Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mair Pena Neto

‘O título deste artigo pode levar a uma leitura apressada de defesa incondicional do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), enviado recentemente ao Congresso Nacional. Não se trata disso. Ainda não conheço o projeto de criação do CFJ em todos os seus artigos, parágrafos e alíneas e pretendo discutir, em linhas mais amplas, o porquê do repúdio a uma idéia de controle ético da profissão. A quem isso assusta? Quais os temores ocultos por trás das reações de muitos jornalistas e associações?

Os jornalistas discutem muito pouco a ética e a função social de sua atividade profissional. Iluminados, tendem-se a se achar acima do bem e do mal, e sempre com a razão. Falo isso como jornalista, com 25 anos de prática e vivência intensa em grandes redações. Interpreto a idéia do Conselho Federal de Jornalismo ou que outro nome um órgão similar venha a ter como uma instância de auto-regulamentação e vigilância ética, capaz de contribuir com o bom desempenho da profissão. Vejo-o como uma maneira de prestar satisfação à sociedade sobre as nossas atividades.

Muitos alegam que o fiscal e avaliador do nosso trabalho é o leitor. É uma verdade parcial. Que poderes o leitor tem? Nada mais que deixar de ler determinado jornalista, abandonar um jornal ou enviar uma carta, invariavelmente editada e nem sempre capaz de traduzir todo o seu sentimento.

Concordo, plenamente, que o mau jornalismo pode ser punido pela Justiça comum. Ela se adequa perfeitamente a quem se sinta atingido por uma matéria mal apurada ou inverídica. Mas será que só o recurso à Justiça é suficiente? Será que os jornalistas não devem se manifestar, até de forma condenatória, sobre o mau exercício da profissão? Será que o nosso corporativismo impede questionamentos dessa ordem?

Acredito que não, e que podemos avançar muito nesse sentido. Não vejo como policiamento algum analisar eticamente certos procedimentos e chegar à medida extrema de cassação do registro profissional. Desde que este poder esteja em mãos de jornalistas e que os mecanismos de julgamento e defesa sejam os mais democráticos possíveis. Vou me valer do exemplo extremo do pscinalista Amílcar Lobo, identificado como torturador e cassado pelo Conselho Federal de Medicina. As vítimas do terrível médico podiam apenas recorrer à Justiça para levá-lo à prisão e cobrar indenizações pelas atrocidades sofridas. Mas e a categoria médica, não devia repudiá-lo e afastá-lo do convívio que exercem dignamente a profissão? Não deveriam prevenir a clientela do seu mau atendimento?

Em um exemplo mais próximo de nós, será que o jornalista norte-americano Larry Rother não mereceria uma certa condenação da categoria pela má qualidade da matéria que publicou no New York Times? Quando falo condenação, não significa expor à execração pública ou cassar o registro profissional, que no caso citado seria impossível por se tratar de jornalista estrangeiro, mas algum tipo de advertência ou reprovação formal pelo mau jornalismo. Ou é justo deixar por isso mesmo, concordando que um jornalista, sem fundamentos, denigra a imagem pessoal do principal mandatário do país? Antecipo desde já que fui totalmente contrário à idéia de expulsão do dito jornalista. Creio até que a existência de uma instância como o CFJ impediria que os governantes tomassem medidas emocionais e equivocadas.

Acho que chegou a hora dos jornalistas e do jornalismo brasileiro darem um passo à frente na prestação de contas à sociedade e não se encastelarem como o quarto poder, intocável. O Conselho Federal de Jornalismo, sugerido e composto por jornalistas, parece uma boa oportunidade nessa direção. Tudo depende das contribuições que pretendamos dar à iniciativa. (*) Trabalhou no Globo, JB e Agência Estado. Foi correspondente da F-1 em Londres, durante três anos. Foi editor de Política do JB e repórter especial de Economia.’



