Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma língua e muitos sotaques

Não tenho a menor idéia se é verdade, mas a história foi contada como verdadeira: Rui Barbosa viajou a Portugal acompanhado da esposa, a excelentíssima senhora Maria Augusta Viana Bandeira. Em uma cerimônia, a excelentíssima comenta com o marido o sotaque português da anfitriã. A qual anfitriã, imediatamente, retruca à convidada: Sotaque, minha senhora? Que sotaque? A língua é minha e o sotaque é seu!

A história vem a propósito do 5o Congresso Internacional da American Portuguese Studies Association, hospedado na University of Minnesota, entre 5 e 7 de outubro de 2006. Desde a palestra de abertura, Escritores, mensageiros da Memória, a cargo da escritora moçambicana Paulina Chiziane, a questão de línguas e sotaques entrou em pauta.

E dela não mais saiu…

Ao final de sua palestra, Chiziane expressou sua preocupação pelo fato de a língua que os miúdos ouvem na TV de Moçambique ser diferente da língua que os mesmos miúdos aprendem nas escolas. Por língua que os miúdos ouvem na TV de Moçambique, entenda-se o português das novelas da Rede Globo.

Cáspite! exclamaram meus botões.

O tema – a modalidade brasileira da língua portuguesa – estava posto, e posto como problema. Repontou em vários momentos, inclusive na bela palestra proferida por Boaventura Santos (Portugal: at crossroads of different historical times). Seu comentário sobre o português brasileiro foi sutil, formulado na vizinhança de sua fina sugestão de uma vocação colonizadora da antiga Terra de Santa Cruz: para o palestrante, a corrente discussão das cotas para negros nas universidades brasileiras é o modo – tardio e não espontâneo – de o Brasil assumir, com relutância, sua identidade não européia.

Ora, pois! espantaram-se meus botões.

No encerramento do Congresso, mais um capítulo do folhetim Quem colheu a última flor do Lácio… A propósito do filme angolano O herói, do qual participam as atrizes brasileiras Maria Ceiça e Neusa Borges, de novo levantou-se o tópico do português brasileiro, agora trazido à baila a partir da fala das atrizes brasileiras. Alguém da platéia levantou a questão se não poderiam elas esforçar-se mais para falar como se fala em Angola ou se o filme não deveria ser dublado.

Valei-me, Nossa Senhora (Aparecida, não de Fátima …)! precaveram-se meus botões

Lusofonia monolítica

Todas estas restrições ao português brasileiro espantam. Apontam para uma inacreditável crença na homogeneidade lingüística, tanto do que no congresso era chamado (por moçambicanos, lisboetas e angolanos) de português (desadjetivado) quanto no que lá era chamado de português brasileiro. Meus botões ficaram pasmos. Numa conferência internacional sobre Luso-African-Brazilian Literatures and Cultures and Portuguese Language and Linguistics, num momento em que as ciências humanas incluem multiculturalismo e mestiçagem como episteme de seu discurso mais requintado, esta crença numa lusofonia monolítica e sem sotaques poderia soar como ingenuidade, simples ignorância de quem não leu a bibliografia ou não fez direito a lição de casa.

Mas se se tratar de ingenuidade – e é difícil creditar ingenuidade a tão titulados congressistas – trata-se de uma ingenuidade que – como sempre – tem também uma face política. Nem por nascer com as melhores das intenções ou ser fruto da mais honesta (ainda que simplória) especulação intelectual deixa a ingenuidade de ter uma face política. E é sobre esta que talvez devam debruçar-se não só estudiosos de questões de linguagem, mas todos os que têm assento nos vários fóruns em que se discute a propalada lusofonia: discussões que se fazem à sombra de instituições, inclusive e sobretudo instituições universitárias, interlocutoras de peso na discussão e implementação de políticas culturais.

Qual é mesmo a fonia da lusofonia? Ou seja: quem decreta qual fala tem sotaque e qual fala não o tem? Será que línguas têm donos, como dizia a anfitriã do senhor e senhora Rui Barbosa?

Se as línguas são objeto de propriedade, talvez valha a pena ressuscitar uns versinhos, anônimos e faceiros que devem ter divertido quem em maio de 1876 leu no jornaleco O polichinelo que:

‘O Rei não obra só; pois, na linguagem,

Obra mais do que o Rei a vassalagem’

Em suas páginas, hoje amarelecidas, uma sábia reflexão: questões de língua são sempre jogo de braço – e jogo duro – entre reis e vassalagem – palavras que bem podem identificar quem é dono da língua e quem é dono do sotaque… Mas resta sempre saber quantos são os reis e quantos são a vassalagem

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Professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie e Unicamp