Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘Vanguardas desconfiam do sistema midiático’

Em entrevista por e-mail, o professor José Marques de Melo apresenta algumas idéias de seu novo livro, A esfinge midiática.

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Este livro procura fazer um panorama do pensamento brasileiro sobre o sistema midiático no último decênio. A opção pelo termo ‘esfinge midiática’ refere-se a algo a ser decifrado no decorrer de sua história ou a algo que desafia os pesquisadores de forma mais intensa nestes tempos contemporâneos?

José Marques de Melo – A ‘esfinge midiática’ vem desafiando a sociedade desde o final do século 19, quando a imprensa se industrializou. Na tentativa de decifrar os enigmas decorrentes do seu impacto na sociedade, vários intelectuais construíram paradigmas cognitivos. Talvez o mais radical de todos eles tenha sido o espanhol Ortega y Gasset, que sugeriu o seu papel subversivo, endossando a ‘rebelião das massas’. A atitude dos intelectuais europeus situou-se, contudo, no plano especulativo, confluindo na primeira metade do século para engrossar o caldo do pensamento apocalíptico, capitaneado pelos filósofos frankfurtianos. Em contrapartida, os intelectuais norte-americanos trataram de ‘decifrar’ a nova ‘esfinge’ através de estudos empíricos, estocando evidências para embasar as políticas públicas. Tanto assim que as vanguardas ianques mantiveram sempre uma relação não preconceituosa em relação à mídia, convertendo-a em alavanca do desenvolvimento nacional. No caso brasileiro, presenciamos um cenário que reproduz em certo sentido a tradição temerosa dos europeus, o que tem propiciado a expansão dos sistemas midiáticos sem que a sociedade civil tenha contribuído para avaliar os efeitos da mídia e conseqüentemente engendrar ações coletivas para seu controle, estímulo e gestão sócio-cultural. A responsabilidade que compete à universidade tem sido negligenciada, minimizada, adiada. O que temos são investigações casuísticas, sem as indispensáveis correlações no tempo e no espaço.

O livro faz crer uma evolução inquestionável da importância econômica e da dependência do público na mídia brasileira no decorrer do seu desenvolvimento. Nesta perspectiva o senhor identificaria fatores históricos mais fundos na atual crise que a imprensa vive neste início de século?

J.M.M. – Os fatores históricos que moldaram o desenvolvimento da indústria midiática brasileira estão claramente enunciados na tese de doutorado que defendi na Universidade de São Paulo, em 1973, cujos argumentos estão disponíveis no meu recente livro História Social da Imprensa‘ (Editora da PUC-RS, 2003). Tratei ali de explicar que o desenvolvimento tardio da nossa imprensa decorreu não apenas da vontade política dos nossos colonizadores lusitanos, mas da conjugação de uma série de obstáculos (analfabetismo, ruralismo, obscurantismo, empreendorismo raquítico, gerência pública retrógrada etc.) que permaneceram imutáveis até recentemente. O nosso desenvolvimento econômico tem sido desnivelado no espaço nacional, condicionando o desenvolvimento das empresas midiáticas que nem sempre operam em situações típicas da sociedade capitalista. Por outro lado, o perfil cultural da nossa sociedade tem sido marcado pela exclusão cognitiva, transformando os meios de comunicação em agências de socialização intensiva, cujos usuários não foram nutridos pela rede escolar. Para completar o quadro, nossa democracia é ainda muito débil, sem que exista no interior do sistema midiático uma nítida consciência do seu papel como ‘quarto poder’ e em alguns casos enviesada, na medida em que os seus proprietários e os seus profissionais postulam o status de ‘suprapoder’.

O senhor identifica o que chama de ‘perplexidade e desconfiança em relação ao sistema midiático’ originária do que chama de ‘vanguardas intelectuais’, mas aponta uma evolução que considera positiva, no pensamento do professor Fernando Henrique Cardoso. O senhor cita uma fala do professor antes de assumir a presidência da República, exatamente numa reunião internacional de pesquisadores de comunicação.

