Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Luis Fernando Verissimo

“Ruy Castro flagrou mais um ‘apartheid’ que se instala no Brasil, além dos que existem há tempo. A divisão do público da televisão entre os que têm acesso à TV paga e os que têm que se contentar com a dieta cada vez pior da TV aberta. Uma minoria vê programas americanos e europeus e vive, pelo menos do nariz para cima, no Hemisfério Norte, enquanto a maioria é servida do que as televisões nacionais acham que ela merece. Os programas de cabo e satélite variam do interessante ao bobo agradável, enquanto que, cada vez mais, os programas nacionais variam do grotesco ao lamentável. Quando o quase monopólio da Globo era um fato, havia um padrão de qualidade, pelo menos formal, marcando a sua diferença das outras e segurando um público que interessava aos anunciantes. O ‘apartheid’ já existia mas uma boa parte do outro público, o sem dinheiro, também era fiel ao padrão Globo. Com a migração do público que compra para a TV paga e as outras redes comendo o ibope da Globo, ainda soberana mas já sem a mesma convicção de ser uma cidadela do bom gosto, os parâmetros estabelecidos estão sacudindo. A questão, antes de ser sociológica, é prática. Problema maior para os mídias de agências de publicidade, que não sabem mais que público preferem. Já que tudo, afinal, é mercado.

Chamam de elitista quem critica a qualidade dos programas populares na TV mas não há nada mais elitista do que achar que ‘o povão’ não entende ou não quer outra coisa, que discernimento é coisa de classe A, ou, vá lá, de BB para cima, para usar a língua deles. No Hemisfério Norte também existem programas de ratos e leões, alguns até mais calhordas. O que não tem é ameaça do padrão deles dominar o resto, e determinar uma televisão sem alternativas. O que os que lamentam o estado da nossa TV aberta e os que estão fugindo para a TV importada querem não é Cultura com C maiúsculo, documentários sobre Bizâncio e ópera clássica. Querem é ter escolha.”

“Outro ‘apartheid’”, copyright O Globo, 24/06/99

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“O apartheid sobre o qual o Ruy Castro escreveu há pouco, com a competência de sempre – quem pode abandona a TV aberta pela TV paga e prefere a programação estrangeira à programação brasileira, em processo de apatifamento progressivo – faz parte do distanciamento geral, que se acelerou sob a pseudosocialdemocracia efeagaliana, entre o pequeno Brasil do privilégio e a grande nação dos abandonados. Faz parte da mentalidade de sítio que aos poucos vai substituindo qualquer idéia de mudança na nossa elite, acuada pela imbecilização que ela mesma criou. Uma elite que sempre foi bem intencionada mas na hora de sacrificar qualquer coisa para mudar, sacrifica primeiro as boas intenções.

Pode-se visualizar a convergência, com o tempo, de todos os nossos apartheids numa imagem só: a de condomínios de luxo cercados, com metralhadoras nas guaritas, e todas as casas com antenas suplicantes viradas para o céu, pegando ‘sitcoms’ e outros sinais de civilização superior, enquanto da escuridão em volta só se ouvem os sons de programas de auditório e outras distrações primitivas que, pelo menos, impedem os bárbaros de pensar e de atacar.

A mentalidade que determina que povo só quer porcaria na TV é, no fundo, a mesma que corta verbas da saúde, mantém o sistema carcerário mais desumano do planeta etc., etc. Não porque seja uma mentalidade naturalmente má, e que eles gozem ao ver pessoas morrendo na fila de espera da ajuda que nunca vem. É que se acostumaram a ver o mundo fora dos seus muros como um mundo brutal, com péssimo gosto e nenhuma expectativa, e irremediável. Já que, depois de todas as belas palavras e boas intenções, o único futuro que este modelo reserva para os imbecis é o de se resignarem à indignidade.

Não há solução para o novo apartheid sobre o qual Ruy Castro escreveu. Não se pode nem se quer renunciar ao milagre que coloca 117 canais sob controle do nosso dedão, nem se vai assegurar qualidade na TV brasileira por decreto. E, portanto, até na sua falta de remédio à vista o apartheid na TV é um retrato de todos os outros.”

