Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Veja


MÍDIA vs. LULA
Marcelo Carneiro


Muito mais que uma parceria


‘Como se sabe, governos não produzem riqueza. Governos se apropriam da
riqueza gerada pelo engenho, arte e suor dos cidadãos e das empresas.
Principalmente por essa razão, as sociedades desenvolveram mecanismos de
vigilância sobre os governantes e autoridades com acesso ao segredo do cofre
onde se guarda o dinheiro produzido por todos. Esse cofre é chamado Erário nos
países de língua portuguesa e espanhola. Denomina-se Tesouro na maioria dos
países de colonização inglesa. A Grã-Bretanha prefere o termo Exchequer, cuja
origem é a mesa quadriculada (chequered table) que os invasores normandos no
começo do segundo milênio usavam, à maneira de um ábaco, para calcular as moedas
coletadas como impostos. Os termos variam, mas a noção básica fixada na vida das
nações civilizadas é a de que o Tesouro é da nação. O Tesouro não pertence aos
que estão na efêmera posição de vigiá-lo.


Por essa razão, faz parte da higidez das sociedades equilibradas e coesas que
os detentores da chave do cofre do Tesouro da nação sejam examinados por
critérios ainda mais rigorosos do que os demais. Não é só no Brasil que essa
vigilância é encarada como perseguição ou preconceito. Mas a compulsão em se
manter fora do alcance dos mecanismos de vigilância da sociedade tornou-se a
marca registrada dos atuais governantes brasileiros – no que são ajudados por
esbirros de toda ordem. No ano passado, VEJA revelou que a súbita multiplicação
do patrimônio e da renda de Fábio Luís da Silva, o Lulinha, filho do presidente,
coincidia com a chegada do pai à Presidência da República. De um simples
estagiário de biologia, Fábio Luís alçou-se ao posto de sócio da Telemar, uma
das grandes empresas de telefonia do país – com óbvios e claros interesses
pendentes no governo federal.


Mais tarde VEJA revelou que Lulinha se associara a uma das grandes emissoras
de televisão do país, a Rede Bandeirantes – que se tornou concomitantemente
destino preferencial de verbas de publicidade distribuídas pela própria
Presidência da República e por empresas estatais. Lulinha é um dos sócios da
Gamecorp, que se associou à Rede 21, canal que pertence à Bandeirantes. As
revelações passaram a ser tratadas como tabu. Durante a recente campanha
presidencial, a oposição achou que seria inadequado levantar a questão, que
definiu erradamente como intromissão em assuntos de família. No Parlamento
ouviu-se uma ou outra admoestação sem conseqüência feita por políticos
oposicionistas. Não fosse a ação de uma promotora de São Paulo que decidiu
investigar a mudança para melhor na sorte financeira do filho do presidente
depois da posse do pai, a questão teria seguido o padrão africano, em que
potentados e seus parentes se postam acima da lei – enquanto quem os denuncia é
transformado em pária, indivíduo desrespeitoso, desleal e sem limites.


Na semana passada, uma inesperada revelação feita pelo jornal Folha de
S.Paulo trouxe de novo a questão tabu para o centro das atenções. O jornal
descobriu que o juiz Régis Rodrigues Bonvicino, de São Paulo, estava encarregado
de julgar uma ação cível movida pela Rede 21, do Grupo Bandeirantes, contra a
Editora Abril, que edita VEJA. A emissora em questão é aquela que se associou ao
filho do presidente. O juiz Bonvicino aceitou estudar a ação, mas indeferiu de
pronto dois pedidos dos acusadores: primeiro, o de que o contrato entre o filho
do presidente e a emissora fosse mantido em segredo e, segundo, o de que VEJA
fosse obrigada a publicar a resposta dos acusadores antes mesmo de julgada a
ação. A abertura do contrato e a revelação de seus termos não poderiam ser mais
positivas para a proteção do Tesouro.


Da leitura dos termos do contrato se depreende que:


• Os recursos obtidos de órgãos oficiais e de empresas privadas pela Gamecorp
e pela Rede 21 são divididos meio a meio.


