Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mauro Ventura

‘O cineasta Fernando Meirelles diz que gostaria de saber o que pensam agora os críticos que chamaram ‘Cidade de Deus’ de ‘nocivo’ e disseram que é ‘espetacularização da violência’, ‘chacina fashion’ e ‘estetização da miséria’. De alma lavada com as quatro indicações ao Oscar – diretor, montagem (Daniel Rezende), fotografia (César Charlone) e roteiro adaptado (Bráulio Mantovani) – ele está às voltas com a escolha da atriz do novo filme e se dá ao luxo de não querer Nicole Kidman e Kate Winslet no elenco. ‘É uma questão de idade. A personagem tem 22 anos’, diz. Meirelles pode.

Como você recebeu as quatro indicações ao Oscar?

FERNANDO MEIRELLES: Eu estava no escritório em Londres, em reunião com o ator Danny Huston, que vai trabalhar no meu novo filme (o thriller ‘O jardineiro fiel’, adaptação do livro de John Le Carré) , quando me avisaram que havia uma ligação do Brasil, da minha produtora (a O2) . Eu não estava assistindo ao anúncio do Oscar porque ser indicado era a última coisa que eu esperava. Alguém ia me mostrar a lista depois mesmo… Na verdade, não tinha a mínima idéia de que estava passando o anúncio. Já não tinha sido indicado uma vez (para filme estrangeiro) . A moça que passou a ligação do Brasil disse: ‘Eles estão bem animados, querem lhe dar os parabéns.’ Quando fui atender, caiu a ligação. Liguei de volta e a telefonista da O2 disse: ‘Parabéns!’. Pensei: ‘Quem sabe o filme foi indicado na categoria montagem?’. Quase caí de quatro quando falaram nas quatro indicações. Nessa hora, estavam chegando o John Le Carré, o Ralph Fiennes e uma big shot da (distribuidora) Focus. Íamos assistir a um filme do Spike Jonze, ‘Eterno pôr-do-sol’, para ver a atuação da Kate Winslet. Só que ligou um cara da Miramax e falou que estava com o ‘The New York Times’ e o ‘Los Angeles Times’ na linha. Falei: ‘Não posso atender, tem gente me esperando.’ Mas tive que atender. Era um telefonema atrás do outro. Quando chegou a vez de um jornal, acho que o ‘Washington Post’, disse: ‘Não dá mais.’ Durante a projeção, tive que sair para atender a outros telefonemas. E fiquei até as 3h respondendo a e-mails. Foi um caos.

As indicações funcionam como um cala-boca nos críticos?

MEIRELLES: Os caras que foram rigorosos talvez já tenham revisto suas opiniões. Tenho uma lista com as piores críticas. Adoraria que você fizesse uma reportagem com os críticos. Que pegasse, por exemplo, quem disse que o filme ia ser esquecido em três meses e perguntasse: ‘E aí, por que as pessoas não esqueceram?’.

A Katia Lund, co-diretora, disse numa entrevista que você assumiu o filme sozinho e não lhe deu o devido crédito.

MEIRELLES: Ela me mandou um e-mail absolutamente amável, desejando-me sorte. Disse: ‘Desculpe-me o tom, não era essa minha intenção, quero sempre estar ao seu lado.’

Quais são as chances de ‘Cidade de Deus’ no Oscar?

MEIRELLES: Para diretor, Peter Jackson (de ‘O Senhor dos Anéis’) é barbada. Eu votaria nele. Um cineasta que fez três filmes daqueles não há dúvidas de que merece ganhar. Quem tem mais chance é o Daniel, na montagem. Dos caras com quem compete, ele é o melhor. Quanto à fotografia, assisti ao filme ‘Moça com brinco de pérola’. É uma imagem mais linda do que a outra, que remete aos quadros de Vermeer. Tem toda a cara de ganhar. E no caso do roteiro o problema é que o nosso é em português.

Como as indicações vão influir no cinema brasileiro?

MEIRELLES: Um filme brasileiro que funciona puxa os outros. ‘Central do Brasil’ me puxou. A Videofilmes (de Walter e João Moreira Salles) é co-produtora de ‘Cidade de Deus’. Estou fazendo agora o que o Waltinho fez comigo, estou produzindo dois novos diretores. Um é Roberto Moreira. Seu filme, ‘Contra todos’, vai estar no Festival de Berlim. O outro é Philippe Barcinski. O projeto de ‘Não por acaso’ está no Festival de Roterdã, sendo vendido para o mercado. É o que tem mais pessoas interessadas, o dobro do segundo lugar. Ou seja, antes mesmo de começar a rodar, o filme já vai ter sido vendido para vários países. Com isso, ele vai ter dinheiro para filmar.