“Novo apartheid (2)”, copyright O Globo, 25/06/99

 

“Os preços da TV paga subiram recentemente e, com isso, fica cada vez mais difícil entender por que o assinante paga tanto por esse serviço. Durante os anos dourados do negócio no Brasil, em 1996/97, as operadoras só acrescentavam canais aos seus ‘line ups’, e notava-se um investimento em produções de qualidade. Com a estagnação do número de assinantes, a alta do dólar e uma boa dose de desânimo nos executivos do setor, o que aconteceu nos últimos meses justifica uma boa reflexão a respeito da relação custo-benefício envolvida no ato de aderir a um dos sistemas disponíveis de TV paga.

Canais ‘de qualidade’ hoje são uma pálida lembrança do que já foram. O GNT, por exemplo, virou um grande Vale a Pena Ver de Novo, tal a quantidade de reprises. As produções nacionais como Chatô, O Rei do Brasil, Futebol, O Velho – A Vida de Luís Carlos Prestes e Cinco Dias Que Abalaram o Brasil atualmente são uma raridade – e, quando aparecem, são executadas com recursos perceptivelmente menores.

Um dos ‘destaques’ da programação do canal em junho, por exemplo, foi a reapresentação de Leila Três Vezes Diniz, documentário produzido na fase áurea do canal. Outro canal da Globosat, o USA, deixou de exibir recentemente dois programas que eram alguns dos poucos destaques de sua grade: Entertainment Tonight e Hard Copy. A justificativa é uma reestruturação na programação, mas os dois programas – sucesso absoluto nos EUA – só podem ter sido tirados do ar por razões financeiras. Prova disso é que já existem outros canais negociando a exibição desses programas no Brasil.

É duro compreender também por que o USA anuncia com tanto barulho a série Xena como um dos destaques de sua programação, se o SBT já exibe há anos – e de graça – o mesmo seriado, por sinal, lixo puro. Por que pagar por isso? Complicada também é a situação dos canais de filmes e de notícias. O destaque dos canais Telecine neste mês foi a refilmagem de O Chacal, com Bruce Willis, fracasso de bilheteria nos cinemas dos EUA e do Brasil que agora tem a chance de fracassar também na TV. Na HBO, a principal estréia foi Força Aérea Um, filmeco de ação com Harrison Ford e Gary Oldman.

Nos canais de notícia, a Globo News tem que rever com urgência a função e o formato de seus boletins Em Cima da Hora. Não dá para entender o que fazem notícias do sábado incluídas nos boletins da madrugada de domingo para segunda, por exemplo.

Qual o sentido de reprisar uma reportagem do Jornal Hoje ou do Jornal da Globo nesses boletins sem acrescentar nada ao que já foi dito? Precisamos pagar para ver isso? Na segunda-feira passada, por exemplo, ao exibir uma reportagem sobre a final do Campeonato Paulista, um desses boletins da madrugada foi incapaz de informar que o jogador Edílson havia sido cortado da seleção. Pior foi quando o Em Cima da Hora anunciou na noite da entrega do Oscar que O Resgate do Soldado Ryan havia sido o vencedor na categoria de melhor filme. Parecia que o boletim havia sido gravado previamente.

Mas o que não dá mesmo para engolir é o telejornalismo da CBS Telenotícias. O canal tem apenas uma repórter no Brasil (que fica no Rio). Quando São Paulo pára por causa das enchentes, a manchete dos informes produzidos em Miami é sempre sobre tufões de Oklahoma, ou a inauguração do novo aquário municipal de Orlando. Quando exibe alguma notícia do Brasil, usa material produzido pelo Canal 21, pela Band, pela TV Cultura ou pelo SBT. OK, então, por que pagar para ver isso, se essas emissoras são de sinal aberto por aqui? Para ver Leila Cordeiro entrevistar artistas brasileiros que vão terminar suas turnês em Miami, após já terem falado com todos os órgãos de imprensa no Brasil?

Vale também registrar aqui a situação insólita do canal Bravo Brasil, que podia ser uma excelente opção para rivalizar com o caótico Multishow (um balaio de gatos onde há de tudo, mas pouca coisa se salva). Com o fim da parceria entre a TVA programadora e a matriz norte-americana do Bravo, o canal virou o que é hoje, um mero retransmissor de um limitado acervo de filmes de arte e shows (muitos deles, excelentes, aliás). Tudo isso sem um nadinha de ‘cor local’. Falta Brasil no Bravo Brasil.

