Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Antonio Gonçalves Filho

‘A história do maior nome das ciências sociais no Brasil, Gilberto Freyre, vai ser contada pelo renomado inglês Peter Burke, professor de História Cultural na Universidade de Cambridge. Em entrevista ao Estado, Burke revelou que está finalizando uma longa pesquisa sobre Freyre (Casa Grande & Senzala), iniciada em Apipucos e finalizada em Waco, Texas, passando ainda por Washington. O historiador vai escrever o livro com sua mulher, a brasileira Maria Lúcia G. Pallares-Burke, mas isso só deve ocorrer no fim do ano. Até lá, o leitor brasileiro vai ter muito Burke para ler.

Esta semana a Jorge Zahar Editor lança a enciclopédica obra escrita em parceria com Asa Briggs, Uma História Social da Mídia (380 págs. R$ 49), acompanhando os recentes lançamentos de Hibridismo Cultural (Editora Unisinos, 118 págs., R$ 14) e Testemunha Ocular (Edusc – Editora da Universidade do Sagrado Coração, 252 págs., 35).

Uma História Social da Mídia é um estudo minucioso sobre as relações entre os meios de comunicação e a vida cultural e social da humanidade, de Gutenberg aos blogs da internet. O livro cobre os principais acontecimentos do mundo ocidental, do século 15 ao império da Microsoft. A Bíblia de Gutenberg não é exatamente o marco zero. Na verdade, a dupla Briggs e Burke retrocede à invenção da escrita, 5 mil anos antes de Cristo, analisa o mais antigo exemplar conhecido de xilogravura, passa pela invenção do tipo móvel pelos chineses, examina iluminuras medievais, mostra as conseqüências da introdução da escrita na vida cotidiana da Idade Média e chega à discussão mais importante: a internet é uma agente de democratização ou vai afetar a segurança individual e coletiva?

Da mesma forma que a primeira impressão dos textos bíblicos fez crescer, paradoxalmente, o número de hereges – que tinham então, como justificar suas opiniões ao interpretar a Bíblia a seu modo -, o advento da internet levantou um debate sobre o papel renovador da rede, invadida por ciberterroristas. Briggs e Burke evitam o papel de juízes da internet.

Afinal, não se trata mais de contar a história de um povoado, mas do ciberespaço. A tarefa do historiador, na era da mensagem rápida, do efêmero e do virtual, parece um tanto ingrata. Burke sente-se mais à vontade para discutir o impacto da invenção do jornal impresso na natureza oral da cultura européia, até mesmo por sua formação religiosa, que lhe permite um outro olhar sobre a Reforma, ‘o primeiro conflito ideológico no qual a matéria impressa teve papel preponderante’.

De qualquer modo, Burke não se encontra entre os que condenam as novas mídias. Lembra que, na história da cultura, o aparecimento de uma nova mídia nunca elimina a anterior. Elas coexistem. Tampouco elimina-se a censura. Na Idade Média, um homem podia ser denunciado à Inquisição por ler demais.

Hoje, pode-se processar alguém pelo uso indevido da internet, mas não barrar o avanço da rede. Um dos capítulos mais interessantes de seu livro toca justamente nas restrições impostas aos jornais franceses – como a discussão de temas políticos – durante o Iluminismo, que resultou na fragmentação da autoridade política e no progresso da tecnologia. Burke mostra-se mais inclinado a identificar na Revolução Francesa uma tentativa de inventar uma nova cultura política do que a ratificar a tese de antigos historiadores, que definiam a revolução como uma resposta aos problemas sociais e econômicos da década de 1780.

O livro de Burke e Briggs analisa o impacto de várias invenções – telégrafo, rádio, cinema, televisão – e chega à terceira fase da história da internet, quando o governo americano, interessado em sua comercialização, transformou a rede num símbolo político. O poder não é tão importante. O controle, sim.

Numa sociedade multimídia, o hibridismo cultural pode ser extremamente perigoso para governantes fascistas. Esse tema é discutido em outro livro de Burke, Hibridismo Cultural, que analisa o ‘cross-over’ cultural com a imparcialidade que lhe é peculiar.