De que forma o filme ajudou a comunidade de Cidade de Deus?

MEIRELLES: A única bola fora nesta festa toda é que em janeiro do ano passado sete ministérios estavam em conversações e fazendo promessas de ações em Cidade de Deus. Fiquei feliz ao ver que o filme tinha levantado uma questão e ajudado a gerar algo concreto. Um ano depois, um a um foram se afastando e parece que a Cidade de Deus foi esquecida novamente. Há apenas um aporte de R$ 9 milhões do Criança Esperança, mas que está também esperando uma assinatura da Rosinha Garotinho. Eu lamento isso.

É verdade que você não quis Nicole Kidman como atriz de ‘O jardineiro fiel’, para não transformá-lo num filme de estrela?

MEIRELLES: A Nicole é mais por causa da idade dela. A personagem principal, Tessa, tem 22 anos.

Você tem tido reuniões e visto peças, fitas VHS, DVDs, filmes e fotos, para escolher os atores do filme. Quem, afinal, viverá Tessa?

MEIRELLES: Na terça-feira, estou indo a Nova York para conversar com a Kate Winslet. Mas também acho ela um pouco velha para o papel. Teve dois filhos, está meio matrona. Minha candidata favorita é Eva Green, que fez o novo filme de Bertolucci. Ela está na Espanha com Ridley Scott, filmando ‘Kingdom of Heaven’, sobre as cruzadas. Mas tem outras no páreo, como a Natalie Portman e a Sienna Miller.

Também se falou na Naomi Watts (de ‘Cidade dos sonhos’).

MEIRELLES: Eu a vi em ‘21 gramas’ e fiquei impressionado. Ela está maravilhosa. Eu toparia, mas a gente a perdeu. Ela vai fazer ‘King Kong’.

Alguma brasileira?

MEIRELLES: Não há muitas atrizes brasileiras que falem um bom inglês e pudessem viver a Tessa. Liguei para a Luana Piovani, mas ela já está comprometida com o filme do Bruno Barreto.

Como surgiu a idéia de filmar o livro de John Le Carré?

MEIRELLES: Depois de ‘Cidade de Deus’, recebi muitos roteiros. Histórias passadas na Escócia, na Rússia, na Itália dos anos 50, na época da Segunda Guerra, embaixo d’água. Comédias, policiais e muitos roteiros sobre traficantes. Mas sempre falava não, porque minha prioridade era meu projeto pessoal, ‘Intolerância’, que estou escrevendo com o Bráulio e vai ter diálogos em sete línguas. Quando estive em Londres com Bráulio, encontrei um amigo que falou do projeto de adaptação do livro. Um produtor inglês me mandou o roteiro, vi que era muito bom, percebi que não tinha como rodar ‘Intolerância’ antes do fim de 2004 e resolvi fazer. É uma produção independente inglesa.

Do que trata o filme? Você está escrevendo um diário on line, no site Cinema em Cena (www.cinemaemcena.com.br), sobre as filmagens.

MEIRELLES: É uma história de amor que fala de um diplomata que se apaixona pela mulher depois que ela morre. Tem como pano de fundo a indústria farmacêutica. Mostra como se ganha dinheiro com a doença dos outros. Lá no site eu falo que gostaria de incluir a importante ação do Brasil em sua briga a favor da quebra de patentes para alguns medicamentos. Pensei até em colocar o José Serra no filme, mas não quero ficar fazendo campanha para ninguém.

Quando começam as filmagens?

MEIRELLES: Teremos uma semana de filmagens em março e outra no fim de abril, no Canadá e em Londres. Depois, iremos para o Quênia. Ele vai ser lançado no começo do ano que vem.

Qual sua expectativa?

MEIRELLES: Não é filme de festival. É filme para ser lançado diretamente no circuito comercial. Existem bons filmes de mercado e a expectativa é esta. É um thriller que pode dar uma boa bilheteria, mas não acho que estoura.