Luiz Carlos Hauly

‘O PT e o ‘Grande Irmão’’, copyright Jornal do Brasil in Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 11/8/04

‘O Partido dos Trabalhadores, que detém o mais alto poder do País – a Presidência da República – já deu demonstrações mais do que convincentes de intolerância em relação às críticas que se fazem a seus integrantes e a seus métodos de governar.

A confrontação mais estridente do establishment petista com alguém que ousou criticá-lo foi o lamentável episódio da expulsão do jornalista Larry Rother, do New York Times, que teve a petulância de afirmar que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria a propensão diabólica de ingerir bebida alcoólica em dosagem excessiva. A expulsão do jornalista somente foi revogada após forte clamor da sociedade contra uma medida que em gênero, número e grau ressuscitava os fantasmas mais medonhos do regime militar.

O Congresso Nacional acaba de receber o projeto que cria o Conselho Federal de Jornalismo e nas próximas semanas será informado oficialmente da criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), cujo anteprojeto tornou-se público há alguns dias.

As duas iniciativas – que evocam os mais intransigentes fantasmas do stalinismo e de outras ditaduras sepultadas pela História – estão recebendo críticas contundentes dos agentes dos setores envolvidos. Embora o texto final das propostas dependa do Congresso (no segundo caso, da Ancinav, o que se tem até o momento é apenas um anteprojeto), ambas têm causado justificada apreensão de que a liberdade de expressão e de opinião esteja seriamente ameaçada.

A criação da Ancinav, de acordo com o anteprojeto, irá submeter toda a criação audiovisual – cinema e tevês – e radiofônica, inclusive sua linha editorial, ao crivo do Palácio do Planalto. E o Conselho Federal de Jornalismo, proposto por uma das entidades da categoria, a Federação Nacional de Jornalistas, e regulamentado pelo Ministério do Trabalho, terá a preocupante finalidade de ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’ as atividades jornalísticas, podendo até cassar o direito de uma pessoa exercer essa profissão.

O Congresso, portanto, enfrentará o desafio de separar o joio do trigo contido nessas duas propostas para que seja preservada a liberdade de expressão e de opinião, uma das mais gloriosas e sofridas conquistas da jovem democracia brasileira.

A opinião pública está farta de saber que o PT no poder não é mais o mesmo PT que construiu sua história na oposição. Estes dois órgãos limitadores da liberdade de expressão que o PT no poder está gestando violentam a imagem que o PT construiu quando na oposição, imagem que forjou devido justamente à liberdade de expressão e opinião tanto dos integrantes do partido como dos veículos de imprensa que a registrou.

Essas propostas, tal como se apresentam em suas formas originais, são, na realidade, os mais recentes instrumentos de pressão que o PT quer utilizar para calar aqueles que a ele se opõem.

Desde a posse de Lula, especialmente após a reabertura das investigações sobre o assassinato do prefeito petista de Santo André, Celso Daniel, o partido vem se indispondo contra o Ministério Público, cujas ações pretende limitar por meio do veto ao seu direito de investigar.

Para agravar ainda mais este quadro, a nova diretoria da Agência Brasileira de Informações pretende obter a autorização para fazer escutas telefônicas, prática permitida somente à Polícia Federal desde que autorizada pela Justiça.

Ou seja, ao mesmo tempo em que demonstra um apetite avassalador para limitar a ação de seus críticos, o PT no poder quer mais liberdade – ou a liberdade sem limites, sabe-se lá – para bisbilhotar a vida alheia.

George Orwell, autor de 1984, o clássico de ficção-científica que projetava, para alertar sobre os seus riscos, o total controle da sociedade pelo ‘Grande Irmão’ – o ‘olho’ que tudo via, de tudo sabia e tudo impunha – deve estar se revolvendo em seu túmulo. (*) Deputado federal pelo PSDB-PR, membro da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados’



Eduardo Scolese

‘Nem liberdade de imprensa é valor absoluto, diz Gushiken’, copyright Folha de S. Paulo, 11/8/04

‘Ao comentar a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo, o ministro Luiz Gushiken (Comunicação e Gestão Estratégica) citou ontem ‘deslizes’ de setores da mídia, falou em ‘fabricação’ e ‘interpretação’ de notícias e, ao comentar a liberdade de imprensa, afirmou que ‘nada é absoluto’ numa sociedade.

