Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Uma vida e um sumiço, segundo Callado

O olhar determinado, de feroz intensidade, deixava seus interlocutores desconfortáveis, até com medo. Era o olhar de um homem capaz de enfrentar, desarmado, uma nuvem de flechas envenenadas e sair incólume em meio a cobras peçonhentas e piranhas enlouquecidas por sangue. Percy Harrison Fawcett, um dos maiores exploradores da história, desbravou recantos da Amazônia onde nenhum homem branco havia colocado os pés – e o fez numa rapidez impressionante, tendo sobrevivido miraculosamente a muitos companheiros. E, no entanto, um dia desapareceu. Até hoje não se sabe o que teria acontecido a ele, seu filho James e o amigo Raleigh Rimmel. Eles formavam a cabeça de um expedição em busca da mítica Eldorado, a Atlântida brasileira, uma cidade perdida em meio à selva amazônica, a qual Fawcett chamava simples e misteriosamente de Z. A hipótese mais aceita é de que tenham sido mortos por índios.

Vinte e sete anos depois, em 1952, Antonio Callado, então um jovem autor de dois romances, repórter do Correio da Manhã, recebeu um inusitado convite de Assis Chateaubriand, dono dos rivais Diários Associados: viajar ao lado do filho caçula de Fawcett, Brian, e outros jornalistas, para o local onde se pensava estarem os ossos do explorador britânico. O esqueleto encontrado num local apelidado de Lagoa Verde, checado e ‘aprovado’ pelo grande sertanista Orlando Villas Bôas (para quem ‘a morte de mil Fawcetts interessa menos do que a amizade dos índios’), acabou se revelando ser de homem bem mais baixo, o que descartava a possibilidade de pertencer ao indômito aventureiro, mas isso não impediu Callado de publicar uma das melhores reportagens já feitas no Brasil.

Como num peculiar romance policial, em que não há corpos nem assassinos, Callado investiga o próprio coração de nossa identidade ([nessa viagem] ‘nós vamos encontrar, a nós e aos nossos tristes prodígios’). Num estilo literário que revelava já o futuro escritor de Quarup, livro fortemente influenciado por essa experiência, seu relato traz informações e comentários pertinentes, mas também irônicos, idiossincráticos, sobre não apenas a expedição em busca de uma explicação para o sumiço de Fawcett, mas também a natureza quase infantil, isenta de culpa, dos índios, que tanto confunde os ‘ocidentais’, a vaidade por tantas vezes inútil dos homens e a febre provocada pelo desconhecido.

‘Inocência também pega’. É com essa frase curiosa, de impacto, que Callado prepara o leitor para o que segue. Refere-se, claro, aos índios e sua cândida nudez, tanto a literal quanto a metafórica. Sua impressão, no entanto, vai mudar depois dos incontáveis desconfortos da aventura e das dificuldades impostas pelos problemas de comunicação com as tribos. Noventa páginas depois, escreve: ‘muito daquele encanto inicial virou irritação’. A essa altura, já foi mil vezes mordido por muriçocas, o pé está cheio de bolhas, a fome é exasperante e o propósito da viagem se esvaiu numa nuvem de mistério. Mas não perde sua conhecida elegância, nem o humor inteligente, de observador agudo. Ao retratar as patéticas tentativas de um jornalista, com mímicas espalhafatosas, de fazer com que os índios reconstituam a cena do crime, na qual supostamente mataram o explorador britânico, sua palavras são mortais para com o colega de profissão: ‘a cena toda ia naufragando em irreprimível comédia’.

A nova edição da reportagem está bem caprichada, trazendo apêndices valiosos como a transcrição do documento histórico de 1753, em que um bandeirante anônimo descreve uma prodigiosa cidade abandonada no meio da selva, e que se tornou o principal combustível para a obsessão de Fawcett. Traz ainda trechos dos diários do próprio Callado, reunidos por sua viúva, Ana Arruda, e textos excelentes, bastante elucidativos, de David Arrigucci e Mauricio Stycer.

‘A Cidade Perdida’

Quem se interessar pelo tema, deve ler também A Cidade Perdida (Companhia das Letras, tradução de Claudio Carina, 424 págs., R$ 51,50), longa e saborosa reportagem do americano David Grann, da New Yorker. Menos brilhante do que a prosa de Callado no aspecto intelectual, é, ainda assim, um excelente livro de aventuras, por vezes tão inacreditáveis que lembram romances como As Minas do Rei Salomão, de Rider Haggard, não por acaso um grande amigo de Fawcett à época – o que faz pensar no explorador como um tipo quixotesco que, inebriado pelas promessas dos livros, lança-se em abismos insondáveis. Narra a vida do lendário coronel desde suas andanças no Ceilão, até seu desaparecimento na Amazônia, com passagens impressionantes pela Bolívia e no front da Primeira Guerra. Tudo ilustrado por uma bela coleção de fotos, que dá um lustro factual a histórias tão impressionantes.