Por essas e por outras razões é que se pode dizer que certo está Antônio Athayde, executivo pioneiro do setor de TV paga no Brasil, que disse recentemente que esse negócio simplesmente não deu certo no país. Se deu, foi para alguns poucos empresários do setor e telespectadores que se sentem satisfeitos com o modelo atual.

Os pacotes da TV paga são compostos por aquela meia dúzia de canais que são os da preferência do assinante e mais algumas dezenas de estações que não passam de puro ‘enchimento’. Com o número de assinantes em queda, esse é um dado a ser levado em consideração pelos operadores que criam os pacotes e pelas pessoas que pensam em se tornar assinantes. O ideal seria a formação de pacotes ‘à la carte’, montados de acordo com as necessidades do assinante. Impossível? O tempo dirá. Vamos ver até quando o modelo brasileiro vai resistir a essa tendência.”

“Pagando mico”, copyright Folha de S.Paulo, 27/6/99

 

“A contratação de Ana Maria Braga pela TV Globo reforçou uma tese: a emissora estaria se popularizando para conquistar audiência. A questão está mal posta de saída: uma TV aberta que se pretenda elitista, em contraposição a uma TV popular, morrerá de inanição. Uma é aberta a milhões, e a elite brasileira talvez coubesse num fusca, se ele ainda existisse. Fica estabelecido que ser popular é um imperativo inescapável a toda e qualquer TV aberta. A questão, portanto, não está em ser popular ou não, mas em ter qualidade ou não.

O curioso é que os críticos dos recentes movimentos da Globo em face da concorrência tratam do fenômeno com um ineditismo que ele definitivamente não tem. Parecem ao mesmo tempo supor que Globo dos anos 70 e 80 tinha uma programação voltada para intelectuais e que era imune à concorrência, sem nenhum abalo no Ibope. Nada mais fantasioso.

Ponto um: programação. Em que pese a alta qualidade de sua produção – não foi à toa que se cunhou a expressão ‘Padrão Globo de Qualidade’ – a programação da Globo sempre foi popular, com novelas, telejornais e programas de entretenimento. Uma semana de meados de 70, por exemplo, poderia ter sido mais ou menos assim, no que diz respeito à linha de shows: aos domingos, Programa Sílvio Santos seguido do Fantástico; às segundas, sempre um humorístico, baseado em esquetes cômicos nem um pouco politicamente corretos: Balança mas não cai, Faça humor, não faça a guerra, Satiricom, Planeta dos homens; às terças, Moacir Franco Show, em que o próprio, em meio a canções melosas (‘Eu nunca mais vou te esquecer, meu amor’), fazia quadros cômicos vestido como aquele mendigo de voz rouca; às quartas, Globo de Ouro, apresentado por um casal de atores, ele sempre de smoking, com as músicas mais tocadas nas rádios (claro, o equivalente hoje da axé music, do pagode, do sertanejo); às quintas, Chico City , com os tipos caros ao humorista; às sextas, o Globo Repórter, com tema obviamente de apelo popular; e aos sábados, um filme, no Primeira Exibição. Todos programas de qualidade, todos finamente produzidos, mas absolutamente populares, ao gosto do povão, longe do agrado da elite intelectual. Claro, ontem, como hoje, sempre houve espaço para programas mais sofisticados e experimentais, mas não eram o foco da programação.

Ponto dois: concorrência. Os analistas de TV registram a atual disputa de audiência em certos horários como se fosse inédita e, por conseguinte, estranham os movimentos da Globo para fazer frente a ela. Nada mais equivocado. Em certos casos, quando disputou com programas populares de baixa qualidade ética (que exploravam o chamado ‘mundo cão’), a Globo sempre teve problemas. Em outros, teve dificuldades quando confrontada com talentos que até ali não reconhecia. Para cada um dos casos, seguiu estratégias diferentes: contra o ‘mundo cão’, persistiu na qualidade; para combater os talentos adversários, tratou de contratá-los. E obteve êxito nos dois casos.

Flávio Cavalcanti, por exemplo. Em maio de 78, ele voltava à TV Tupi com tudo o que lhe era peculiar. Na crítica ao programa de estréia, Maria Helena Dutra escreveu no Jornal do Brasil: ‘Ele continua exatamente o mesmo. A igual preocupação com o show, a procura do impacto, a veia policial e o sensacionalismo de sempre’. E mais adiante, prosseguia: ‘E uma tragédia familiar, que nunca deveria sair desse âmbito, foi servida como iguaria a sádicos. O animador se deliciou e a mãe em lágrimas compactuou com este momento penoso de falta de caridade em público’.