‘Vocês [jornalistas] são profissionais que sabem o limite da ação, sabem que a liberdade de imprensa é um valor definitivo na democracia, mas sabem também que numa sociedade nada é absoluto’, afirmou ontem. Em entrevista, Gushiken tentou se esquivar da polêmica. ‘Esse é um assunto que vocês, jornalistas, e o Congresso devem discutir.’

Em abril, Gushiken afirmou que o critério da imprensa deveria ser a ‘agenda positiva’, e não a ‘exploração do contraditório, que fomenta discórdias e conflitos de egos’. A declaração gerou polêmica, o que forçou o ministro a dizer que em nenhum momento sugeriu o cerceamento.

Ontem, Gushiken disse que a maioria da imprensa trabalha com liberdade, mas, alguns deslizes ocorrem no setor. ‘Acho que a grande parte da imprensa brasileira vive em clima de total liberdade de expressão. Aqui em nosso país não há nenhuma restrição. Agora, evidentemente, alguns deslizes podem existir. Vocês da área sabem melhor do que eu isso. E vocês convivem diariamente com pessoas fazendo, fabricando notícias, dando interpretação.’

No Rio, o ministro José Dirceu (Casa Civil) disse que não identifica no projeto a intenção de propiciar uma ‘interferência no conteúdo, na linha editorial, na independência e na liberdade de imprensa’. Comparou o conselho de jornalismo a conselhos de outras categorias: ‘Da mesma maneira que temos a OAB, o Conselho Federal de Medicina, o Crea, os jornalistas podem e devem ter o seu conselho federal, mas garantida a liberdade de informação e de expressão, direito constitucional de todos nós, que, felizmente, reconquistamos no Brasil’, afirmou.

Na opinião de Dirceu, o conselho ‘é um organismo de auto-regulamentação da profissão de jornalista’: ‘Se no projeto houver algum artigo, algum viés, que leve a isso [cerceamento dos órgãos de imprensa], nós devemos modificá-lo no Congresso Nacional’.

Em Brasília, o presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), Edson Vidigal, que já foi jornalista, colocou-se contrário à proposta: ‘Qualquer tentativa que possa configurar o cerceamento, quer na busca da informação quer no repasse das informações à sociedade, é inconstitucional, não há por que ser considerado, não merece nem discussão’. Para o presidente do STJ, a Constituição já concede à Justiça poderes para punir eventuais abusos da mídia.’

***


"Para Lula, jornalista que não defende conselho é ‘covarde’", copyright Folha de S. Paulo, 17/08/04


"O presidente Luiz Inácio Lula da Silva rotulou ontem, em Santo Domingo (República Dominicana), de ‘um bando de covardes’ os jornalistas que não defendem o projeto de lei enviado pelo governo no início do mês ao Congresso que prevê a criação do CFJ (Conselho Federal de Jornalismo) e suas seções estaduais. Para ele, falta ‘coragem’ à categoria.


‘Vocês são um bando de covardes mesmo, hein? Vocês não tiveram coragem de defender o Conselho Nacional de Jornalista’, afirmou o presidente, ontem à noite, no saguão de entrada do hotel em que está hospedado.


No momento em que deixava o local para ir a um jantar oferecido pelo novo presidente do país, Leonel Antonio Fernandez Reyna, Lula foi em direção a cerca de dez jornalistas brasileiros, que aguardavam sua saída do hotel. Nem chegou a ser questionado, indo direto ao assunto.


Primeiro, chamou todos de ‘covardes’. Em seguida, questionado por uma repórter se os jornalistas teriam de defender o projeto, Lula afirmou: ‘É lógico. Cadê a posição classista de vocês ? (…) Não é uma coisa boa pra vocês? Não é uma reivindicação histórica de vocês? Vocês não eram nem nascidos e já se reivindicava isso’.