J.M.M. – As nossas vanguardas intelectuais se comportam como se os usuários dos meios de comunicação de massa tivessem sido forjados culturalmente à sua imagem e semelhança. Por isso demandam das indústrias culturais conteúdos mais elevados, sem ter em conta que os padrões estéticos das grandes massas estão situados em patamares rasteiros. Poucos têm sido os intelectuais capazes de discernir com argúcia e competência o impacto da mídia na sociedade brasileira. Fernando Henrique Cardoso constitui uma exceção, justamente pela experiência adquirida na sua trajetória política, tendo acesso a dados riquíssimos para a tomada de decisões no terreno partidário. Quando ele fez sua paradigmática conferência no Congresso Mundial de Ciências da Comunicação (Guarujá, 1992), impressionando vivamente todos os seus participantes, denotava conhecimento não apenas sociológico, mas discernimento político adquirido durante sua caminhada como político oposicionista. Essa postura traduzia o enfrentamento da truculência dos governos militares em plano nacional e ao mesmo tempo a análise das mudanças substanciais que estavam sendo processadas no cenário avassalador da globalização.

O senhor veria, na comunidade de pesquisadores de comunicação, uma sensibilidade maior para perceber as mudanças, o novo, os novos paradigmas?

J.M.M. – A comunidade nacional dos cientistas da comunicação ainda está em processo de consolidação. Ele se compõe de dois segmentos. O mais influente é constituído por pesquisadores oriundos das ciências sociais e que não demonstram empatia suficiente com a mídia, adotando uma postura anticientífica porque retrataria à acumulação de conhecimento empírico. Por isso mesmo incute nas novas gerações que forma nas universidades um comportamento negativo, cultivando um sentimento de impotência diante dos desvios eventualmente existentes. O outro segmento vem se organizando a partir de jovens doutores que tiveram formação básica no próprio campo da comunicação, mas ainda não acumulou experiência suficiente, nem poder político, capaz de mudar os paradigmas dominantes. Seus integrantes tem consciência de que devem produzir conhecimento empírico, começam a faze-lo, mas ainda não acumularam evidências suficientes para se confrontar com os donos atuais do poder acadêmico. Descrevi este conflito latente em meu livro História do Pensamento Comunicacional (Paulus, 2003) e volto a resgatá-lo, sob a forma de desafio intelectual, nos primeiros capítulos de A esfinge midiática.

Ou a dificuldade estaria nos pensadores de outros campos, com maiores dificuldades para compreender a dimensão da importância que os fenômenos midiáticos apresentam agora?

J.M.M. – Os pensadores de outros campos do conhecimento que refletem sobre os fenômenos comunicacionais o fazem a partir de pressupostos externos aos sistemas midiáticos. Eles tratam de compreender a mídia como variável dependente dos sistemas econômicos, políticos ou sociais. A expectativa que temos em relação aos pensadores comunicacionais, em seus núcleos segmentados – estudos jornalísticos, estudos publicitários, estudos audiovisuais –, orienta-se no sentido de contemplar a mídia como fenômeno que tem múltiplas dimensões, mas que opera segundo lógicas específicas, buscando equilíbrio entre a oferta e a demanda. Conseqüentemente a contribuição a ser dada pelos jovens pesquisadores midiáticos situa-se na esfera da produção de estudos empíricos, comparáveis no tempo e no espaço, ensejando um arsenal cognitivo destinado a melhor os conteúdos midiáticos e seu desempenho sócio-cultural, em sintonia com as aspirações grupais e coletivas. Para ‘decifrar’ a ‘esfinge’ midiática, evitando vir a ser por ela ‘devorada’ significa acumular conhecimentos e formular políticas governamentais e empresariais de comunicação estribadas em mudanças de formatos, apropriações tecnológicas, eficácia gerencial etc.