De fato, cada época tem o Ratinho que merece. Mas qual terá sido o resultado no Ibope? É a mesma Maria Helena quem nos conta, no seu artigo de então: ‘Por isso, ou apesar disso, ele encontra bastante público para a propagação de suas idéias e modo de apresentação. (…) Na estréia, começou obtendo 17 pontos do Ibope contra 17,57 da sua principal concorrente, a Rede Globo, com o seu Fantástico. A briga entre ambos continuou com os seguintes números: às oito e meia, o canal 4 ficou com 17,54 e Flávio baixou para 12,7. Às nove horas, a coisa mudou. Embora seja repugnante, graças à mãe que chorou, o 6 foi para 21,7 e a Globo baixou para 10,51. A contenda continuou favorável a Flávio no final, porém em números menores. Teve 13 pontos contra 10,5 da concorrente’. Soa atual, não?

Entre o final dos anos 70 e o início dos 80, a Tupi pôs no ar o Aqui e Agora: vários apresentadores exploravam todo tipo de miséria humana. Maridos traídos, aleijados sem cadeira de roda, menores grávidas, endemoninhados etc. Com este cardápio, o programa atingiu ótima audiência, batendo a Globo em sua programação vespertina. Naquele caso, como hoje com Ratinho, não havia como disputar no mesmo campo, e a Globo decidiu manter sua linha. O fato é que o sucesso do programa fez a coisa se espalhar por várias emissoras: os principais titulares do Aqui e Agora saíram da Tupi para a TVS, de Silvio Santos, e lá criaram o Agora é Aqui, depois batizado de O Povo na TV, com formato idêntico. A disputa ente os dois foi grande, e acabou beneficiando a Globo. Com o fim da Tupi, o Aqui e Agora mudou-se para a Band. O ‘mundo cão’ reinou nas duas emissoras até que elas percebessem que os altos índices de audiência eram improdutivos: não atraíam anunciantes. E os dois programas acabaram fora do ar. Foi mais uma vitória da qualidade.

Saiamos agora um pouco do terreno do ‘mundo cão’e entremos no mundo dos talentos. Em meados dos 70, Renato Aragão obtinha sucesso na Tupi, com programas que faziam os intelectuais torcerem o nariz para ele. O sucesso era tamanho, que a revista Veja em outubro de 75, registrou: ‘Aragão se tornou o artista preferido das crianças, e, embora seu programa seja exibido às 21 horas pela Rede Tupi, tem conseguido uma média de 25% de audiência em 13 estados. E, no Rio, o progressivo aumento de público de Os Trapalhões forçou a quase imbatível Rede Globo a mudar três vezes de programa nos últimos três anos para enfrentar Aragão. Com uma média de 25% de Ibope, ele já conseguiu quase igualar os índices da Grande Família, Globo Repórter e, agora, Chico City’. Como se vê, mexer na grade de programação para combater a concorrência nunca foi crime – na verdade, sempre foi uma arma – e contratar adversários com audiência, mesmo contra a opinião de pretensos intelectuais, uma arma maior ainda. Renato Aragão foi contratado pela Globo que, nos primeiros programas cometeu um erro logo corrigido: colocou o quarteto de smoking – este traje era uma obsessão do Padrão Globo de Qualidade de então. A união dos Trapalhões e da Globo deu certo e os intelectuais logo mudaram de idéia. A Veja em setembro de 79 publicou: ‘Aragão nem sabe direito quem é que andou elogiando seu programa. Mas não esconde o orgulho ao dizer que, ‘depois que os intelectuais falaram bem, virou moda assistir aos Trapalhões’. E, como os intelectuais autorizaram, ‘ninguém precisa mais fingir que viu o programa ao passar pelo quarto de empregada’’. Fenômeno parecido ao de Chacrinha, a quem a chamada intelectualidade desprezava. Os gritos de ‘Teresinha, UUUH’ e o jogar de bacalhau e frutas na platéia eram sinônimo do que havia de pior, de mais ‘popular’. Depois de passar por todas as emissoras e voltar à Globo, onde encerrou a carreira, é que Chacrinha se tornou um guru, um papa da comunicação.