A Folha, então, o indagou se o projeto é de interesse dos jornalistas ou do governo . Lula respondeu, antes de ser cercado por seguranças e deixar o local: ‘Pra nós não. Pro governo o que importa é fazer as coisas que a categoria entender que é boa para ela’.


Na última sexta-feira, em visita ao Paraguai, Lula afirmou que somente falaria com os jornalistas que o aguardavam caso eles se posicionassem a favor da criação do CFJ. ‘Se vocês começarem a defender o conselho de imprensa, eu dou [entrevista].’


Ontem pela manhã, na cerimônia de posse de Leonel Reyna no governo da República Dominicana, Lula ouviu seu colega defender a liberdade de imprensa.


‘Os cidadãos não devem se sentir intimidados e perseguidos pelo poder, e a imprensa não deve ser censurada’, afirmou Reyna, em discurso no Congresso do país, diante de oito chefes de Estado da América do Sul, do Caribe e da América Central.


Segundo o projeto de lei do governo, o Conselho Federal de Jornalismo irá, entre outras coisas, ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’ o exercício da profissão e a atividade de jornalismo.


O governo afirma que o envio do projeto ao Congresso não visa encontrar formas legais para controlar a ação dos jornalistas, e sim atender a uma antiga reivindicação da própria categoria. O projeto original é da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas)."




Villas Bôas-Corrêa

‘Saudades do Lourival’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 11/8/04

‘Toda essa conversa dissimulada, marota e calhorda sobre a proposta do governo encaminhada ao Congresso, de criação do Conselho Federal de Jornalismo, com funções definidas em três verbos – ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’ – em marcha batida na cadência da ditadura, despojada dos seus adereços e arrancada a máscara transparente, pretende simplesmente instituir a censura à imprensa.

Há algum tempo, nos trambolhões dos desacertos dos primeiros meses de aprendizado do presidente e da equipe, jejunos da indispensável experiência administrativa, aqui e acolá os sinais de irritação com as críticas mais ásperas de jornais e revistas e das picadas de marimbondo de emissoras de rádio e televisão insinuam, nas entrelinhas, a necessidade de um severo esquema de vigilância dos abusos e a punição exemplar, para escarmento da categoria, dos atrevidos que não fazem justiça, com as loas que acariciam a alma, ao esforço sincero do presidente e dos que recrutou, com a generosidade do consolo aos derrotados, para compor o maior ministério de todos os tempos.

A indignação, remoída nos desabafos palacianos, soltou-se das algemas do constrangimento com a denúncia dos escândalos farejados em vários cantos e envolvendo os intocáveis da equipe econômica, que seguram a inflação e comemoram os sinais alentadores da retomada do desenvolvimento, escorada em índices, embora modestos, mas de significação indiscutível.

E é aí que a encruzilhada em cima do mata-burro obriga a escolha entre a trilha apertada das convicções democráticas e a tentação da estrada pavimentada pelas facilidades do arbítrio. A perdição acena com engambelos da feitiçaria convincente. Desfila as justas queixas pela leviandade das acusações jamais comprovadas e que expõem as pobrezinhas das vítimas à execração pública; aponta a ligeireza com que repórteres desprezam o sigilo protegido por lei e invadem a privacidade de cidadãos dignos. Contas bancárias, conversas telefônicas, cartas, documentos, recibos, gravações clandestinas alimentam a gana do denuncismo que zomba da lei, na segurança da impunidade.

A argumentação realmente impressiona com a lista de exemplos incontestáveis.

Mas a impunidade que grassa como erva daninha em terreno abandonado é um privilégio exclusivo dos jornalistas ou é a regra na bagunça da legislação caduca, corroída pela traça que abre os buracos da infinidade dos recursos, das apelações, das instâncias superpostas da caminhada sem fim dos processos que se arrastam na morosidade dos prazos da Justiça manietada, cúmplice compulsória das manobras de advogados, e impotente para deter a fuga pela brecha das prescrições?

