Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Viagem à última estante de um sebo

Em recente incursão a um sebo de São Paulo, fui à última estante, no fundo mais fundo do estabelecimento, à procura de pérolas perdidas, vestígios de outras épocas, obras raras que não fossem tão caras, mas tivessem algum valor.

E lá encontrei quatro números (1, 5, 11 e 12) de uma revista francesa da década de 1960 chamada Janus. O preço de cada exemplar (3 reais) denunciava sua falta de importância para o grande público. E para o pequeno e especializado também, pois não conheço bibliófilo algum que tenha sonhado encontrar essa revista em suas buscas livreiras.

Os que nela escreviam são nomes que pertencem a um mundo esquecido: Daniel-Rops, Pierre Grimal, Jean Guitton, Jacques Madaule, Claude Tresmontant, Gabriel Marcel…

O número 1 explica o porquê da publicação. A figura mitológica que inspira a iniciativa é o deus Janus, de dois rostos, um voltado para a frente, outro para trás, de onde vêm o nosso mês de ‘janeiro’ (último adeus ao ano anterior, primeira saudação ao novo ano) e a palavra ‘janela’ (abertura para fora e para dentro…)

Presente, passado

De fato, a revista, como diz o subtítulo, trabalha com o passado e o futuro (‘L’Homme, son Histoire et son Avenir’), e já naquela estréia, em pleno mês de maio de 1964, preocupa-se com o possível apocalipse atômico e, ao mesmo tempo, com as raízes judaicas do cristianismo. O Concílio Vaticano ainda estava em andamento.

O número 5 de Janus pergunta-se sobre o Homem e seus ídolos. Culto à raça, ao dinheiro, à nação, às estrelas do cinema, à máquina, aos Beatles… Vê-se uma foto dos músicos (os cabelos começando a ficar compridos) com Cassius Clay, então campeão mundial de boxe.

O número 11 traz estudos sobre o capitalismo, quando ainda fazia sentido opô-lo de igual para igual à experiência socialista.

E o número 12, cujo tema é educação, traz um artigo de Robert Escarpit – ‘Je suis professeur, pour quoi?’. Assistia-se à progressiva massificação do ensino. O articulista conta que em 1958, como professor de uma faculdade tradicional, cuidava de 20 estudantes: ‘Hoje, em 1966, tenho a mesma responsabilidade, mas para com 150 estudantes!’

Com os dedos empoeirados de século 20, guardarei as revistas no meu escritório. Um documento a folhear, para quando quiser lembrar que o passado, como sabemos, é aquilo que não passa.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; (www.perisse.com.br)