Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Demétrio Magnoli

‘‘Fahrenheit 11 de Setembro’, de Michael Moore, não é o que parece. Ele se apresenta como documentário, mas é um panfleto político com finalidade eleitoral. Aparece para o público como obra criativa independente, mas é um instrumento da campanha de John Kerry à Presidência. Tem sido recepcionado como exposição dos verdadeiros motivos da invasão do Iraque, mas é uma peça destinada a ocultar o núcleo da política externa americana.

A estrutura narrativa do filme revela pleno domínio da arte da manipulação. A tese política desenrola-se na parte inicial e conclui-se na parte final, sempre em ritmo de videoclipe. O miolo, mais lento, é constituído por dois fragmentos de documentário. O primeiro, curto, aborda a ‘guerra psicológica’ interna conduzida pela administração Bush por meio da oscilação dos níveis de alerta antiterror. O segundo, mais longo, desvenda as conexões entre o recrutamento militar e o desemprego gerado pela desindustrialização no Meio-Oeste e capta os impactos da campanha no Iraque sobre os jovens soldados. Cada um desses trechos é uma oportunidade desperdiçada de elaboração de documentários geniais. Mas, do ponto de vista de Moore, não há desperdício, pois eles desempenham a função ideológica de conferir credibilidade documental ao restante da narrativa.

O resto é lixo, construído com a tesoura que seleciona, a cola que recontextualiza e a determinação de prender os fatos à camisa de força da tese política. O método, tão antigo como os filmes de propaganda de Stálin ou Hitler, beneficia-se das técnicas contemporâneas de edição.

A meta do filme é substituir a história pela trama da conspiração. Toda a operação narrativa monta o cenário para sugerir que os atentados do 11 de Setembro decorreram de um complô entre Osama bin Laden, os ‘príncipes do petróleo’ e o próprio Bush

Mas o efeito de sedução tem suas raízes nos fragmentos de documentário do miolo.

No documentário, os fatos falam, exprimindo idéias diversas e dissonantes. Na propaganda, não há alteridade: os fatos são amordaçados e escravizados ao discurso unívoco do narrador. A narrativa de Moore elabora uma versão que esvazia a política externa americana de uma visão de mundo. No lugar disso, o que existe é a corrupção da família Bush, as negociatas entre essa camarilha e o complexo industrial-militar, as suas conexões com os ‘príncipes do petróleo’ e a teia de interesses que une o presidente americano à família real saudita e ao chefe terrorista Osama bin Laden.

Moore confia nas lacunas de informação do grande público. Sua câmera mostra cenas dos campos de treinamento de Osama bin Laden financiados pela CIA no Afeganistão dos anos 80, mas omite a posterior declaração de guerra do chefe terrorista a Washington.

A narrativa insiste nos laços de negócios entre a família de Bin Laden e a monarquia saudita, mas se desvia da ruptura histórica entre o chefe terrorista e a Casa de Saud, que detonou a atual guerra entre o fundamentalismo e o regime saudita.

O filme abomina a história. A sua meta é substituí-la pela trama da conspiração. Toda a operação narrativa monta o cenário para sugerir que os atentados do 11 de Setembro decorreram de um complô entre Osama bin Laden, os ‘príncipes do petróleo’ e o próprio Bush. Essa tese desvairada não é jamais exposta: emana, sob a forma de silenciosa insinuação, da lógica da montagem dos eventos.

Há uma nítida finalidade política no filme, muito maior que a declarada intenção de interferir na eleição presidencial. Trata-se de reinventar o passado recente, de modo a ajustá-lo à linha de política externa defendida por Kerry.

Os democratas proclamam aos quatro ventos a sua adesão a alguns princípios centrais da Doutrina Bush, como a noção da ‘guerra ao terror’ e o pretenso direito à ‘guerra preventiva’. Por isso, a crítica à administração Bush deve ocultar o eixo da sua política internacional, que é a Doutrina Bush. Eis a finalidade do filme de Moore. Não por acaso, a câmera da manipulação capta as cenas dos civis mortos no Iraque, mas esconde as vítimas inocentes dos bombardeios no Afeganistão, a guerra que os democratas acusam Bush de não travar com suficiente decisão.