Paralisada pela indiferença oficial que acode às prioridades do seu interesse, a reforma judiciária não anda um passo na madraçaria parlamentar da semana brasiliense de dois, três dias úteis, com o desconto dos recessos, das férias e das campanhas eleitorais.

Entra pelos olhos que uma faxina para valer no Poder Judiciário não interessa ao governo e sequer roça pela insensibilidade do Congresso. A impunidade complementa a imunidade parlamentar e protege as elites. Pobre mofa na cadeia, não tem dinheiro para as despesas com a sua defesa.

A lei penal enquadra os jornalistas que a infringem nos crimes de calúnia e injúria. Se é raridade de museu a condenação que trancafie o réu no xilindró, a responsabilidade pela preguiça da Justiça não é da imprensa.

Vamos, por uma vez, dar uma folga à hipocrisia e enfrentar a evidência dos fatos. O governo petista, na escalada da contradição, está se despedindo dos embaraços das culpas que castigam a consciência.

Nos meus 55 anos de militância na cobertura política passei pelo vexame de reincidentes períodos de censura. Nas suas diferentes modalidades, ditadas pelo maior ou menor caradurismo dos ditadores. Espasmos passageiros, como ataques de loucura em insanos cíclicos, nas várias crises que derrubaram presidentes e despacharam vices no exercício ilusório do poder, de Café Filho a Carlos Luz em lances do mesmo transe.

O Estado Novo não corou as bochechas no vexame da ditadura ostensiva: oficializou a censura, criando o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) confiado à docilidade de seu primeiro diretor, Lourival Fontes, que temperava o purgante ao gosto do freguês, distribuindo gorjetas aos que espichavam a mão no gesto de pedinte.

Fardada e cínica, a ditadura militar não suportou a liberdade vigiada da imprensa por muito tempo, mergulhando de cabeça na censura que rimava com tortura, na dupla que calava os gritos dos submetidos ao tratamento do Doi-Codi.

Nova temporada no carnaval petista passa de todos os limites. Com escusas pelo arremate pessoal, confesso o meu nojo pela impostura do Conselho Federal de Jornalismo, apelido descarado de novo modelito de censura, com as responsabilidades diluídas entre os que se prestarem ao papel de conselheiros da calhordice.

Não acredito que o governo emplaque mais esta no Congresso. Com ou sem retoques. Afinal, os parlamentares devem à imprensa que cobre as suas atividades e emudece nas gazetas semanais a boa vontade de um noticiário benevolente com a orgia das mordomias.

No que me diz respeito, não voltarei ao assunto. A esta altura da vida, não tomarei conhecimento da censura ao jeito do olhar de Capitu, se ela vingar no lodo dos acertos suspeitos.

Será como se não existisse.’

***

‘O DIP de Lula’, copyright Jornal do Brasil, 11/8/04

‘Toda essa conversa dissimulada, marota e calhorda sobre a proposta do governo encaminhada ao Congresso, de criação do Conselho Federal de Jornalismo, com funções definidas em três verbos – ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’ -, em marcha batida na cadência da ditadura, despojada dos seus adereços e arrancada a máscara transparente, pretende simplesmente instituir a censura à imprensa.

Há algum tempo, nos trambolhões dos desacertos dos primeiros meses de aprendizado do presidente e da equipe, jejunos da indispensável experiência administrativa, aqui e acolá os sinais de irritação com as críticas mais ásperas de jornais e revistas e as picadas de marimbondo de emissoras de rádio e televisões insinuam nas entrelinhas a necessidade de um severo esquema de vigilância dos abusos e a punição exemplar, para escarmento da categoria, dos atrevidos que não fazem justiça, com as loas que acariciam a alma, ao esforço sincero do presidente e dos que recrutou, com a generosidade do consolo aos derrotados, para compor o maior ministério de todos os tempos.

A indignação, remoída nos desabafos palacianos, soltou-se das algemas do constrangimento com a denúncia dos escândalos farejados em vários cantos e envolvendo os intocáveis da equipe econômica, que seguram a inflação e comemoram os sinais alentadores da retomada do desenvolvimento, escorada em índices, embora modestos, mas de significação indiscutível.