Burke sempre foi fascinado pelas culturas latinas – particularmente a brasileira, até por causa de Maria Lúcia-, mas não cai na armadilha de considerar qualquer troca cultural um enriquecimento. Destaca, sim, o papel revolucionário de Gilberto Freyre e do historiador britânico Arnold Toynbee como arautos da hibridização, da mestiçagem e do sincretismo religioso.

Parece igualmente simpático à tese de Edward Said, de que ‘todas as culturas estão envolvidas entre si’ e nenhuma delas é pura. Porém, não esquece que uma troca cultural pode também resultar em massacre cultural, como ocorreu na Espanha na Idade Média, quando os judeus foram perseguidos e os muçulmanos submetidos a conversões forçadas pelos ‘inquisidores que caçavam mouriscos e marranos’.

Culturas são heterogêneas, observa Burke, e diferentes grupos reagem de modo diverso a encontros culturais. Milan Kundera escrevia melhor como checo, segundo Burke. Ele pagou um preço alto pela emigração, conclui. De qualquer forma, não há como barrar a nova ordem cultural ditada pela globalização.

Talvez não seja mais o caso de se examinar palavras, mas imagens. É a hora de consultar o terceiro livro de Burke, Testemunha Ocular, que revisa gravuras, pinturas, fotografias e filmes de várias épocas e países para demonstrar a importância da visualidade na formação da história dos povos.’

***

‘Terrorismo produz drama para ser consumido via TV’, copyright O Estado de S. Paulo, 11/04/04

‘Peter Burke já escreveu mais de 20 livros desde que analisou a cultura e a sociedade italiana do Renascimento numa obra hoje clássica, publicada em 1972. Nos últimos quatro anos, o espírito enciclopédico desceu sobre ele e o professor produziu dois livros com formato semelhante, ambos enfocando a história social – primeiro, a do Conhecimento, de Gutenberg a Diderot, que saiu no ano 2000 e, agora, Uma História Social da Mídia. Na entrevista, Burke fala do passado, do presente e do papel do historiador no futuro.

Estado – O senhor diz, no livro, que tentou manter um sentido de perspectiva, difícil de alcançar quando a mídia se concentra no dia e na semana. A história seria, então, ultrapassada pelo sentimento do efêmero e pela tecnologia? O ciberespaço vai eliminar nossa memória e adotar uma outra, artificial?

Peter Burke – Não sei se entendo quando diz que nossa memória pode ser fisicamente eliminada, mas minha imagem do futuro é a da coexistência de diferentes sistemas de comunicação e não de uma simples substituição de um pelo outro.

Estado – O senhor fala muito de arte em Uma História Social da Mídia.

Enquanto o minimalismo tentou eliminar metáforas, a internet parece incorporar todas elas. Como isso afeta a história?

Burke – Não vejo a arte ou a literatura preocupadas em eliminar a metáfora.

Vargas Llosa, por exemplo, estrutura seu último romance em torno da metáfora do paraíso terrestre.

Estado – O senhor foi educado por jesuítas. Qual o papel da religião em sua formação?

Burke – Não sei se eles tiveram grande influência. Sou hoje um agnóstico, embora um agnóstico católico, ou seja, vindo de uma cultura católica e moldado por ela. Posso entender a Contra-Reforma melhor, porque freqüentei uma escola jesuíta. Costumo dizer a meus alunos que a experimentei, já que a Contra-Reforma durou até 1966, ano do Concílio Vaticano II.

Estado – A nova história cultural, também chamada de história social, pode resultar num bom trabalho como o seu com Asa Briggs, mas levar a equívocos, no caso de historiadores que tentam reconstituir a experiência do passado segundo seus pontos de vista? Como evitar um ponto de vista comum?

Burke – Não podemos escapar de nossos pontos de vista. O que nós, historiadores, devemos fazer é entender os pontos de vista – no plural – dos atores, das pessoas que estudamos. Dou um exemplo de meu livro, quando escrevo sobre o ‘dilema conservador’. Não aprovo a censura, mas tento fazer com que o leitor entenda por que as pessoas a defendiam no passado, sugerindo não haver soluções simples para questões conservadoras.

Estado – Como o senhor analisa a mídia após os atentados de 11 de setembro?

