Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Yoani Sanchez e a vida na ilha

A cara amanhecida da ração diária de pão, a fila para uma consulta na policlínica, a onipresença opressiva daqueles cartazes exaltando glórias da pátria socialista, o comércio miúdo e clandestino de letras, de imagens e pequenas vantagens, a convivência com a dissensão sussurrada, a fricção diária com as engrenagens enferrujadas do sistema e nenhuma mudança ou esperança à vista na próxima curva da estrada – essa é a rotina de vida de milhões de cubanos, entre os quais Yoani Sanchez.


Ela, porém, tem o privilégio da voz. Hoje, talvez ela seja a blogueira mais conhecida do mundo – foi premiada e reconhecida por isso. Ganhou o Prêmio Ortega y Gasset de jornalismo digital, da editora espanhola Prisa, dona do El País, e foi indicada como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Em pouco mais de um ano, afetou mais os alicerces de uma revolução cinqüentenária e esclerótica do que toda a propaganda que se produziu contra essa mesma revolução ao longo de uma interminável batalha ideológica. Nem as 120 organizações oposicionistas que supostamente se mexem nas sombras da vida cubana foram capazes de mostrar com tanta clareza, fineza e contundência – e, acima de tudo, eficiência –, a inépcia de um regime que prometia a luz e só foi capaz de distribuir trevas.


Verdade oficial


Generación Y, o blog de Yoani Sanchez, se tornou a voz das pessoas comuns em Cuba. Filóloga, lida com as palavras com elegância e dá ao trivial do cotidiano dos cubanos a transcendência de uma angústia existencial que reflete a impotência de uma cidadania incompleta, castrada, que não têm canais de expressão nem liberdade de manifestação.


Em Cuba, claramente, ou se é comunista – de verdade ou de mentira, isso não importa, desde que se usufruam as vantagens dessa condição – ou não se é ninguém. Não se facilita às pessoas comuns o acesso aos dois bens mais escassos do regime: o pão e a liberdade.


Este livro não discute ideologias nem teorias políticas. Não defende teses nem pretende aviar receitas. Ele quer mostrar como foi que se criou esse fenômeno de expressão internacional, através do uso da internet, a formidável ferramenta tecnológica da rede mundial de computadores, e como foi que se produziu esse milagre de dar voz a quem não tinha e fazer com que essa voz ressoasse tanto em todo o mundo. Há posts de Yoani Sanchez que foram comentados por mais de 6 mil pessoas. É um número sem precedentes, um número que tem grande significado. Nenhum blog político em todo o mundo provavelmente atingiu números tão significativos. E o blog de Yoani é esse fenômeno exatamente porque é um blog político sem ser político, no sentido tradicional. Não discute política, teorias, partidos, plataformas, projetos, planos. Mostra o cotidiano sob um regime que é regido pela imposição forçada de uma única verdade oficial e o efeito de disfuncionalidade que ele provoca na vida das pessoas.


Vida normal


Yoani e seu marido Reinaldo, um jornalista que foi excluído dos quadros da imprensa oficial, que é a única tolerada no país, e que gravaram perto de 20 horas de depoimento para este livro, não têm partido nem plataforma política nem defendem ideologia sistematizada, conhecida ou identificável, a não ser a incondicionalidade de um valor inconteste, como a liberdade.


Uma plataforma plausível que contenha todas as reivindicações dessa jovem rebelde cubana de 34 anos, cuja aspiração não vai além de poder deixar como herança a seu filho Teo, de 13 anos, um país onde as pessoas sejam livres para escolher seu destino, pode estar resumida neste post escrito logo depois da passagem dos furacões Gustav e Ike por Cuba, em setembro de 2008:




‘A frase `voltar à normalidade´ é repetida pelos secretários gerais do partido. (…) O certo é que não creio que um mês atrás nós tivéssemos algo parecido à `normalidade´. E mais, nas três décadas que arrasto sobre os ombros, não creio ter vivido alguma coisa que não seja o anômalo. Aos que pronunciam a palavrinha, gostaria de perguntar se eles consideram normal o Período Especial, o medo à opção zero, os discursos intermináveis, a Batalha das Idéias, os comícios de repúdio, meus amigos armando uma balsa para atirar-se ao mar, o `tem, mas não é para você´, ou o `é para você, mas não tem´, as filas perenes, as promessas de mudança que não se concretizam, as terras ociosas, a idéia de praça sitiada onde dissentir é trair, o falar em voz baixa, a paranóia de que todos pertençam ao Aparelho, as restrições para viajar, os privilégios de uns poucos, a dualidade monetária, a doutrinação nas escolas, a falta de expectativas, os outdoors com slogans em que ninguém crê, e a espera, o aguardar, os sonhos de que alguma vez tudo possa chegar a um ponto próximo da `normalidade´.’


É isso o que há de extraordinário no blog de Yoani: ele torna transparente a percepção de que a grande aspiração revolucionária dos cubanos comuns, hoje, é apenas e tão simplesmente a volta à banalidade de uma vida normal.