As corporações de Hollywood recusaram o filme de Moore, em nome das suas relações com a Casa Branca. Erraram: além de gerar fortunas, o documentário é autoritário na forma e conservador no conteúdo. Demétrio Magnoli, 45, doutor em geografia humana pela USP, é editor do periódico ‘Mundo – Geografia e Política Internacional’ e pesquisador do Nadd-USP’



EUA vs. JORNALISMO
Jacques Steinberg

‘Cresce pressão sobre jornalistas nos EUA’, copyright Folha de S. Paulo / The New York Times, 19/08/08

‘Uma decisão judicial tomada na semana passada ordenando a prisão de um jornalista da revista ‘Time’ por desacato e uma intimação feita mais tarde a um repórter do ‘New York Times’ no mesmo caso constituem os exemplos mais recentes de algo que especialistas jurídicos descrevem como uma tendência ameaçadora para a categoria dos jornalistas.

Trata-se do enfraquecimento das proteções básicas ao trabalho de coleta e divulgação de notícias, algo que, de modo geral, era visto como claro e decidido desde a época do escândalo ‘Watergate’.

A citação por desacato e a intimação são parte de investigação federal para averiguar se a administração Bush revelou ilegalmente a identidade de uma agente secreta da CIA a Robert Novak, cuja coluna é publicada em vários jornais, e outros jornalistas.

Essas ações se somam a outra em que um juiz federal ordenou que jornalistas identificassem as fontes que lhes deram informações sobre o cientista Wen Ho Lee -no final de 1999, Lee foi preso sob acusação de espionagem nuclear e, nove meses mais tarde, quando a acusação se mostrou uma farsa, foi posto em liberdade.

Elas ameaçam solapar algo que os jornalistas vêem há anos como seu direito constitucional de não identificar suas fontes.

Outras decisões judiciais dos últimos meses enfraquecem o princípio legal que possibilita a jornalistas divulgar praticamente tudo o que sabem sem serem sujeitos a restrição prévia. É o caso da que restringiu parcialmente a cobertura dos julgamentos de réus tão diversos quanto o jogador de basquete Kobe Bryant, acusado de estupro, e o ex-banqueiro de investimentos Frank Quattrone.

Enquanto isso, autoridades do Departamento de Justiça e outras agências federais estão tornando mais rígidas as normas que ditam os materiais aos quais jornalistas e o público em geral podem ter acesso, de acordo com a Lei sobre a Liberdade de Informação. As autoridades alegam que a ênfase dada pela lei ao acesso rápido e muitas vezes irrestrito a informações pode ajudar terroristas.

‘Alguns desses casos representam restrição direta à capacidade dos jornalistas de obter informações para subsidiar reportagens. Outros poderiam desencorajar fontes que já ajudaram a fornecer muitos furos de primeira importância’, disse Paul K. McMasters, ombudsman do Centro Primeira Emenda, uma organização não partidária e sem fins lucrativos.

Existem, é claro, os que argumentam que pelo menos algumas das tentativas de refrear a imprensa representam uma correção que já era devida havia muito tempo.

Entre os princípios que estão em discussão na investigação sobre o vazamento da identidade da agente secreta da CIA, Valerie Plame, está o do privilégio do jornalista de não precisar depor sobre informações confidenciais ou não publicadas, a não ser que elas sejam cruciais para um caso específico e que não possam ser obtidas de outra maneira.

Direito à privacidade

Ao ordenar a prisão do jornalista da revista ‘Time’ Matthew Cooper, por ter se negado a identificar quem revelou o nome de Plame, o juiz Thomas Hogan, da Corte Distrital em Washington, rejeitou o argumento da revista de que a Primeira Emenda da Constituição dá ao jornalista o direito de negar-se a responder sobre fontes confidenciais. (Cooper permanece em liberdade enquanto a ‘Time’ recorre da decisão.)

A proibição de tentativas de impedir um órgão de imprensa de divulgar o que sabe -a não ser que isso coloque em risco a segurança nacional- foi exposta no caso dos documentos do Pentágono, de 1971, no qual o ‘Times’ ganhou o direito de divulgar uma história secreta da Guerra do Vietnã redigida pelo governo.

Nos últimos meses, porém, essa proibição vem sofrendo reveses. Alguns juízes vêm contrapondo ao direito do público de tomar conhecimento dos fatos preocupações como o direito do réu à privacidade e o ao julgamento justo.

Especialistas acreditam que o próximo embate será acerca da Lei sobre a Liberdade de Informação, de 1966, que facilita o acesso a agências federais.

Um mês após o 11 de Setembro de 2001, o secretário da Justiça, John Ashcroft, rescindiu um memorando de sua antecessora no cargo, Janet Reno, no qual ela argumentava em favor da ‘presunção da divulgação’.

Ashcroft pediu que as agências federais considerem ‘os interesses institucionais, comerciais e de privacidade que podem ser comprometidos pela divulgação’.