Burke – O 11 de setembro foi um acontecimento dramático e terrível, feito para a mídia, no sentido que os terroristas certamente pensavam nos efeitos de pessoas vendo as imagens das torres desabando nos televisores do mundo inteiro. Não acho que tenha sido uma grande mudança, do ponto de vista midiático. É o que podemos chamar, desde a ascensão do terrorismo autoconsciente na Europa, especialmente na Rússia, de ‘teatro da violência’.

As câmaras de gás foram bem maiores em escala, mas menos dramáticas.

Assassinatos – o de Gandhi ou os de Israel atual – são dramáticos, mas de menor dimensão. Não são feitos para a mídia, como os atentados de 11 de setembro, em que o segundo avião atingiu a segunda torre quando repórteres e fotógrafos já estavam a postos.

Estado – O que o senhor escreve atualmente?

Burke – Desde minha primeira visita ao Brasil, em 1986, escrevo artigos sobre a história do País. Agora, eu e minha mulher estamos produzindo um livro sobre Gilberto Freyre. Já concluímos a maior parte das pesquisas.

Discutimos o tema em diversas ocasiões e devemos nos sentar para escrever no fim do ano.’



ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ
Carlos Chaparro

‘Saramago, carrasco da utopia’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 9/04/04

‘O XIS DA QUESTÃO – Em seu novo livro (Ensaio sobre a Lucidez), José Saramago proclama apenas uma presunção política, com vigor literário de grande escritor: Este mundo é uma m…! – e sem solução. Essa, a síntese da cética recriação literária que o autor faz da realidade política e cultural do seu tempo, à luz das suas próprias verdades. Com um final de história radicalmente frustrante, Saramago nos recusa até a possibilidade da utopia. Mas a obra entra sem dificuldade na estante dos bons escritos de Saramago.

Lisboa (8/4/2004) – Num dos vários debates em que se envolveu, para o lançamento do seu Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago perdeu a paciência e explodiu: ‘Não escrevi o livro que o Miguel Veiga (um dos debatedores, no dia) comentou. Não apelei nunca ao voto em branco. Espero que seja esta a última vez que o digo. Muito menos estou aqui para destruir a democracia. Só disse no livro que nos devemos preparar, porque isto um dia pode acontecer’ (Diário de Notícias, 4 de abril, p.8).

Tem razão Saramago. Acabei de ler livro (um bom romance, bem melhor do que imaginei após as primeiras 60 páginas), e em nenhum momento o autor propõe a idéia de que o voto em branco possa ser a salvação ou a destruição da democracia. Por outro lado, na leitura feita, também não aparece a advertência anunciada pelo autor, de ‘que nos devemos preparar, porque isto um dia pode acontecer’. Nem nos emaranhados das entrelinhas captei tal idéia ou intenção.

Na verdade, até onde pude alcançar, este novo livro de Saramago proclama apenas uma presunção política, com vigor literário de grande escritor: este mundo é uma m…! – e sem solução.

Essa, a síntese da livre e cética recriação literária que ele faz da realidade política e cultural do seu tempo, à luz das suas verdades de autor. O resto é conversa de enfeite, para debates e entrevistas que ajudam a promover o marketing da polêmica, em tempo de lançamento comercial da obra.

É certo que, aqui e ali, umas vezes em jeito de pitadas poéticas, outras, em moldes de aforismo, afloram talentos de pensador, a revelarem um Saramago resistente ao ceticismo. Mas são retoques que embelezam o texto e o pensar que nele desliza, sem alterar o fundamento da proposta.

É uma pena, entretanto, que, para o lançamento do Ensaio sobre a Lucidez, a editora tenha organizado debates políticos sobre o voto em branco. Mais lamentável, ainda, que Saramago tenha concordado com isso, no momento em que já estão nas ruas as campanhas partidárias para as eleições parlamentares européias, em junho, às quais ele também é candidato, embora sem a mínima chance e sem o mínimo interesse de se eleger.capaz de imaginar (como faz prova no livro) as mais diabólicas patifarias no mundo da democracia formal, sequer pode dizer que foi apanhado de surpresa pelo oportunismo eleitoral dos debatedores. Sem terem lido o livro, ou mesmo tendo-o lido, eles apenas aproveitam o generoso pitéu eleitoral que lhes está sendo servido. E reduzem a peça de arte a grotesco objeto político. Deforma-se, assim, a obra literária – sobre a qual haveria muito a dizer, em outros ambientes, com outros debatedores.