Prefácio

A esfinge midiática, de José Marques de Melo, 335 pp., Editora Paulus (www.paulus.com.br), São Paulo, 2004; R$ 30,00

Quando a força da imprensa desponta nas sociedades democráticas, instaurando-se a mediação de jornais e jornalistas em relação ao exercício dos poderes constituídos, cria-se a metáfora do quarto poder, legitimador da vigilância civil diante do aparato governamental.

‘A imprensa é a vista da nação’, dizia Rui Barbosa,de forma bastante eloqüente, no início do século XX.

‘Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam ou distorcem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça.’ [ BARBOSA, Rui – A imprensa e o dever da verdade, Salvador, 1920 (3a. edição – Editora da USP, Clássicos do Jornalismo Brasileiro, 1990, p. 37)]

Mas, já naquela conjuntura, era possível vislumbrar o potencial desse moderno artefato simbólico, sobretudo quando ele necessita nutrir-se economicamente, e, para tanto, subordina-se às demandas coletivas. O dever de guiar a opinião pública é suplantado pelo desafio de preservar a própria saúde financeira.

Quem faz o diagnóstico preciso dessa mutação é o jovem Barbosa Lima Sobrinho. ‘Tantos progressos tornaram necessários orçamentos vultosos. Converteu-se o jornal muito mais num problema de dinheiro do que de credo político, literário. (…) Viu-se a imprensa obrigada a (…) servir as tendências populares, em vez de as orientar… (…) A imprensa torna-se simplesmente indústria.’ [BARBOSA LIMA SOBRINHO, A J – O problema da imprensa, Rio, José Álvaro Editor, 1923 (2a. edição – Editora da USP, Clássicos do Jornalismo Brasileiro, 1988, p. 31)]

O panorama adquire maior complexidade com o advento da mídia eletrônica – cinema, disco, rádio e televisão -, configurando uma espécie de determinismo cultural. O cidadão comum vê suas expectativas refletidas na agenda midiática, mas ao mesmo tempo se defronta com o mutismo gerado pela abundância de signos e conteúdos, inibindo o diálogo peculiar às comunidades pré-industriais.

Luiz Beltrão, com muita argúcia e sensível angústia, descreve essa situação-limite. ‘Na sociedade de massa, o comportamento da audiência está condicionado de modo crescente às novas técnicas e recursos que são utilizados pelos meios de comunicação massivos, transformados em indústria e, em grande medida monopolizados. É através deles que o indivíduo recebe informações, idéias e orientação, em mensagens uniformes, padronizadas. Assim, embora o direito de réplica se mantenha, não acontece o mesmo com os meios para torná-lo eficaz. Poucos são os particulares que podem ou estão capacitados a recorrer a outras fontes de informação e a sociedade é tão complexa que se torna impossível para cada um obter dela uma visão homogênea e coerente, apenas mediante os raros, rotineiros e específicos contatos interpessoais. Essa imagem viva e mais ou menos complexa se obtém através dos meios de comunicação, a que todos estamos expostos em muito maior parcela de tempo do que há um século.’ [BELTRÃO, Luiz – Sociedade massa: comunicação & literatura, Petrópolis, Vozes, 1972, p. 43-44]

Diante disso, é compreensível a cristalização de um sentimento de perplexidade e desconfiança em relação ao sistema midiático, manifestado sobretudo pelas vanguardas intelectuais. Em parte, elas reagiram ao estreitamento das possibilidades de criação estética, sentindo-se sufocadas pelas regras de formatação dos bens simbólicos instituídas pelas indústrias culturais. Racionando de modo egoísta, suas lideranças nem sempre foram capazes de perceber as contradições inerentes a essa engrenagem polimorfa. Daí a emergência de uma corrente de pensamento negativo, que se irradiou na academia qual rastilho de pólvora, durante a segunda metade do século XX, criando a sensação de um beco sem saída. Nela se embutia a tese falaciosa da mídia como superpoder, incontrolável pela sociedade.

