Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Luiz Garcia

"Baixas na guerra suja", copyright O Globo, 3/7/01

"Foram anos de cordial convivência. Têm sido dias de dolorosa decepção. Mas nem uma coisa nem outra permitem-me fazer de conta que não aconteceu a triste trapalhada em que Ricardo Boechat se meteu ou em que o meteram. Não é episódio isolado, pelo contrário. Talvez seja apenas o primeiro a abater um profissional de bom nível em pleno vôo, circunstância tão singular e desagradável que houve quem visse na sua demissão do GLOBO o fato central da história, quando não passa de sua conseqüência mais triste.

As gravações publicadas por ?Veja? documentam uma guerra suja, em que empresários tentam ganhar dinheiro manipulando os meios de comunicação. A notícia levada por Boechat ao GLOBO, algum tempo atrás, era uma manobra do empresário Nelson Tanure numa disputa com o empresário Daniel Dantas. Isso está comprovado nas gravações publicadas em ?Veja? ? a qual, por sua vez, foi usada para jogar uma pá de lama em Tanure.

Aceite-se, como hipótese de trabalho, que todo o material usado é a expressão da verdade. Ainda assim, sobra, para a imprensa que pensa antes de publicar, decidir se, como e quando as intenções da fonte danificam a notícia a ponto de torná-la inaceitável. Se há leigos por perto, anotem: a verdade é apenas uma (quase sempre a mais importante) entre as características que transformam um fato em notícia. Relevância e legitimidade pesam bastante.

Normas jornalísticas em geral são acompanhadas por pencas de exceções. Por isso, voltando à relação entre a intenção marota da fonte e a autenticidade da informação, o mais seguro é aferir, tanto quanto possível, o interesse público atendido pela veiculação: ele precisa ter peso extraordinário, a ponto de neutralizar a poluição da transmissão. E mais: os motivos do oferecimento da notícia devem ser conhecidos pelo jornalista e pelo veículo ? e deve-se discutir seriamente se divulgá-los faz ou não parte da lealdade devida ao leitor.

Note-se que isso se refere à informação que cai de pára-quedas na mesa do jornalista. Quando é ele que, por motivos que sabe legítimos, está caçando uma notícia, o relacionamento com a fonte muda em quase 180 graus. Por exemplo, talvez seja perfeitamente legítimo ler um texto final para a fonte que cedeu a notícia a contragosto e pode ter honesto medo de deturpação. Mas será prestimosidade constrangedora fazer o mesmo com a fonte oferecida ? para saber se ela gostou. Infelizmente, aconteceu assim no caso de Boechat, que construiu sua própria demissão pelo muito que falou com seus informantes e pelo pouco que disse aos seus editores.

A veracidade da notícia servida em bandeja não é o fator decisivo da publicação. Importa mais o confronto entre dois índices (tudo subjetivo, claro): o que ganha a fonte com a notícia? quem perde o quê? o que ganha a sociedade? Para complicar um pouco mais, note-se que a notícia que vem fumegante na travessa, verdadeira e bombástica, também pode ser uma forma sutil de suborno. Não há a grosseria do cheque no envelope nem algo mais sutil como o empréstimo do apartamento em Nova York ou da limusine em Londres. Mas abastecer um jornalista de informações é uma forma de fazê-lo prestigiado e importante. Além disso, convenha-se: há uma diabólica forma de suborno chamada amizade, com a intimidade aquecida por charme intelectual ou social. Foi com isso, por exemplo, que John Kennedy levou no beiço a imprensa americana durante seus três anos de Casa Branca.

O distanciamento é escudo e armadura no duelo diário do jornalista contra o dragão da manipulação. Pouca intimidade e máxima diversificação de contatos compõem a política mais segura de administração de fontes.

Precisamos discutir mais essas coisas. (Duas contribuições importantes foram dadas por Dora Kramer, no ?Jornal do Brasil? há uma semana, e por Bernardo Ajzenberg, na ?Folha? de domingo; aproveitei-me de ambas, desavergonhadamente.) Principalmente porque as notícias sobre negócios são cada vez mais importantes na imprensa. Repórteres sabem razoavelmente tratar com as fontes políticas e da área oficial; identificam balões de ensaio e conversas para boi dormir; às vezes, até sabem quando é jornalisticamente lícito passar a mão num documento esquecido sobre uma mesa e sair de fininho.

Por outro lado, parece que ainda temos bastante malandragem a aprender com alguns espécimes do empresariado, nativo e importado. Talvez assim se explique como Ricardo Boechat caiu na armadilha de acreditar que estava fazendo tudo certo porque a notícia era verdadeira e não lhe pagaram para publicá-la. A sua sinceridade, a propósito, é comovente, assim como foi de extrema dignidade o seu comportamento num programa de TV de baixo nível deontológico, em que tentaram forçá-lo a transformar O GLOBO num rocambolesco vilão da história toda.

Se a questão do distanciamento fosse mandamento levado mais a sério do que é, o colunista talvez não chegasse tão perto de um empresário que manda missões a Brasília para vender a alma de seu novo jornal ao presidente do Senado. Pode ser questão de gosto, mas gente assim serve, como amigo do peito? Como fonte, serve? Como dono de jornal? Perguntem aos pobres editores da primeira página do ?Jornal do Brasil? que, apagando incêndio com copo d’água, parecem estar sob ordens de produzir manchetes contra Jader Barbalho quase todo dia.

Gravações de telefonemas alheios (que, segundo diversos advogados, são ilegais) produzem invariavelmente notícias dramáticas, excitantes. Mas ao discutirmos as lições que este triste episódio nos traz, é importante prender o foco na natureza e na motivação das informações. A gravação excita, mas é só o meio, não a mensagem. [Luiz Garcia é jornalista]"

    
    
                     

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