• O que oficialmente é apresentado como uma simples ‘venda de conteúdo
televisivo’ da Gamecorp ao canal de televisão tem os contornos de um compromisso
bem mais profundo que beira a transferência de concessão pública. Isso é
tolerado no mercado, mas não tem total amparo legal.


• A empresa de Fábio Luís pode chegar a ocupar 22 das 24 horas em que o canal
fica no ar. Para um especialista em legislação societária e um advogado com
atuação no mercado de televisão ouvidos por VEJA, não existe nada parecido no
mercado. Esse grau de ocupação previsto no contrato para uma ‘terceira fase’
configuraria a transferência de concessão pública.


A questão está longe de se aclarar completamente. As relações da emissora com
o filho do presidente podem ser perfeitamente legais. É inescapável, porém, que
o fato de o negócio ser azeitado por generosas fatias de dinheiro sob a guarda
do Tesouro mas pertencente aos cidadãos – parte desses recursos controlada
diretamente pela Presidência da República – torna a transação de interesse de
todos os brasileiros. Foi justamente isso que o juiz Bonvicino reconheceu ao
decidir abrir ao público os termos do contrato. Escreveu Bonvicino: ‘Convém ao
interesse público que o contrato seja regido pelo princípio da publicidade
porque um dos contratantes é filho do presidente da República (…) e a Rede 21
e o Grupo Bandeirantes são regidos por normas públicas’. O processo contra VEJA
em virtude das revelações que fez continua criminal e civilmente. A emissora se
sente vítima de calúnia e difamação. Pede também uma indenização por danos a sua
imagem que a revelação de detalhes de sua associação com o filho do presidente
teria causado. Em qualquer país civilizado do planeta, quem estaria pressionado
a dar explicações e ser processado seria a emissora que se associa ao filho do
presidente – de maneira legal ou fraudulenta, não importa – para, juntos,
atraírem verbas públicas. Desserviço ao Brasil é tratar o assunto como uma
intromissão indevida na privacidade familiar do presidente ou como uma disputa
comercial de um órgão de imprensa contra outro. O sujeito de tudo isso é o
Tesouro, a riqueza da nação. Como se sabe, governos não produzem riqueza.


O CONTRATO ABERTO


Embora a Rede 21, do Grupo Bandeirantes, sustente que apenas compra material
produzido pela Gamecorp, produtora do filho de Lula, especialistas que
analisaram o contrato consideram que a operação realizada entre as empresas pode
caracterizar transferência de concessão pública. Isso porque, pelos termos da
parceria, a Gamecorp poderá ocupar até 22 das 24 horas diárias de programação do
canal, além de se responsabilizar por boa parte da receita da operação.’


TELEVISÃO
Marcelo Bortoloti


Global, ‘pero no tanto’


‘A Rede Globo exporta novelas há pelo menos trinta anos, e sempre teve
orgulho em propalar o sucesso que suas produções fazem lá fora. Nada mais justo.
Seus folhetins já lançaram moda em muitos países. Escrava Isaura tornou Lucélia
Santos uma celebridade na China e incorporou a palavra fazenda ao vocabulário
russo. Roque Santeiro virou nome de praça em Angola e fez com que crianças
fossem batizadas de Porcina – a viúva interpretada por Regina Duarte – em
Portugal. O impacto das novelas globais na América Latina já virou tema de
dúzias de teses acadêmicas. Foram anos dourados entre as décadas de 70 e 90.
Hoje a realidade da gigante brasileira é bem mais opaca no cenário
internacional. Sua audiência definhou nos últimos anos. Na América Latina, onde
as novelas da Rede Globo sempre tiveram um histórico de liderança, elas já não
figuram entre os vinte programas mais vistos, com exceção de Senhora do Destino
(no Uruguai) e América (no Equador). Os dados são de um levantamento feito pelo
Ibope no mês de setembro em onze países da região. Em Portugal, nos últimos seis
anos a audiência da emissora caiu pela metade – enquanto O Rei do Gado, exibida
em 1997, costumava ter média de 23 pontos, Cobras & Lagartos, atualmente em
cartaz, tem 10, e Bang Bang, menos de 1 ponto. Na China e na Rússia, a despeito
dos tempos de glória, a Globo não tem hoje nenhuma novela em cartaz.