Mas com as indicações a expectativa em torno de seu próximo trabalho aumentou muito…

MEIRELLES: Estou tentando não pensar na expectativa. Mas seja qual for o resultado do filme, sei que vai tomar porrada no Brasil. Independentemente de ser bom ou ruim, vão dizer: ‘É hollywoodiano. Logo no segundo trabalho já está fazendo um filme com astros.’ Já sei que vão dizer que me vendi para o mercado. Você pode escrever a crítica antes mesmo de ele ficar pronto.

E os próximos planos?

MEIRELLES: Concretamente, as indicações não vão fazer muita diferença até 2008. Comprometi-me a dar palpites num roteiro sobre Pompéia. Se eu gostar, tenho a opção de dirigir. E quero fazer depois algo em português, no Brasil, mais íntimo, com dois atores numa casa. Já tem uma coisinha começada, mas ainda é cedo para falar.’

 

Helena Aragão

‘A vida depois do filme’, copyright Jornal do Brasil, 30/01/01

‘Dezenas de moças e rapazes de comunidades carentes são selecionados para fazer cinema. O filme, Cidade de Deus, faz sucesso e, vejam só, chega à disputa do Oscar, concorrendo a quatro estatuetas. Enquanto isso, três anos depois das filmagens, as vidas dos jovens seguem rumos tão diferentes que poderiam render um documentário. Uns chegaram ao elenco da TV Globo, outros seguem a vida no teatro e no cinema. Há quem esteja perdido, esperando oportunidades. E ainda um caso que destoa da ascensão da maioria: o de Rubens Sabino da Silva, o Neguinho da trama. Na vida real, ele foi preso em junho por causa de um assalto, e liberado dias depois.

A notícia da indicação ao Oscar do filme de Fernando Meirelles foi recebida com satisfação pelos atores, na maioria ainda morando em favelas. Mas altera pouco a rotina da turma que, desde o filme, trabalha duro para continuar no ofício da interpretação.

– Fiquei feliz e surpreso. Espero que, com as indicações, pinte mais trabalho para a gente – diz Alexandre Rodrigues, o Buscapé da trama.

Alexandre acumulou no currículo dois filmes após Cidade de Deus: Bala Perdida, de Victor Lopes, e Cafundó, de Paulo Betti. Hoje com 20 anos, ele está de malas prontas para se mudar do morro do Vidigal para São Paulo. Como seu personagem, o narrador do filme de Meirelles, que trocou a bandidagem pela fotografia, ele quer conhecer a vida atrás das lentes.

– Vou fazer um estágio para aprender a parte técnica das filmagens na O2 (produtora de Fernando Meirelles).

Outro que quer conciliar a carreira de ator com um ofício diferente é Leandro Firmino da Hora, o intérprete do bandido Zé Pequeno. Colega de Alexandre em Cafundó, ele é vice-presidente da ONG Nós do Cinema. Aos 25 anos, continua morando na Cidade de Deus e vai cursar ciências biológicas na Universidade Santa Úrsula este ano.

– O Fernando (Meirelles) prometeu me dar uma força nas mensalidades. Mas não vou abandonar o cinema e o trabalho em comunidade.

Para o grupo Nós do Morro, do Vidigal, de onde saíram 35 atores do filme, a disputa do Oscar ajuda a divulgar o trabalho conjunto. Por enquanto, todos estão trabalhando em peças. Parte deles atua em Burro sem rabo, em cartaz no Planetário; outros estarão em Sonho de uma noite de verão, que vai estrear no CCBB em abril). Quanto maior a visibilidade de Cidade de Deus, maior a fila para entrar na companhia.

– Depois do filme, veio gente de todo o canto querendo participar do grupo. Com a história do Oscar, a seleção vai ficar mais difícil que vestibular – brinca o diretor Guti Fraga, 51 anos, o mais emocionado com a disputa pelas estatuetas.

A grande preocupação de Guti é impedir que o sucesso suba à cabeça dos meninos. E, pelo discurso deles, o objetivo está sendo alcançado.

– O filme foi importante para marcarmos presença no mercado. Mas nossa vida não vai mudar muito com essa história do Oscar. Vai servir para os próprios brasileiros nos valorizarem mais. Estamos firmes no teatro – explica Babu Santana, que depois de Cidade de Deustrabalhou nos longas Uma onda no ar, de Helvécio Ratton, Redentor, de Claudio Torres, As alegres comadres, de Leila Hipólito, e três curtas.

Marcelo Melo, 31 anos, colega de Babu no grupo e membro do bando de Zé Pequeno no filme, espera que a disputa pelo Oscar ajude a esclarecer uma injustiça.’