***


 


A blogueira que rachou a ilha de Fidel


Luiz Zanin Oricchio # reproduzido do Estado de S.Paulo, 24/5/2009; intertítulos do OI


Em muito pouco tempo a cubana Yoani Sánchez saltou do anonimato à condição de uma das pessoas mais conhecidas na rede mundial de computadores. Conseguiu o feito graças à mais democrática das ferramentas da web, um blog pessoal. Mas não pense que Yoani é apenas mais uma celebridade instantânea, que conseguiu fama com a prática comum da autoexposição. Nada disso. Ela é uma moça casada, mãe de um filho, mora em Havana e usa seu blog como ferramenta de resistência. Quem conta essa história é o jornalista Sandro Vaia, ex-diretor de Redação de O Estado de S.Paulo em seu livro A Ilha Roubada – Yoani, a Blogueira Que Abalou Cuba (Barcarolla, 180 págs., R$ 32). O lançamento será na terça-feira, das 18h30 às 21h30, na Livraria Cultura Loja de Artes no Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2.073, tel. 3170-4033).


Para colher material para o livro, Sandro foi a Cuba, onde conversou não apenas com a blogueira, como conta em entrevista ao Estado: ‘Eu fiquei quase um mês só em Havana e falei com muitas pessoas comuns, do povo, convivi com várias delas, visitei casas de famílias, falei com o embaixador do Brasil, Bernardo Pericás, falei com empregados na área de serviços, funcionários do comércio, vendedores clandestinos de charutos, pintores e músicos de rua, donos de paladares, os restaurantes privados, mas não usei nenhum testemunho ou depoimento’. A ideia é que a realidade cubana fornecesse apenas um pano de fundo. E que o foco fosse colocado na figura principal, a blogueira solitária.


‘Error’


Yoani, motivo desse esforço de reportagem, mora num apartamento modesto em Centro Havana, bairro pobre da capital cubana. É lá que pensa e escreve esse blog de posts simples, breves, que falam do seu cotidiano na ilha de Fidel e Raúl. Ou seja, relata as dificuldades de sobreviver, de marcar uma consulta médica, deslocar-se pela cidade e pelo país. Tal simplicidade, direta e sem rodeios, atingiu o alvo de maneira extraordinária. Como diz Sandro Vaia, talvez Yoani seja hoje a blogueira mais conhecida do planeta. O blog começou de forma modesta em abril de 2007 e hoje alguns dos seus posts recebem até 6 mil comentários, o que deve ser recorde de popularidade. A média de comentários gira em torno de 2 mil por post. É o sonho de consumo de qualquer blogueiro.


Mas colocar esse blog no ar é, literalmente, uma operação de guerra. Como na ilha a internet é controlada, Yoani não tem acesso ao próprio blog. Para postar, ela escreve o texto em um computador sem conexão com a internet. Salva o texto num disquete, vai até um hotel ou lan house e o envia por e-mail a amigos. Estes o traduzem em vários idiomas e mandam o texto para o servidor, hospedado fora de Cuba. São esses amigos internacionais que administram os comentários e mandam uma versão condensada para que Yoani os leia.


Não adianta tentar acessar o blog Generación Y de qualquer posto público em Cuba. A resposta do computador é sempre a mesma: ‘Error’. Mas, fora da ilha, pode-se lê-lo em nada menos que 17 idiomas fora o espanhol, incluídos o japonês, o chinês e o finlandês. Compreensivelmente, a maioria dos comentários vem dos Estados Unidos, onde é grande a comunidade cubana dissidente. Em seguida vem a Espanha.


Outras palavras


Apesar de todo o controle, a repercussão em Cuba também parece grande. O público-alvo está expresso no próprio nome do blog. Yoani, que tem 34 anos, explica em sua home page: Generación Y destina-se aos nascidos em Cuba nos anos 70 e 80 ‘marcados pelas escolas no campo, bonequinhas russas, saídas ilegais e a frustração’. Com isso, tornou-se uma espécie de porta-voz dessa geração e fez do blog um ponto de encontro e resistência, embora não tenha perfil de dissidente clássica: ‘Yoani não teve formação ideológica, a resistência dela ao regime é dirigida à sua falta de funcionalidade, que se expressa nas carências da vida cotidiana, nas restrições à liberdade de expressão, na prevalência sufocante de um pensamento único. Se você perguntar se ela tem uma ideia clara do que colocar no lugar, eu diria que não’, diz Sandro.


Mas esse mal-estar parece generalizado, na impressão do repórter que é Sandro Vaia: ‘A impressão geral do contato com o povo cubano, que tem um espírito alegre e tolerante, é que ele está esperando que de repente alguma coisa boa vai acontecer e que a vida deles vai melhorar. Eles têm um pensamento entre cético e mágico e são capazes de achar que o milagre pode vir até mesmo de Raúl Castro. Um motorista de táxi – sempre eles – me disse uma coisa que outras pessoas comuns me deram a entender com outras palavras: o regime está anquilosado (atrofiado) e precisa de uma boa dose de ar fresco’. Como discordar?

******

Jornalista