humilhante, abaixo do que se esperava.

Você ouviu três personalidades que tentaram explicar o fim do comunismo na Rússia: o filósofo brasileiro Leandro Konder, o historiador britânico Eric Hobsbawm e o soviético Serguei Kruschev, filho de Nikita Kruschev. Qual dessas visões mais o impressionou? Por quê?

G. M. N. – Sou suspeitíssimo para falar, mas posso garantir aos eventuais leitores do Dossiê Moscou que o livro traz uma série de entrevistas que jogam luzes sobre o desmoronamento da ‘última grande utopia’ – a socialista. Eric Hobsbawm – assim como um ex-general da KGB – diz que a mera existência do regime comunista forçou os governos dos países capitalistas a fazerem concessões importantes aos trabalhadores. É uma avaliação interessante.

Sob os coturnos de Stalin, o comunismo russo acabou revelando ideais opostos aos que defendia no início. Você acha que esse é sempre o caminho da política, a negação da realidade?

G. M. N. – O escritor inglês Martin Amis – que escreveu um livro sobre Stálin, chamado Koba The Dread – diz que os homens são desesperadamente vulneráveis a ilusões. Porque as ilusões ajudam a preencher o grande vazio. A tragédia é que ilusões – e ingenuidades bem-intencionadas – terminam abrindo o caminho para a morte e a destruição, como diz outro entrevistado do livro, um professor da London School of Economics. O homem, em todo caso, precisa acreditar em utopias, para não afundar da mediocridade da realidade imediata. É preciso ampliar os horizontes – nem que seja para renegar depois a ilusão que se esconde lá adiante. Assim caminha a humanidade. Próxima ilusão: pode entrar, por favor. Eric Hobsbawm diz, na entrevista que fiz com ele, que há, depois do naufrágio do socialismo, um ‘vasto espaço para o sonho’. Resta preenchê-lo.

Na introdução do livro, você escreve que a reportagem é ‘a única função realmente importante no jornalismo’. Por que a reportagem caudalosa, a grande reportagem, foi praticamente banida do jornalismo, ao menos por estas bandas?

G. M. N. – A crença generalizada de que a maioria absoluta dos leitores não tem paciência para ler se espalhou pelas redações como uma praga. Mas – ah, dádiva de Gutenberg – a grande reportagem encontrou um refúgio nos livros. Numa época dominada por mensagens telegráficas transmitidas a cada segundo pela internet, pode ser que o livro se transforme no último refúgio da reportagem. Hoje, se eu fosse preencher a ficha de hóspede num hotel, teria a tentação de escrever ‘repórter de livro’ no espaço destinado à profissão. Nem repórter de TV nem de jornal nem de revista: repórter de livro. Porque o livro-reportagem é hoje o grande espaço para a reportagem no Brasil. Já não há revistas como a falecida Realidade. Os repórteres deveriam acender uma vela na porta de cada editora, em sinal de agradecimento a editores que resolveram apostar no filão do livro-reportagem. O público tem respondido. Basta ver a presença marcante de livros de jornalistas nas listas dos mais vendidos. São Gutenberg, padroeiro dos repórteres castigados pela burocracia das redações, há de nos proteger. Uma excelente resenha publicada na versão online (e em português ) do jornal Pravda diz que repórter que aposta em grandes histórias é bicho em extinção, como o mico-leão-dourado ou o macaco-prego. (Quem quiser ler deve acessar o seguinte endereço: http://port.pravda.ru/main/2004/12/06/6699.html). Mas haverá sempre os que – como fiz ali, em Moscou – acham que vale a pena se libertar da ditadura diária do espaço e do tempo para produzir livros-reportagem que tentem descaradamente apaixonar o leitor. É o que tento fazer no Dossiê Moscou. Fiz esta reportagem da melhor maneira possível. Já tenho três décadas de rodagem em redações. A melhor coisa que consegui produzir foi o capítulo em que narro a chegada de Gorbachev à cabine de votação. Ao fim, posso dizer, como os guerreiros derrotados: ninguém pode dizer que não tentei.

Como é que você se sente transitando entre dois mundos, o da TV, com sua linguagem própria, e a grande reportagem impressa?

G. M. N. – O meu departamento preferido é o da reportagem impressa. O que a gente faz no início de carreira nos marca pelo resto da vida. Aos 16 anos, eu era repórter da editoria geral do Diário de Pernambuco. Ali, entre a redação e as oficinas, adquiri a certeza de que, para mim, jornalismo é sinônimo de reportagem. O resto é burocracia. Nem sempre é assim – claro. Mas, senhores editores, deixem que eu alimente esta ilusão inofensiva.

O jornalista aposentado do Pravda Oleg Ignatiev lhe confessou que chegou a inventar informação para manter a linha apologética do poderoso periódico. A ação dele, embora longínqua no tempo, não está muito distante do que se tem visto na própria imprensa ocidental em casos recentes, não é?

G. M. N. – O velho jornalista do Pravda me confessou, na entrevista, que tinha cometido pequenos pecados – inofensivos e, até, divertidos, como o fato de ter inventado um ‘milenar provérbio egípcio’ na redação, porque precisava de um ditado para ‘enfeitar’ a abertura de um texto. Mas, a bem da verdade, ele diz que nunca escreveu contra os seus princípios. Sempre acreditou no que fazia. Em todo caso, a manipulação de informações é a doença infantil não apenas do esquerdismo, mas também de outras doenças, como o bushismo dos dias de hoje.

Na sua aventura moscovita, você entrevistou também ex-espiões e a primeira cosmonauta a flutuar no espaço, personagens que poderiam ter saído de filmes. Qual deles o impressionou mais? Por quê?

G. M. N. – A astronauta – ou cosmonauta, na terminologia preferida pelos russos para designar os viajantes do espaço – me impressionou pela frieza. Pensei que ela iria se emocionar ao descrever a aventura que viveu. Mas ela foi logo me avisando que, se eu estava à procura de emoções, deveria bater na porta de outro entrevistado, porque ela tinha viajado ao espaço para defender os ideais da União Soviética.

Você teve dificuldade para encontrar essas pessoas? A condição de brasileiro abriu ou fechou portas?

G. M. N. – A condição de brasileiro em trânsito eventualmente me ajudou. Para conseguir entrevistar a astronauta – que era deputada no parlamento – recorri a um golpe não tão baixo: pedi ao nosso tradutor que dissesse a ela que eu iria voltar para o Brasil no dia seguinte. Teria de conseguir a entrevista naquele dia para completar a cobertura. A astronauta caiu como pato. Eu não iria voltar ao Brasil no dia seguinte. Mas ela, num gesto de complacência, terminou entregando os pontos para se submeter ao meu interrogatório.

Winston Churchil, citado por você na reportagem, dizia que a Rússia era um mistério. Esse mistério se desfez para você, após sua visita, ou se aprofundou?

G. M. N. – A Rússia é sempre um assunto fascinante para repórteres – e também para acadêmicos.O mistério não se desfez. A resenha escrita por Amin Stepple Hiluey na versão em português e online do Pravda diz que o balanço sobre o naufrágio da URSS pode durar tanto quanto a própria revolução. É um tema apaixonante.

Faço a mesma pergunta que você costuma fazer às personalidades que entrevistou pelo mundo afora: se você fosse definir o repórter Geneton Moraes Neto numa palavra, qual usaria?

G. M. N. – Solitário.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)