Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Muniz Sodré

‘A admissão por parte do ‘New York Times’ de que tem publicado informações questionáveis tem o mérito dos grandes sintomas. No caso, sintoma da crise visceral do jornalismo. E o que se vê de modo cada vez mais nítido é a fragilidade das bandeiras desfraldadas há mais de um século pela imprensa moderna: garantia da livre expressão, publicização dos segredos do poder e comunicação da realidade objetiva.

Tem partido do pensamento dito pós-moderno a suspeita de que a crença na realidade objetiva deve-se à ilusão de que se possa achar uma causa original para os fenômenos e, logo, ‘inscrever o mundo na ordem da verdade e da razão’.

Em sua prática, porém, o jornalismo costuma deixar para os acadêmicos as questões metafísicas da razão e da verdade, preferindo ater-se à credibilidade, que é uma outra coisa. A credibilidade decorre de um pacto implícito entre o jornalista e o leitor. Obedecidas determinadas regras técnicas, o leitor dispõe-se a crer na versão oferecida pelo profissional. O sensacionalismo, a manipulação da notícia, a propaganda disfarçada são como irrupções maléficas na boa consciência jornalística. Mas este malefício jamais constituiu realmente no passado a grande crise, porque, no jogo contraditório das classes sociais, prevalecia a exigência histórica de verdade por trás das versões.

O que hoje acontece é a perda generalizada das ilusões, das utopias, inclusive a da verdade. O excesso informacional da mídia a reboque do mercado banaliza e desgasta a vida comum, a tal ponto que não se mobiliza mais nenhuma energia para o restabelecimento da verdade histórica no aqui e agora do cotidiano. Há, no máximo, nostalgia, arrependimento e resgate. As grandes instituições arrependem-se disto e daquilo ocorrido no passado – dos etnocídios, do escravagismo, das conivências com as ditaduras, etc. Resgatam, assim, a sua identidade e preservam o seu princípio de realidade.

A imprensa não está imune a nada disso. Acossada pelas pressões avassaladoras do imaginário da mídia de entretenimento, ela pode assistir ao enfraquecimento de seus mecanismos ou de seu rigor na transposição do que já pactuou com o leitor como realidade objetiva. Disto é sintoma a autocrítica do ‘New York Times’, um dos paradigmas do jornalismo americano. O jornal vem se notabilizando por seus ‘factóides’. Agora se arrepende, para continuar a ser jornal. (*) Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).’



Marcos Augusto Gonçalves

‘Mídia e poder’, copyright Folha de S. Paulo, 29/05/04

‘As relações entre imprensa e poder tendem a se tornar mais complexas em casos de guerras e conflitos, quando as pressões dos governos se intensificam, a manipulação da opinião pública ganha caráter estratégico e perspectivas críticas correm o risco de ser apontadas como antipatrióticas.

Em artigo publicado na edição de março/abril da ‘Columbia Journalism Review’ (www.cjr.org), o jornalista Chris Mooney faz uma rigorosa crítica das posições assumidas pelos principais jornais norte-americanos em relação à Guerra do Iraque.

Mesmo aqueles, como o ‘Los Angeles Times’ e o ‘New York Times’, que não se entregaram voluntariamente, opondo-se à invasão, teriam sido excessivamente crédulos diante das ‘evidências’ apresentadas pelo secretário Colin Powell de que Saddam Hussein possuiria armas de destruição em massa capazes de ameaçar os EUA e o mundo.

O ‘New York Times’ recentemente desculpou-se com seus leitores acerca de aspectos de sua cobertura -e o colunista Paul Krugman fez ontem uma boa análise da questão.

Caso semelhante ocorreu na Espanha, quando o então primeiro-ministro José Maria Aznar telefonou para o jornal ‘El País’ para ‘informar’ que o atentado de 11 de março teria sido praticado pelo grupo terrorista ETA. E o jornal comprou a versão sem informar que fora Aznar quem o dissera.

Quem poderia imaginar que em questões tão graves, como invadir um país ou determinar a autoria de um atentado terrorista, governantes iriam deliberadamente mentir? A pergunta supõe a existência de um ponto a partir do qual homens públicos de países democráticos e civilizados deixariam de lado seus interesses políticos para assumir a verdade dos fatos. Doce ilusão. O que os casos dos EUA e da Espanha deixam muito claro é que o poder não tem hesitado, mesmo em situações extremas, em usar a comunicação como arma.

Todo ceticismo, portanto, é pouco.’



Folha de S. Paulo

‘‘NYT’ faz mea-culpa sobre sua cobertura’, copyright Folha de S. Paulo, 27/05/04

‘O ‘New York Times’ publicou ontem um mea-culpa em que critica a sua própria cobertura do Iraque, afirmando que deveria ter sido mais cético em relação às informações passadas por dissidentes do regime do ditador deposto Saddam Hussein.

Em texto assinado ‘pelos editores’, o jornal disse ter descoberto ‘situações em que não foi tão rigoroso quanto deveria ter sido’. ‘Em alguns casos, informação que parecia controversa à época, e que parece questionável agora, foi qualificada de maneira insuficiente ou não recebeu confrontação. Olhando para trás, gostaríamos de ter sido mais agressivos no reexame das afirmações [feitas pelas fontes] à medida que novas evidências surgiam ou deixavam de surgir.’