Problemas de audiência, num mercado que é aberto, em que as pessoas são absolutamente livres para mudar de canal (falar em monopólio é puro delírio), sempre existiram. E os domingos da Globo passaram anos com problema, desde a saída de Silvio Santos da emissora. A grade de programação era mexida com freqüência bastante grande, mas nada batia Silvio. ‘Sete meses depois de deixar a poderosa Globo, levando seu terno e seu jeito de vendedor bem-sucedido para a Tupi, Silvio Santos conseguia batê-la por boa diferença no Ibope. Teve um domingo, nesse mês de março, em que a vitória foi daquelas de envergonhar o adversário: 48 a 7’, dizia a Folha de S.Paulo de março de 1977. E prosseguia: ‘Enquanto isso, os homens da Globo mudam Moacir Franco de horário, tiram a loura Pepita Rodrigues do ar, imaginam como ficaria a morena Lady Francisco em seu lugar – na busca do sucesso’. A situação persistiu por bastante tempo, com altos e baixos. Em setembro de 79, a revista Veja dizia: ‘Renato Aragão só faz ampliar a sua faixa de espectadores, (…) e ainda é a única atração que consegue vencer a maratona de Silvio Santos na Tupi’. Os problemas com Silvio só foram resolvidos com a chegada de Fausto Silva, outro talento capturado da Bandeirantes.

A memória é curta e, por isso, vale aqui mais um exemplo. Apesar de toda a carga de preconceito que pesava sobre ela (dizia-se até que errava na concordância verbal), Xuxa foi contratada pela Globo para substituir a Turma do Balão Mágico e o TV Mulher. A iniciativa visava a um alvo concreto: o palhaço Bozo, que ameaçava a Globo no horário matinal. ‘Com a contratação de Xuxa, a Rede Globo espera superar de vez os picos de audiência de Bozo, seu concorrente na TVS’, dizia o Jornal do Brasil na época. ‘Espera-se que Xuxa desbanque o grande concorrente da emissora no horário das 8 às 9 da manhã: o palhaço Bozo, da TVS. Nesse período o programa da concorrente incomoda a Globo; algumas vezes chega a empatar com o TV Mulher, e mesmo a vencê-lo’, escreveu a revista Afinal em junho de 86. Dispensável dizer que o êxito foi total.

Olhando-se com a perspectiva do passado, não se entende direito toda essa polêmica em torno das novas atrações da Globo, das mexidas em sua grade de programação, do sucesso que programas tipo ‘mundo cão’ fazem. Tudo isso, de uma forma ou de outra, já aconteceu, e venceu quem preferiu apostar na qualidade, sem deixar de ser popular. No presente, como no passado, é preciso admitir serenamente que a Globo é líder absoluta de audiência, embora sofra, agora como antes, problemas pontuais com este ou aquele horário, com este ou aquele programa, com esta ou aquela novela. Evidentemente, as proporções mudaram, como mudou o Brasil. Em 1980, para uma população de 123.032.000, havia 19.602.000 aparelhos de televisão em uso no país; em 1997, para uma população de 155.162.602, eram já 53.500.000 aparelhos em uso (portanto, em n&uauacute;meros absolutos, a audiência forçosamente terá crescido, mesmo que tenha havido uma diminuição em termos percentuais). E como atualmente existem 2.500.000 de assinantes de TV paga, com um leque de mais de uma centena de canais, é evidente que a disputa pela audiência mudou, o que leva a uma constatação: continuar a ser líder em praticamente todas as faixas de horário é um feito ainda maior hoje do que foi no passado.”

“TV Globo ontem e hoje: o que mudou?”, copyright O Globo, 29/6/99

 

“Há quase 80 dias, quando a apresentadora Ana Maria Braga deixou a Record, o mercado e a própria emissora chegaram a pensar que o faturamento e a audiência do programa Note Anote cairiam. Mas nada disso aconteceu. Para não falar que nada aconteceu, o programa perdeu a audiência infantil com a saída de Louro José – boneco que interagia com a apresentadora –, mas a média geral não foi alterada.

A nova titular, Cátia Fonseca, consegue superar os índices de audiência de sua antecessora. Na época de Ana Maria Braga, o vespertino da Record dava, em média, de cinco a seis pontos de audiência – cada ponto equivale a cerca de 80 mil telespectadores na Grande São Paulo. Hoje, Cátia elevou a média de audiência para sete pontos.

