Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Vontade geral’: de mitos a micos

Segundo Benjamin Constant, a ‘vontade geral’ é a única fonte legítima da autoridade dos governos. Falta, porém, acrescenta ele, ‘definir exatamente’ o que se deve entender por soberania – e, especialmente, por soberania do povo. Falta ainda ‘determinar até onde deve exercer-se o poder’. (O que é o poder. Gerard Lebrun. Coleção primeiros passos, pág. 74. Editora Brasiliense, 1984, São Paulo.)

O leitor é um personagem bem estranho. É aquele para quem se fala, escreve, mas que continua sendo um ser absurdo, não presencial. Pode ser aquele que não nos emociona. E que somente se torna tangível quando se apresenta protagonista de um drama, e se torna através do fato, a sombra com rosto e emoções.

Em tempos idos, em que o saber estava entre poucos, a definição de povo entrava no componente da discussão como a figura acessória, passiva, receptora da mensagem que, sofismada ou não pelo douto, funcionava apenas como o espelho sem brilho. A mensagem era dada, questionada por pares e exibida à platéia, mera coadjuvante e espectadora.

Poder sofístico

A tal ponto que essa massa espectadora era visualizada dentro de uma fantasia, presente apenas na imaginação do autor, o qual, dono de um poder imaginário, a personificava a seu modo.

Poucas vezes na história o povo, ou a ‘vontade geral’, ganhou as ruas e mostrou um lado assustador do que passou a ser chamado de poder das massas. Em linhas gerais: a revolução francesa e o movimento bolchevique.

E o susto causado por essa movimentação aos donos do capital foi atenuado pela classificação de movimentos supostamente espontâneos, mas impulsionados pela tal ‘vontade geral’, como isso mesmo, massa. A própria empulhação, no seu sentido mais baixo, de zombaria, para o nome que define o povo, que demonstrava o desprezo do autor, dono do poder sofístico.

Do mito à realidade

O boca-a-boca, o boato, foi enfim organizado pela informação impressa. Até porque a palavra impressa tem o poder de se portar como documento, como o inquestionável. O boato é uma fonte rica de divulgação do falso, do arbitrário e do interesse. Este boato, organizado e tiranicamente ordenado, tornou-se o poder que conduzia, supostamente, à soberania popular, e com o passar do tempo ao descrédito.

Com o advento do progresso humano, basicamente na tecnologia e no isolamento de muitos povos, criando as ilhas de felicidade, a informação passou a exercer um papel diferente.

Utilizando o espelho de Narciso, a evolução econômica dessas ilhas de felicidade, o egoísmo, tomou conta de determinados guetos populacionais no mundo, e a informação assumiu um outro papel: o de mantenedor de uma ordem supostamente hegemônica. A ignorância da realidade daqueles que deveriam – por sua evolução tecnológica – ser os mais questionadores, tornou-se o libelo da manutenção do suposto apogeu.

Antevisto há muitos anos, o Grande Irmão tornou-se o proprietário do poder, aceito inconscientemente pela sociedade luxuosa: basicamente a Americana do Norte, Européia e, mais distante, o mundo Nipônico. É importante falarmos não de países, mas de gerações espalhadas pelo mundo, que adotam o estilo de vida, não só no consumo como na visão política de sociedade.

Esses guetos organizaram a informação, fato que foi brilhantemente definido em um filme – República dos Assassinos, a partir de uma obra de Aguinaldo Silva, um dos clássicos do cinema policial brasileiro. O repórter, que seria o narrador do texto, justifica que a banalização da criminalidade, do tratamento jocoso e trivial, seria uma forma de sinalizar ao excluído da sociedade que a aceitação do crime e de seus desdobramentos odiosos era um fato a ser aceito como ‘normal’, próprio daquele mundo onde ele vivia.

Desdobramentos imprevisíveis

Aceito o fato, a própria ausência do poder público e o aparecimento do justiceiro, no melhor estilo bang-bang, tinha a sua razão de ser porque o mundo era aquele mesmo, o que cairia como uma luva na tão malfadada suportabilidade do brasileiro para a desgraça. E estaria a dita classe mais rica protegida num imenso condomínio virtual: o centro e a zona sul das cidades.

Assim foi até hoje, com a própria sociedade americana do norte. As guerras que aquele país impôs e impõe ao mundo, em nome da guarda dos seus valores e do seu condomínio territorial, seriam o mantenedor da ilha de felicidade invejada, que poderia se manter perpetuamente, enquanto o poder do armamento e a suposta hegemonia militar garantissem.