E é aí que a encruzilhada em cima do mata-burro obriga à escolha entre a trilha apertada das convicções democráticas e a tentação da estrada pavimentada pelas facilidades do arbítrio. A perdição acena com engambelos da feitiçaria convincente. Desfila as justas queixas pela leviandade das acusações jamais comprovadas e que expõem as pobrezinhas das vítimas à execração pública; aponta a ligeireza com que repórteres desprezam o sigilo protegido por lei e invadem a privacidade de cidadãos dignos. Contas bancárias, conversas telefônicas, cartas, documentos, recibos, gravações clandestinas alimentam a gana do denuncismo que zomba da lei, na segurança da impunidade.

A argumentação realmente impressiona com a lista de exemplos incontestáveis.

Mas a impunidade que grassa como erva daninha em terreno abandonado é um privilégio exclusivo dos jornalistas ou é a regra na bagunça da legislação caduca, corroída pela traça que abre os buracos da infinidade dos recursos, das apelações, das instâncias superpostas da caminhada sem fim dos processos que se arrastam na morosidade dos prazos da Justiça manietada, cúmplice compulsória das manobras de advogados, e impotente para deter a fuga em massa pela brecha das prescrições?

Paralisada pela indiferença oficial que acode às prioridades do seu interesse, a reforma judiciária não anda um passo na madraçaria parlamentar da semana brasiliense de dois, três dias úteis, com o desconto dos recessos, das férias e das campanhas eleitorais.

Entra pelos olhos que uma faxina para valer no Poder Judiciário não interessa ao governo e sequer roça pela insensibilidade do Congresso. A impunidade complementa a imunidade parlamentar e protege as elites. Pobre mofa na cadeia, não tem dinheiro para as despesas com a sua defesa.

A lei penal enquadra os jornalistas que a infringem nos crimes de calúnia e injúria. Se é raridade de museu a condenação que trancafie o réu no xilindró, a responsabilidade pela preguiça da Justiça não é da imprensa.

Vamos, por uma vez, dar uma folga à hipocrisia e enfrentar a evidência dos fatos. O governo petista, na escalada da contradição, está se despedindo dos embaraços das culpas que castigam a consciência.

Nos meus 55 anos de militância na cobertura política passei pelo vexame de reincidentes períodos de censura. Nas suas diferentes modalidades, ditadas pelo maior ou menor caradurismo dos ditadores. Espasmos passageiros, como ataques de loucura em insanos cíclicos, nas várias crises que derrubaram presidentes e despacharam vices no exercício ilusório do poder, de Café Filho a Carlos Luz, em lances do mesmo transe.

O Estado Novo não corou as bochechas no vexame da ditadura ostensiva: oficializou a censura, criando o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e confiando sua instalação à diligência do primeiro diretor, Lourival Fontes, que temperava o purgante ao gosto do freguês, distribuindo gorjetas aos que espichavam a mão no gesto de pedinte.

Fardada e cínica, a ditadura militar não suportou a liberdade vigiada da imprensa por muito tempo, mergulhando de cabeça na censura que rimava com tortura, na dupla que calava os gritos dos submetidos ao tratamento do DOI-Codi.

Nova temporada no carnaval petista passa de todos os limites. Com escusas pelo arremate pessoal, confesso o meu nojo pela impostura do Conselho Federal de Jornalismo, apelido descarado de novo modelito de censura, com as responsabilidades diluídas entre os que se prestarem ao papel de conselheiros da calhordice.

Não acredito que o governo emplaque mais esta no Congresso. Com ou sem retoques. Afinal, os parlamentares devem à imprensa que cobre as suas atividades e emudece nas gazetas semanais a boa vontade de um noticiário benevolente com a orgia das mordomias.

No que me diz respeito, não voltarei ao assunto. A esta altura da vida, não tomarei conhecimento da censura ao jeito do olhar de Capitu, se ela vingar no lodo dos acertos suspeitos.

Será como se não existisse.’