No faturamento do horário as coisas também vão bem. ‘O faturamento é baseado na audiência. Quando ela sobe, o faturamento sobe também. Isso acontece independentemente do apresentador. O perfil da audiência não se modifica’, afirma Carlos Alberto Misiroli, 55, superintendente comercial da emissora do bispo Edir Macedo.

Para Claudio Venancio, diretor de mídia da Fischer América, isso tem uma justificativa: o longo tempo que Ana Maria ficou – e vai permanecer – fora do vídeo. ‘Os telespectadores acabam se acostumando com os novos apresentadores quando percebem que os preferidos não voltam mesmo. Os índices de audiência mostram que as pessoas se identificam mais com o tipo de programa do que com quem o apresenta.’

Antes da Record, Cátia apresentava o Pra Você, um programa nos mesmos moldes do Note Anote, na CNT/Gazeta – emissora que deixou para cobrir a vaga deixada por Ana Maria. ‘Não me incomodo de ser vista como a substituta. Faço a mesma coisa que fazia na CNT/Gazeta, sem imitar ninguém’, diz Cátia. A apresentadora recebe em média cem cartas por dia de fãs, que provavelmente também assistiam Ana Maria Braga. ‘Você acaba dando o seu jeito ao programa e conquistando as pessoas. Faço tudo de uma forma que me divirta, sem procurar imitar ninguém.’

A saída de Ana Maria Braga da Record provocou um ‘efeito dominó’ entre as apresentadoras de programas femininos. Assim como Cátia se deu bem na Record, sua substituta no Pra Você, Claudete Troiano, também melhorou os resultados na CNT/ Gazeta.

O Pra Você, que antes dava em média um ponto com Cátia, hoje alcança três pontos com Claudete. Claudete substitui atualmente Ione Borges, que está de licença médica, mas assumirá definitivamente o comando do Mulheres com a ida de Ione para um programa noturno – sem culinária nem artesanato. Claudete já apresentara este programa, quando ainda se chamava Mulheres em Desfile e logo que virou apenas Mulheres. No matutino Pra Você, Claudete tem sido substituída por Cláudia Pacheco que, segundo a emissora, deve se transformar em uma ‘apresentadora curinga’.

O mesmo ‘efeito dominó’ de substituição de apresentadores aconteceu com o Cidade Alerta, também da Record. Nei Gonçalves Dias foi substituído por João Leite Neto, que deu lugar a Luiz Datena, ‘que mantém médias de 19 pontos no programa, sem apelar’, afirma José Paulo Vallone, diretor de programação da Record. ‘O que importa para o mercado publicitário é a audiência, não o apresentador’, afirma Misiroli, da Record.

O programa noturno de Ana Maria também foi substituído. No seu lugar entrou o Fábio Jr. – Sem Limite pra Sonhar que, segundo Vallone, fatura mais que a apresentadora no mesmo horário. Do jeito que a emissora tem se virado bem, nem é cogitada uma volta de Ana Maria Braga, caso seu programa não dê certo na Globo: ‘Como as coisas estão agora, seu antigo patrão (a Record) pode não achá-la mais tão indispensável assim’, diz Vallone.”

“Efeito dominó”, TV Folha, copyright Folha de S.Paulo, 27/6/99

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“Ana Maria Braga assinou na última terça-feira um contrato, de valor não revelado, com a Rede Globo por quatro anos. Ana Maria – que diz não ter vergonha de ser chamada de ‘Ana Maria Brega’ – garante que vai manter todas as características que fizeram o seu sucesso na Record: as luvas sem dedos, o Louro José, os merchandisings e o hábito de comer os pratos preparados pelos convidados e passar por debaixo da mesa. O programa tem estréia prevista para agosto.

Mas a ida para a Globo, segundo especialistas, não garante a repetição do sucesso da apresentadora na Record. ‘Ana Maria Braga tende a sumir dentro da programação da Globo, com um programa menor. Lá, ela será mais uma e não terá o prestígio que tinha na Record’, afirma Daniel Barbará, diretor comercial da agência de publicidade DPZ.

Segundo ele, a contratação de Ana Maria pela Globo é, mais do que o interesse na apresentadora, um desejo de anular a audiência da concorrência que está incomodando. ‘Essa estratégia de tentar agradar tanto à classe A como à classe D não dá certo porque acaba não satisfazendo a nenhuma delas.’