Mais documentos oficiais estão sendo ocultados do público, segundo estudo da Administração Nacional de Arquivos e Registros, divulgado na primavera. Segundo o relatório, em 2003 o governo classificou como sigilosos, por conterem segredos que ameaçam a segurança nacional, 14 milhões de documentos, contra 11 milhões em 2002 e 8 milhões em 2001. Tradução de Clara Allain’



ECOS DA GUERRA
Folha de S. Paulo

‘Repórter americano é solto após intervenção de Al Sadr’, copyright Folha de S. Paulo, 23/08/04

‘Após intermediação do clérigo xiita Moqtada al Sadr, o jornalista americano Micah Garen foi libertado ontem por militantes iraquianos em Nassíria, no sul do Iraque. Ele foi seqüestrado há uma semana junto com o seu tradutor iraquiano, Amir Doushi -também solto.

Sua libertação ocorreu em meio à intensificação dos combates envolvendo as forças militares americanas e seguidores de Al Sadr em Najaf. Na vizinha Kufa, 40 militantes morreram em ação dos EUA no sábado, segundo autoridades americanas. Militantes afirmam que apenas um morreu.

Garen concedeu entrevista à rede de TV Al Jazira, do Qatar, confirmando que foi solto. O jornalista agradeceu a Al Sadr pela intermediação. O clérigo decidiu intervir na libertação de Garen depois de militantes armados divulgarem filme ameaçando matá-lo se as tropas americanas não se retirassem de Najaf em 48 horas.

Porém representantes de Al Sadr condenaram o seqüestro, que ocorreu sem a conivência dele. ‘Os seqüestradores escutaram o pedido que fizemos durante as orações de sexta e eles nos contataram e prometeram não fazer nada contra eles [Garen e seu tradutor]’, disse o xeque Aws al Khajafi, assessor de Al Sadr que participou das negociações de libertação com os seqüestradores.

O jornalista afirmou que foi seqüestrado quando tirava fotos com uma pequena câmera. Algumas pessoas que não aceitavam ser fotografadas entraram em atrito com ele. Nesse momento, ele teria sido confundido com um espião a serviço dos americanos.

Garen trabalha para a empresa de mídia Four Corners e já prestou serviços fotográficos para a agência de notícias Associated Press e escreveu reportagem publicada no ‘New York Times’.

Nos últimos meses, cresceu o número de seqüestros de estrangeiros no Iraque.

Combates

Forças dos EUA isolaram a parte antiga de Najaf, onde se localiza a mesquita de Ali, uma das mais sagradas para os xiitas. Nessa mesquita, estão entrincheirados seguidores de Al Sadr, um dos mais ferrenhos opositores da ocupação americana. Helicópteros realizaram ataques e tanques circularam pelas ruas da cidade, que estavam desertas ontem.

A ação ocorre em meio a impasse nas negociações de trégua. O governo iraquiano pediu paciência aos dois lados. O temor é de que os confrontos atinjam a mesquita, acentuando ainda mais a já hostil postura da maioria xiita do país à presença americana.

Em incidentes separados, cinco americanos morreram. Com agências internacionais’



VENEZUELA
Mair Pena Neto

‘Golpe de estado da mídia’, copyright Direto da Redação in Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 19/08/08

‘Existe um documentário irlandês que deveria ser exibido agora por todas as emissoras brasileiras de televisão, com caráter pedagógico, no auxílio às discussões que se travam na sociedade sobre ética e limites da atividade jornalística. Chama-se ‘A revolução não será televisionada’ e aborda a situação política da Venezuela durante a tentativa de golpe contra o presidente Hugo Chávez, em abril de 2002. Dois cineastas irlandeses estavam em Caracas filmando um documentário sobre o governo Chávez e acabaram testemunhas privilegiadas de todo o processo golpista, devidamente registrado em película. É o que se chama de estar no lugar certo, na hora certa.

Antes do golpe, a grande mídia venezuelana, controlada por poderosos grupos econômicos, já bombardeava Chávez, com matérias grosseiras, infundadas e de nenhum conteúdo jornalístico, visivelmente voltadas ao propósito de desacreditar o governo e seu principal mandatário. Imagens de televisão registradas pelo filme mostram comentaristas e apresentadores de tv afirmando que Chávez estava ‘fascinado de forma sexual, freudiana, por Fidel Castro’ e que precisava de exame de ‘sanidade mental’.