Mas vamos ao livro, cuja leitura recomendo. Não duvido que, mesmo entre os leitores avessos a Saramago, chegará ao final quem conseguir atravessar a barreira das primeiras setenta páginas. É o suficiente para adaptar sensores mentais e emocionais à sintaxe e ao ritmo sufocantes da escrita saramaguiana (e fica aí o neologismo…). Depois, na malha elástica do estilo, a narrativa cresce, adensa-se, alarga-se, estreita-se, ora em sínteses e sentidos de requintada semântica, ora por acúmulos onde, em criativos (por vezes também cansativos) jogos semiológicos, se acomodam os detalhes que, em jorros, dão recheio e revestimento a divertidas complicações.

Sim, Ensaio sobre a Lucidez é uma obra divertida. Cheguei a gargalhar em vários momentos da leitura, nos dois terços finais do livro, em especial nos trechos (os melhores do ensaio) descritivos dos embates retóricos entre ministros do governo plutocrata. Com habilidades de refinado humorista, Saramago faz a paródia do besteirol governamental. É aqui que o livro ganha e consolida a qualidade de inspirada caricatura – da democracia, naturalmente.

Falei em governo plutocrata? Na ‘fábula’ que Saramago diz por aí ter escrito, assim deveria ser. Mas nem a tanto chega. Trata-se apenas de um governo cretino, propenso às mais disparatadas maluquices, literariamente conveniente à fantástica história inventada por José Saramago – a de uma cidade moderna, tanto na lei (sem a qual não haveria o governo das ilegalidades) quanto nos recursos urbanos e tecnológicos. Cidade grande, de milhões de habitantes, capaz de colocar quinhentas mil pessoas nas ruas, em silenciosa manifestação de lucidez política – a mesma lucidez que dias antes levara 83% do eleitorado à unanimidade não combinada do voto em branco.

E daí se deduz que, além das outras modernidades, à indefinível cidade sem nome, capital de um país não descrito, não faltam nem a liberdade de votar nem justiça eleitoral independente, no pleno exercício do poder de recolher, proteger e contar votos, bem como o de proclamar resultados e produzir efeitos.

Como em tal cenário encaixar, sem estranhezas, o governo cretino, disparatado e irremovível, inventado por Saramago, é problema com o qual o leitor não deve perder tempo. Até porque, das inexplicáveis e, portanto, inexplicadas contradições entre tal cidade e tal governo, Saramago dá boa conta, impondo lógica alegórica a fatos e contextos. Com a natural dispensa de justificativas ou elucidações.

Ademais, o essencial – a cidade e seu mistério, o das fulminantes irradiações epidêmicas, como essa do voto em branco – já estava inventado, há alguns anos, quando, em outro ensaio (Ensaio sobre a Cegueira), foi preciso contar ao mundo a epidemia de uma certa cegueira branca. Pois a cidade é a mesma, o governo cretino já estava lá, e lá permanece. Não certamente por acaso, a epidemia de agora, a dos votos, tem a mesma brancura da anterior, a da cegueira. E até os principais personagens daquela outra história voltam à cena, para emprestar à obra de agora a dose mínima de humanismo que lhe faltava, e iluminar com novos sentidos políticos as subtramas costuradas em vírgulas, no alongamento de períodos e parágrafos.

Ao se afunilarem os conflitos, no terço final do livro, quando a trama ganha um surpreendente suspense, cresce a importância da Mulher do Médico, aquela que, no ensaio anterior, fora a única pessoa da cidade a não ficar cega – lembram-se? Graças a ela, emerge da narração, nesta obra, o seu mais heróico e honesto personagem, o Comissário, em torno do qual Saramago constrói o ápice da invenção literária. Em dupla, o Comissário e a Mulher do Médico incitam o leitor a acreditar que pode existir uma saída para o tal mundo de m…

Mas Saramago nos nega até a possibilidade da utopia. O final do livro, a ser descoberto por quem vier ler, não revelado por quem já leu, e que desta vez coincide com o ápice da história, é frustrante. Radicalmente frustrante.

Eis aí a vitória e o gozo de Saramago. Que lhe faça bom proveito. E certamente o fará, porque o livro, pelo que se diz, já deve ter vendido mais de 100 mil exemplares.’