O cenário é fruto de uma transformação no ramo da teledramaturgia nos últimos
anos. Quando a Globo começou a exportar novelas, em 1975, o gênero tinha pouca
concorrência no mercado mundial. Eram raros os países da América Latina com
capacidade de produção própria. Na Europa predominavam as televisões estatais,
com uma produção local rala e sem nenhuma concorrência comercial. Na China e em
outros países comunistas havia um bloqueio contra produções americanas, ou seja,
um mercado praticamente livre de competição. O mérito da Rede Globo foi
conseguir entrar em todos esses lugares, com produções de reconhecida qualidade,
e abrir o mercado para o gênero. Desde então as telenovelas caíram no gosto da
platéia, e atualmente seu público estimado é de 2 bilhões de telespectadores em
todo o mundo. São produzidos em média 500 folhetins por ano – destes, apenas
seis são da Globo. ‘O negócio mudou. Hoje existem mais produtores de novelas do
que dez anos atrás’, reconhece Raphael Corrêa, diretor de vendas internacionais
da Rede Globo. ‘Isso não quer dizer que nos tornamos menos competitivos. Estamos
tão competitivos quanto antes, mas num outro ambiente.’


Novas opções de conteúdo começaram a surgir na televisão européia já em fins
dos anos 80, com o aparecimento das emissoras comerciais. De lá para cá, as
produções locais, que não tinham qualidade nenhuma, se aperfeiçoaram – o que
desalojou as novelas do Brasil. ‘Desde 1999 as novelas brasileiras têm menor
audiência em Portugal. Caíram de cerca de 35% do share para 10%’, diz a
portuguesa Isabel Ferin, especialista em telenovelas da Universidade de Coimbra.
Não é difícil entender o porquê. Novelas locais, com temas e atores mais
próximos à realidade do país, estão ganhando a preferência do público. Hoje a
audiência da televisão portuguesa é liderada por duas produções lusitanas: Doce
Fugitiva e Tempo de Viver, ambas da emissora TVI. ‘As novelas brasileiras têm
muito sexo, o que torna desconfortável vê-las em família’, observa Isabel Ferin.
O fenômeno é muito semelhante na América Latina, onde as produções locais
passaram a fazer mais sentido que uma novela dublada. Os folhetins da Globo,
antes exibidos em horário nobre, migraram para a tarde ou a madrugada.


Nesse meio-tempo, as empresas latinas afiaram suas garras no lucrativo
mercado das telenovelas. Ao lado da gigante Televisa, do México, surgiram outras
grandes como Venevisión e RCTV, da Venezuela, Telefe e Artear, da Argentina,
Caracol e RCN, da Colômbia, e Tepuy, da Espanha. Os americanos também entraram
na briga. O grupo Fox lançou neste ano duas novelas no mercado doméstico,
Fashion House e Desire. Sem nenhuma tradição em dramalhões, até a Alemanha já
ingressou nessa seara – nos últimos dois anos o canal ZDF produziu três novelas:
Bianca, Julia e Tessa, não por acaso com inspiração latina. A Rede Globo passou
a enfrentar concorrência até mesmo no mercado nacional depois que a Record
obteve relativo sucesso na exportação de seus folhetins. Em dois anos, a versão
da emissora para A Escrava Isaura foi vendida a quinze países (atualmente ocupa
o primeiro lugar na Guatemala, segundo o Ibope). O padrão de qualidade das
novelas globais ainda supera de longe o dos dramalhões hispânicos. Esse mérito
não se pode subtrair. E a própria emissora se gaba de ter elevado seu
faturamento com vendas internacionais nos últimos anos – na década de 80, ele
girava em torno de 20 milhões de dólares ao ano, e hoje, embora a Globo não
divulgue números, estima-se que fature 40 milhões de dólares. Só não conseguiu
acompanhar o ritmo das concorrentes estrangeiras, que cresceram mais do que isso
com produções que custam menos da metade do preço.’


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