Felizmente começam a brotar, nesta conjuntura de transição histórica, vozes estribadas na sensatez cognitiva, pautando-se menos pelos temores especulativos do que pelas evidências coligidas através da pesquisa empírica. Essa antevisão da luz no fim do túnel pode ser ilustrada através do convite à racionalidade crítica, bradado pelo cientista social Fernando Henrique Cardoso, no momento em que a comunidade mundial das ciências da comunicação se reuniu, pela primeira vez, em território brasileiro.

‘A comunicação continua sendo mais complexa do que se pensa (…). Ela passa por um outro fluxo de comunicação direta e vice-versa. O vice-versa tem a ver com o fato de que os próprios produtores da mídia, inclusive da mídia eletrônica, estão em conflito. Não sei se é de classe. Mas um conflito forte, que levam mesmo as mais poderosas redes que querem sustentar o poder a, num dado momento, se quebrarem e não conseguirem sustentar o poder. E então, também aí, é preciso que haja um novo pensamento sobre qual é o papel dos meios de comunicação nesse tipo de sociedade. Pois não é só o papel da passivização, não é só o de servir à voz do dono, é muito mais complexo do que isso. (…) Então eu não penso que na nova sociedade, os meios de comunicação sejam apenas o reforço da alienação. Uma parte o é, mas eu penso também que eles são o contrário. E que nesse ser o contrário, eles são partes essenciais do movimento da dialética entre os poderosos e os oprimidos, entre, às vezes, o estado e a sociedade civil.’

Esse chamamento ao exercício reflexivo, pautado pela lucidez investigativa e não pelo dogmatismo epistêmico, continha uma pungente e saudável autocrítica, robustecida pela autoridade do seu autor. Antes de se tornar político militante no Brasil, ele havia se legitimado internacional como expoente da Sociologia. ‘A grande questão que se coloca para pensar como a sociedade muda, é: qual é a verdadeira essência das forças presentes nessa sociedade. (…) Não dispomos, até hoje, nas Ciências Sociais, de teorias mais completas a respeito da mudança, porque elas, quase todas, não contemplam a questão da comunicação.’ [CARDOSO, Fernando Henrique – Communication for a new world?, In: MARQUES DE MELO, José, org. – Communication for a new world: Brazilian perspectives, São Paulo, ECA-USP, 1993, p.11-12]

Ficava evidente que a tarefa de pensar a comunicação na sociedade informacional, constituía um desafio a ser encarado, no seu conjunto, pelos estudiosos das humanidades, particularmente por aqueles situados no âmago da problemática contemporânea. Cabia, portanto, aos acadêmicos que privilegiam os fenômenos peculiares às indústrias culturais desvendar a ‘esfinge midiática’, sob o risco de serem devorados pela sua cupidez atávica.

Os textos reunidos neste livro traduzem um esforço desenvolvido, dentro e fora da academia, no último decênio, com a finalidade de corresponder a tal empreitada. O primeiro conjunto é formado por ensaios destinados a ordenar o campo midiático, no conjunto do universo comunicacional, adotando uma perspectiva histórica. O segundo bloco é constituído por incursões de natureza empírica, observando o comportamento de fenômenos emblemáticos da sociedade brasileira. O terceiro segmento foi agrupado em estilo mosaico, encaixando peças da minha intervenção no debate público das questões que, na atualidade, fisgam corações e mentes, aqui e alhures.

Sua publicação ocorre num momento apropriado, quando a comunidade internacional da nossa área de conhecimento volta a se reunir no Brasil. Depois do diálogo promovido na cidade paulista de Guarujá, em 1992, os integrantes da IAMCR – International Association for Media and Communication Research aceitaram o convite do segmento gaúcho dos pesquisadores midiológicos para agendar em Porto Alegre, em 2004, a sua conferência bienal.

Minha expectativa é a de que os fatos, idéias, hipóteses ou interpretações, constantes desta obra, possam estimular o pensamento midiático brasileiro a superar criticamente a inércia e a hesitação com que se vem debatendo na passagem do século, acossado em parte pela velocidade das mutações tecnológicas que nos atarantam, mas fustigado também pela sensação de orfandade intelectual decorrente da crise das ideologias.