Mas, dentro da ilha de felicidade americana, o cinema apontava e criticava este mito, embalado pela informação, o real era falso, personificado em um filme chamado Os Seis Dias do Condor.

O mito guardião da informação, da única informação, inclusive argumentativa, era inabalável. Mas começou a desmoronar com o fracasso da guerra do Vietnã, o envolvimento em outros movimentos bélicos de efeitos duvidosos, e mais recentemente com o ataque terrorista do onze de setembro.

A guerra do Iraque – espera-se – deve ser a pá de cal, mas os seus desdobramentos se tornarão imprevisíveis. A capacidade de criar mitos de felicidade e segurança parece estar chegando ao fim.

Indiferença e ‘falta de educação’

Foi a moeda a primeira ferramenta eficaz da ‘vontade geral’ porque a moeda, pela singularidade de ser uma mercadoria única, produto básico de troca universal, é o patrimônio de bolso, literalmente. Depois dela, a internet é o segundo patrimônio que a ‘vontade geral’ dispõe. O poder econômico, e dono do quinhão maior da moeda, em mãos de poucos, adulterou este equilíbrio e tornou a informação um forte instrumento de manipulação moderna da tal ‘vontade geral’, agora não mais supostamente dominada por doutos, de intelecto privilegiado, mas subordinados ao dono das vontades, dos interesses, do dinheiro.

Mas quem é o dono da mídia eletrônica fugidia e mal-educada, que pode agora, longe da fuligem das ruas, ganhar uma amplitude muito maior, não mais subordinada às margens da imprensa escrita?

A tal ‘vontade geral’ ganha o mundo. Os donos da informação que teimam em manter os textos e as informações organizadas, ditando regulamentos aos discursos, hierarquizando informações, sentem agora o cheiro das caminhadas eletrônicas inundarem, sufocarem, abafarem os discursos que deveriam obedecer a um regulamento prévio.

A própria revolução venezuelana ganha as duas versões que podem ser finalmente comparadas. Os fatos são postos na mesa iluminada da tela do computador, e a própria ‘vontade geral’ ganha os ares de botequim, com o anonimato, com as sombras sem rostos, mas plenas de emoções aflorando, questionando, e não raro com argumentações lúcidas, respeitosas, elegantes, e também mal-educadas e patrulheiras, ombreando sábios até pouco tempo intocáveis.

Não raramente, vozes também laureadas por títulos, e que apenas não estão em evidência pelo simples fato de não estarem no lugar certo e na hora certa e, principalmente, ao lado de quem, põem em xeque os donos de suposto saber.

As regras foram para o espaço… cibernético. E nenhum pretenso dominador consegue se impor no caos, realmente sem controle, da internet.

O sociólogo e ex-presidente transmite o descrédito com o país, quando justamente este país está se questionando o tempo todo, via rede. O seu ar blasé diante da indiferença do brasileiro, com a idiossincrasia dos mitos, mostra, presumivelmente, uma má-vontade representamen daqueles que pensavam, imaginavam controlar o imponderável. E as declarações de indiferença soam como gafes.

Lado pecaminoso da vaidade

Com uma ‘vontade geral’ sem controle, que pode mudar, sim, o rumo de eleições, ignorar, desprezar o bloco de blogueiros independentes, como fez o Estadão, realmente é o mico da história da informação, mesmo à guisa de propaganda. Ou o artigo do editor-chefe de O Globo sobre o testar hipóteses. Situações que seriam outras, se diante do leitor sem rosto. Qual será o rei que está nu?

Não mais os doutores, pseudo-donos do saber podem se arvorar de ser a verdade perene, levemente questionada por alguns pares. O respeito acabou. Mas o respeito cerimonioso. A tela do computador igualou os olhares.

Não se pergunta mais aos livros, mas ao Google. E não é só uma resposta pronta, enciclopédica. É uma resposta diversificada. A platéia se iluminou e é coadjuvante, agora em tribos, torcida organizada, fornece argumentações, que se tornam irrespondíveis, diante de fatos, testemunhos globais, porém não televisivos.

A palavra está a um enter e assume as formas desejadas. O discurso não tem mais dono. Ficou sem controle.

A platéia também resolveu assumir o lado pecaminoso e maravilhoso da vaidade, de mostrar que também sabe e pode questionar, mesmo com falta de educação, sem regras. A massa ganhou contornos de confeitos e, apetitosamente, se torna consumida por seus pares, suas tribos. A ‘vontade geral’ finalmente mostrou a cara. Manter o mito virou mico.

******

Aposentado, pós-graduado em Estudos Literários, Juiz de Fora, MG