A virulência midiática explicava-se pelo aumento da popularidade do presidente, suas posições e sua política. Em pronunciamentos públicos, Chávez condenava a mão invisível do mercado que a tudo ordena e pregava uma alternativa para a Venezuela. A população, antes alienada e alheia ao jogo político, mostrava interesse crescente pelas ações do governo, num processo crescente de politização, sempre assustador para as elites.

O conteúdo questionável das matérias veiculadas pelos principais meios de comunicação da Venezuela não reduzia a total liberdade de expressão no país. Os cinco canais privados de tv faziam campanha aberta contra o presidente, que usava a seu favor a única emissora estatal. Chávez tinha plena consciência do poder midiático e chama a atenção de seus colaboradores para a necessidade de comunicar bem as ações do governo nas visitas que faziam às diversas regiões do país. ‘A mídia local neutraliza a campanha da grande mídia’, afirma o presidente, durante reunião registrada pelas câmeras.

Depois de aumentar o controle sobre a produção e elevar os preços do petróleo, fonte exclusiva da má distribuída riqueza venezuelana, Chávez sofre forte oposição americana, que sempre teve na Venezuela fornecedor confiável e barato do produto. O ápice da tensão política chega em fevereiro de 2002, quando Chávez anuncia que colocará gente de sua confiança na PDVSA, a petroleira estatal, que sempre enriqueceu uma casta em detrimento da população. A luta de classes explode com toda a sua clareza. Nos bairros ricos, os oposicionistas ao governo se reúnem e pedem cuidado com o que se diz na frente das empregadas, fonte de informação do inimigo. Em manifestações de rua, desfilam em carros de luxo e gritam que Chávez quer fazer da Venezuela uma nova Cuba. Empresários vão a Washington pedir conselhos à equipe de Bush e o diretor da CIA, George Tenet aparece no vídeo falando com incrível sinceridade: ‘A Venezuela é o terceiro fornecedor de petróleo e não se importa com os interesses dos Estados Unidos’.

Estava dada a senha. Generais venezuelanos vão à TV e pregam a saída de Chávez. As emissoras convocam marcha rumo à sede da PDVSA, e os organizadores, empolgados com a manifestação decidem rumar para o palácio do governo. ‘Vamos ao palácio tirá-lo de lá’, afirma um dos locutores. A decisão era de extrema irresponsabilidade. Os apoiadores de Chávez já estavam reunidos em frente ao palácio, em solidariedade ao governo. A TV estatal adverte para o perigo do confronto, mas os oposicionistas não dão ouvidos. Os documentaristas irlandeses mostram que franco-atiradores disparam do alto de prédios numa evidente ação orquestrada.

O que veio depois é contado por um jornalista que deixou uma grande emissora de TV, por questão de consciência. As imagens foram manipuladas e editadas de modo que a responsabilidade pelas mortes ocorridas fosse atribuída a Chávez. A situação torna-se insustentável, e as câmeras dos irlandeses, as únicas no interior do palácio, mostram os últimos momentos do golpe, quando Chávez decide sair, sem assinar renúncia, para evitar um bombardeio a Miraflores. Todo o desenlace do golpe é acompanhado, de dentro do palácio, pela TV. ‘Que fique claro que é um golpe de Estado’, afirma a ministra do Meio Ambiente, dirigindo-se à câmera dos documentaristas, o último canal de comunicação que restava.

Imediatamente, os golpistas vão à TV e revelam todo o plano, em detalhes. Depois de agradecer nominalmente a cada emissora, um representante do grupo vitorioso conta toda a orquestração e os participantes do programa riem ao relatar que um dos vídeos pré-golpe fora gravado na casa do jornalista que apresentava o programa. A TV mostra militares e empresários se felicitando e transmite ao vivo, do palácio, as primeiras medidas do governo provisório, comandado pelo empresário que estivera em Washington pouco antes.

A população, sem nenhum canal de informação, começa a saber o que se passara por notícias veiculadas por uma emissora internacional a cabo. Aos poucos, as ruas vão sendo tomadas e o povo cerca o palácio do governo. A guarda fiel a Chávez cerca o palácio e detém os golpistas. Os documentaristas registram a chegada dos ministros de Chávez, que estavam escondidos, a emoção e a tensão dos primeiros minutos do contra-golpe. A chegada de Chávez, de helicóptero, é filmada com a luz existente, num precioso documento histórico, assim como seu primeiro pronunciamento, no qual pede que a população volte às suas casas e que a oposição respeite a Constituição. O golpe midiático chegava ao fim. Que não ressuscite agora que a população consagrou a permanência de Chávez na presidência, em um referendo constitucional, auditado internacionalmente.’