Fora do ar até agosto, a apresentadora completará quase quatro meses sem um programa. ‘A ida para uma grande emissora, ficando tanto tempo fora do vídeo, é um risco para qualquer apresentador de médio porte’, diz Claudio Venancio, diretor de mídia da agência de publicidade Fischer América.

Sem revidar

Mas nada disso parece abalar Ana Maria Braga, que se recusa educadamente a responder às críticas feitas pela Rede Record – como a acusação de ter abandonado o emprego.

Ana Maria admite que a ida para uma emissora como a Globo, que admite retirar do ar os programas que não satisfazem imediatamente suas expectativas, lhe deixa insegura.

‘É claro que gera insegurança, mas, se o programa for tirado do ar, posso ir para outro lugar dentro da emissora, já que meu contrato é de quatro anos’, conforma-se.

Apenas a periodicidade – de segunda a sexta – e um protótipo de cenário do programa estão decididos. Horário, formato e nome ainda não foram definidos. ‘Posso garantir que será um programa que vai atingir as mulheres das classes A a D, além dos adolescentes’, afirma ela, que tem em contrato a possibilidade de ter um programa noturno no ano que vem. ‘Não me importo em qual hora o programa diário será exibido. Estando na Rede Globo, qualquer hora é boa. Para mim, não faz diferença.’

Com a possibilidade de fazer um programa de, no mínimo, uma hora ao vivo, Ana Maria ainda se deslumbra com o fato de ter ido para a Globo: ‘Lá vou ter uma pessoa para cuidar do meu figurino, da maquiagem, da luz, de tudo. É só levar a minha vontade de trabalhar’.

Segundo ela, todo artista sonha em ir para a Globo. ‘Eu sonhava em trabalhar no SBT e depois, na Globo. Queimei uma etapa’, comemora.”

“Apresentadora assume ser ‘brega’”, TV Folha, copyright Folha de S.Paulo, 27/6/99

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“Por que Ana Maria Braga deixou a Record e demorou para ir para outra TV? A versão de Ana Maria e seu advogado, Sérgio Dantino, é que a Record estava inadimplente com ela em uma parcela do contrato, além de merchandisings e do salário de março – um total de R$ 1,28 milhão, que está depositado em juízo.

A demora, diz ela, ocorreu por ter analisado as propostas que teve: SBT, Band, CNT e Rede TV!. Além do mais, Ana Maria diz que seu relacionamento com o diretor de programação da emissora, José Paulo Vallone, não ia bem. ‘Cheguei a ficar dois meses sem ser atendida por ele. É impossível trabalhar assim.’

Vallone rebate: ‘Ana se sentiu ameaçada por novos artistas. Na Record, não existe artista mais importante que a emissora’. A Record alega ainda que Ana Maria abandonou o emprego e lhe cobrará R$ 23 milhões -R$ 21 milhões de multa e R$ 2 milhões de adiantamento.

A emissora não descarta cobrar a multa da Globo, já que tem certeza de que ela tinha um ‘pré-contrato com a emissora’. Nem a Globo nem Ana Maria admitem isso. Ana Maria afirma que desde 12 de abril não tem vínculo com a Record.

Dantino diz ainda que vai mover uma ação contra a Record, pedindo o valor que a emissora quer cobrar de multa, alegando danos pelos atrasos.”

“Troca pode virar uma longa batalha jurídica”, TV Folha, copyright Folha de S.Paulo, 27/6/99

 

“Impotente entre o temor de adotar qualquer providência que pareça censura e a avalanche de barbarismo que invade as salas de jantar dos brasileiros através da televisão, o governo esbraveja, cruza os braços e reza a Deus para que dê juízo aos responsáveis pela programação das emissoras. Na semana que vem, os diretores das principais redes do país serão convocados para uma rodada final de conversas com o secretário nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, José Gregori. Receberão de quebra uma intimação para apresentar até setembro códigos de controle interno de qualidade. Depois disso, terão de se entender com o ministro das Comunicações, Pimenta da Veiga, encarregado de elaborar a lei geral das telecomunicações a ser entregue à apreciação do presidente Fernando Henrique Cardoso ainda este ano. Parece tudo muito decisivo, mas não é. Como o primeiro prazo de Gregori venceu em janeiro e só a Bandeirantes entregou um código de ética e como Pimenta da Veiga não admite outra possibilidade que não a da auto-regulamentação, das duas uma: ou o telespectador desliga a televisão ou ajuda o governo com uma reza forte que produza o milagre.