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Trecho

Aquém do Bem e do Mal

Inocência também pega. Logo que a gente chega ao Posto Culuene, da Fundação Brasil Central, o choque demasiado bruto paralisa o raciocínio. A gente só sabe que saiu da cidade de São Paulo, num aparelho monomotor, umas sete horas antes: como é possível que agora, à beira daquele rio, homens e mulheres estranhos, mongoloides, inteiramente nus, cerquem o avião?

Mas inocência pega. Ao cabo de duas horas não estamos mais empenhados em fingir que não reparamos na nudez dos índios. Passamos, ao contrário, a encará-la com naturalidade. E a vitória foi puramente da inocência deles, da candura e falta de malícia deles. De toda a nossa indumentária — das botas ao chapéu — os índios e as índias só prezam uma coisa: a camisa, que protege dos mosquitos. Tudo mais que usamos é, portanto, incompreensível para eles. Mas dizendo ‘incompreensível’ dizemos mal. Por que haveriam eles de tentar compreender a razão de andarmos com tantos panos em cima da pele? Acaso perguntam ao poraquê por que dá choques ou à onça por que tem pelo? O que não lhes ocorrerá jamais é que tenhamos motivos psicológicos para usar roupa, ou que, por termos começado um dia a usar roupa, não a possamos mais abandonar por motivos psicológicos.

O índio (a menos que já tenha sido civilizado) não faz perguntas embaraçosas pelo simples fato de não conhecer o embaraço. É uma criança. Ainda vive aquém do Bem e do Mal. Mas como se explica então que aqueles índios que nos maravilharam com sua castanha nudez e seu riso puro, ao chegarmos, sejam os mesmos que, através de cerrados e varjões, nos levaram à beira da lagoinha esverdinhada para nos apontar a cova de um homem que assassinaram? Como estão aquém do Bem e do Mal se mataram e esconderam o morto, como qualquer criminoso de novela policial? Haverá um erro de cronologia no Gênesis? O primeiro assassínio terá ocorrido antes da perda da inocência, antes da tentação da serpente? É no capítulo 3 que a gente encontra:

‘Viu, pois, a mulher que a árvore era boa para comer, e formosa aos olhos, e deleitável à vista: e tirou do fruto dela, e comeu e deu a seu marido, que também comeu. No mesmo ponto se lhes abriram os olhos; e tendo conhecido que estavam nus, coseram umas folhas de figueira, e fizeram para si umas cintas.’

Só no capítulo seguinte vamos encontrar o homicídio que é o ponto de partida da história da humanidade: ‘Caim porém disse a seu irmão Abel: Saiamos fora. E quando ambos estavam no campo, investiu Caim com seu irmão Abel, e matou-o’.

É bem verdade que as índias calapalos, se não cosem folhas de figueira, trançam a fibra e recortam o broto do buriti para fazerem seu uluri. Mas o uluri é um ‘cache-sexe’ simbólico. Tem um significado cultural, mas nada tem a ver com o pudor e nada oculta. Quanto aos índios calapalos, estes não cosem coisa nenhuma. E no entanto matam, matam fora da guerra, matam e quando se lhes pergunta onde está o morto também dizem: ‘Não sei. Acaso sou eu o guarda de meu irmão?’.

Durante meses a fio Orlando Villas Boas, o maior amigo branco que têm os calapalos, interrogou-os pacientemente acerca do explorador inglês desaparecido. Quando os calapalos desconversavam, aborrecidos, o sertanista falava noutra coisa. Um dia, quando todos fumavam no terreiro, Villas Boas aguilhoou Cuiuli, um dos índios mais velhos dos calapalos.

— Aposto como você não sabe onde estão os ossos do coronel Fawcett.

— Sei! — foi a resposta.

— Se sabe me leve lá.

Os índios se entreolharam. Villas Boas, que já explorara a vaidade intelectual do que orgulhosamente dissera saber, explorou a vaidade física de todos os chefes.

— Dou aos chefes calapalos uma arara vermelha se me levarem aonde estão os ossos.

Os chefes se viram todos de penas encarnadas na orelha. De mais a mais, se confiam em algum caraíba confiam em Villas Boas, e este já se cansara de lhes dizer que os outros caraíbas não estavam mais ‘brabos’ com a morte do ‘ingueresi’. Só queriam era sa ber como tinha ele morrido. Os índios o levaram então para uma lagoinha entre o rio Culuene e seu afluente Tanguru. Subiram um barranco e, entre o chão limoso e as árvores folhudas, o atual cacique dos calapalos, o índio Cumatsi, falou das 11h15 da manhã às 2h30 da tarde, contando como ali haviam sido assassinados três homens — aparentemente Fawcett, seu filho Jack e um amigo deste, Raleigh Rimmell. Depois disse ao sertanista:

— Cava.

Não foi preciso cavar mais de meio metro. Não era um túmulo. Era um apressado buraco, aberto sem dúvida havia muitos anos, e nele, sujos de terra e já meio enleados em raízes, uma caveira e um montão de ossos. Comprovava-se, afinal, a morte do coronel Fawcett.

Isso tudo ocorria em abril de 1951. No entanto, quando lá estivemos nós em janeiro de 1952, convidados pelo sr. Assis Chateaubriand para integrar, pelo Correio da Manhã, a expedição formada pelos Diários Associados e cujo centro era Brian Fawcett, filho do explorador desaparecido, já então sabíamos que os ossos não eram do coronel Fawcett. Tanto o Royal Anthropological Institute, de 21 Bedford Square, em Londres, como os antropólogos do Museu Nacional de S. Cristóvão concordavam num ponto básico. Aqueles eram os restos mortais de um homem bem mais baixo do que o coronel Fawcett, que media 1,86 metro (seis pés e meia polegada). Segundo o Royal Anthropological Institute, os ossos examinados eram de um homem de 1,70 metro (cinco pés e sete polegadas), e, segundo o laudo do dr. Tarcísio Messias, do Museu Nacional, o cálculo feito pelo comprimento dos fêmures, cúbitos e rádios dá uma altura de 1,66 metro ou 1,68 metro. A dentadura sobressalente deixada por Fawcett na Inglaterra também não se ajustava à mandíbula da caveira. Mas bastava a prova da altura para pôr fora de combate o coronel Fawcett. Ora, segundo Brian Fawcett, seu irmão Jack era mais alto do que o pai, e Raleigh Rimmel, o mais baixo dos três, seria homem de 1,78 ou 1,80 metro (cinco pés e dez-onze polegadas).

Ademais, a pertencer a um dos três exploradores, os ossos deviam ser, efetivamente, do coronel Fawcett, pois as suturas do crânio, segundo o laudo do Museu Nacional, fazem supor que a ossada fosse de um homem maduro. Jack e Raleigh tinham ambos menos de 25 anos. Assim, fique desde já sabendo o leitor que neste romance policial a falta de ortodoxia é insuportável: não conseguimos identificar o cadáver encontrado nem conseguimos apontar o assassino ou os motivos do crime. Achamos que a história valia a pena graças à personalidade simbólica do coronel Fawcett e também porque o nosso tipo de colonização do interior merece algumas observações, principalmente ao vermos que lida com homens que ainda desconhecemos profundamente, os índios. Vivendo aquém do Bem e do Mal, têm o ardil de ocultar durante anos um crime que cometeram à beira de uma lagoa (que é na realidade a ponta de um braço do Culuene) no seio da mata. Instados, aperreados sem cessar com o caso Fawcett, resolvem atribuir o esqueleto enterrado ao pé da lagoinha ao inglês…

Não deixam de ter um certo senso de humor.

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O autor

Antonio Callado, escritor, jornalista e teatrólogo, nasceu em Niterói (RJ), em 1917. Trabalhou no Correio da Manhã e Jornal do Brasil. Escreveu diversos romances, entre os quais Assunção de Salviano (1954), A madona de cedro (1957), Quarup (1967), Bar Don Juan (1971), Reflexos do baile (1976), Sempreviva (1983); produziu peças de teatro, como Pedro Mico (1957) e A revolta da cachaça (1983), livros de reportagens, como Esqueleto na Lagoa Verde (1953) e Vietnã do Norte (1969), e de contos. Recebeu diversos prêmios, entre os quais o Juca Pato, da União Brasileira de Escritores (1989), e foi membro da Academia Brasileira de Letras. Antonio Callado faleceu em janeiro de 1997.