A gota d‘água foi, como sempre, mais uma aberração exibida no Programa do Ratinho, do SBT, na última segunda-feira. Uma reportagem de Artur Veríssimo, correspondente da revista Trip encarregado de produzir matérias especiais para o programa, mostrou imagens de uma mulher nua fumando pela vagina e pelo ânus. O quadro registrou 28 pontos de audiência no Ibope. As cenas foram feitas na Tailândia, onde as mulheres têm o costume de desenvolver a musculatura de todo o corpo, incluindo os da região genital. A técnica tem um nome – pompoar – e 4 mil anos de tradição. Passada de mãe para filha tem finalidades terapêuticas e aumenta o prazer sexual. Especialistas modernos adotam o pompoarismo para casos de incontinência urinária e como auxiliar em partos normais.

‘Para as tailandesas isso faz parte da cultura delas, mas é claro que elas não saem às ruas mostrando essas aptidões. A mulher fez a exibição a pedido do repórter’, conta um dos produtores do programa, que pediu para não ser identificado. ‘Depois que a censura acabou, o limite daquilo que se deve ou não levar ao ar é apenas uma questão da consciência de cada um’, diz Carlos Massa, o Ratinho. O apresentador desfralda atenuantes: passou o programa inteiro avisando as mães que desligassem a televisão e não deixassem as crianças assistir. É bem verdade, também, que a reportagem foi exibida às 22h50 e a produção teve o cuidado de disfarçar os detalhes anatômicos da mulher com a técnica de mosaico, que distorce as imagens por meio do computador.

O resto é desculpa esfarrapada. ‘Outro dia assisti, na novela Andando nas nuvens da Globo, um cara abrir as pernas da menina e fazer sexo com ela. Disso ninguém fala, porque ninguém quer falar mal da Globo. Já vi uma cena de estupro no Linha direta, da Globo, mas isso também ninguém percebeu’, acusa Carlos Massa. ‘As imagens são mais cômicas do que pornográficas’, afirma o produtor garantido pelo anonimato. Não é o que acha José Gregori. ‘Qualquer manual de qualidade, por mais concessivo que seja, não poderia admitir cenas como essa’, reage o secretário.

Não é a primeira vez que o Programa do Ratinho envereda pelo exotismo. Antes, já havia exibido uma reportagem sobre o povo Sãdus, da Arábia, que segue a abstinência sexual por meio de técnicas nada ortodoxas – numa delas, os homens enrolam o pênis em um pedaço de madeira e meditam debaixo de um sol de 40 graus com uma bacia de brasa na cabeça. Para tentar dar um caráter didático à reportagem exibida na segunda-feira, o programa contou com a participação da sexóloga paranaense Marilene Cristina Vargas. A professora Estela Alves, que ministra cursos de ginástica sexual e erótica com base nos princípios tailandeses em São Paulo, também foi convidada pela produção, mas não chegou a participar do programa. ‘As cenas mostradas não representam o pompoarismo’, revela. ‘As imagens mostradas no Programa do Ratinho são de uma mulher que faz shows.’

Gentileza dela. As cenas foram gravadas em uma boate da Tailândia. Eram tão chocantes que o próprio Carlos Massa admite que ficou constrangido ao assisti-las pela primeira vez. Devia ter apostado na intuição. Produto típico da mudança de perfil do telespectador brasileiro, o apresentador sabe, porém, o público que tem. Só nos quatro primeiros anos do Plano Real, foram vendidos 20 milhões de novos aparelhos de televisão’, revela Daniel Barbará, da agência de publicidade DPZ. A avalanche corresponde a nada menos de metade do total de 38 milhões de lares brasileiros que hoje têm uma televisão. Quem há uma década tinha no aparelho o principal instrumento de lazer fazia parte das classes B e C e assistia à programação em família. Hoje, é das classes C e D e vê televisão sozinho. O quadro mudou tanto que a Globo viu migrar para a concorrência nesses dez anos nada menos de 10% da audiência. ‘A figura do justiceiro, do defensor do povo a qualquer custo preenche as necessidades de quem não sabe o que é cidadania e nem tem direito a voz’, afirma Barbará. Assim sendo, só milagre!

“Novo ultimato a emissoras”, copyright Jornal do Brasil, 2/7/99