Uma das fontes que o ‘NYT’ usou é Ahmad Chalabi, um dos mais proeminentes dissidentes de Saddam. O Pentágono considerou por muito tempo Chalabi como um possível substituto de Saddam, mas o iraquiano caiu em desgraça junto ao governo americano, que o acusa de ter passado aos iranianos informações sobre a ocupação. Nos últimos dez dias, forças americanas e iraquianas vasculharam sua casa, e o governo dos EUA suspendeu um auxílio de US$ 340 mil mensais ao Congresso Nacional Iraquiano, grupo liderado pelo ex-aliado.

‘Autoridades do governo agora reconhecem que algumas vezes acreditaram em informações erradas dessas fontes exiladas. O mesmo fizeram muitas organizações da imprensa -esta, particularmente’, disse o jornal, que ainda revelou usar Chalabi como fonte desde 1991.

Sem citar nominalmente nenhum jornalista, o diário listou, entre as causas das falhas, o fato de que editores, ‘de vários níveis’, que deveriam ter pressionado repórteres para serem mais céticos, estavam ‘talvez muito determinados em conseguir furos para o jornal’. Com agências internacionais’



O Estado de S. Paulo

‘‘NYT’ admite erros sobre armas’, copyright O Estado de S. Paulo, 27/05/04

‘Eis a íntegra da Nota dos Editores publicada na edição de ontem do jornal americano

Ao longo do último ano este jornal lançou luz, em retrospectiva, sobre as decisões que levaram os EUA ao Iraque. Examinamos as falhas da inteligência americana e aliada, especialmente nas questões das armas do Iraque e possíveis conexões iraquianas com terroristas internacionais.

Estudamos as alegações de credulidade e exagero oficiais. É hora de voltarmos a mesma luz para nós mesmos.

Fazendo isso – revisando centenas de artigos escritos durante o prelúdio para a guerra e nos estágios iniciais da ocupação – encontramos uma quantidade enorme de jornalismo do qual nos orgulhamos. Na maioria dos casos, o que reportamos foi um reflexo preciso do estado de nosso conhecimento na ocasião, muito dele extraído dolorosamente de agências de inteligência que eram, elas próprias, dependentes de informações fragmentadas. E onde aqueles artigos incluíram informação incompleta ou apontaram numa direção errada, eles foram mais tarde superados por mais informações, mais fortes. É assim que a cobertura noticiosa normalmente se desenrola.

Mas encontramos alguns casos de cobertura que não foi tão rigorosa quanto deveria. Em alguns casos, informação que então era controversa, e hoje parecem questionável, foi insuficientemente qualificada ou não foi questionada. Olhando para trás, gostaríamos de ter sido mais agressivos ao reexaminar as alegações à medida que novas evidências surgiam – ou deixavam de surgir.

Os artigos problemáticos variaram em autoria e assunto, mas muitos tiveram uma característica comum. Eles dependeram pelo menos em parte de informações de um círculo de informantes, desertores e exilados iraquianos dedicados à ‘mudança de regime’ no Iraque, pessoas cuja credibilidade tem sido alvo de debate público cada vez mais intenso nas últimas semanas. (O mais preeminente dos ativistas anti-Saddam, Ahmed Chalabi, é citado como fonte ocasional em artigos do Times pelo menos desde 1991, e apresentou repórteres a outros exilados. Ele se tornou um favorito de linhas-duras dentro da administração Bush e um coletor pago de informação de exilados iraquianos, até que seus pagamentos foram cortados na semana passada.) Complicando as coisas para os jornalistas, os relatos daqueles exilados geralmente eram avidamente confirmados por funcionários dos EUA convencidos da necessidade de intervir no Iraque. Funcionários do governo agora reconhecem que às vezes foram vítimas de desinformação por parte daqueles fontes exiladas. Assim como muitas organizações de notícias – em particular, esta.

Alguns críticos de nossa cobertura durante aquele período têm concentrado a culpa em repórteres individuais. Nosso exame, no entanto, indica que o problema era mais complicado. Editores em vários níveis que deveriam ter questionado os repórteres e pressionado a favor de mais ceticismo talvez estivessem preocupados demais em publicar furos rapidamente. Relatos de desertores iraquianos nem sempre foram confrontados com seu forte desejo de que Saddam Hussein fosse deposto. Artigos baseados em alegações terríveis sobre o Iraque tenderam a ser exibidos com maior destaque, enquanto artigos posteriores que colocavam em questão os originais foram algumas vezes enterrados.

Em 26 de outubro e 8 de novembro de 2001, por exemplo, artigos de primeira página citaram desertores iraquianos que descreveram um campo iraquiano secreto onde eram treinados terroristas islâmicos e produzidas armas biológicas. Esses relatos nunca foram verificados de forma independente.

Em 20 de dezembro de 2001, outro artigo de primeira página começou dizendo:

‘Um desertor iraquiano que se descreveu como engenheiro civil disse ter trabalhado pessoalmente em reformas de instalações secretas para armas biológicas, químicas e nucleares em poços subterrâneos, vilas particulares e sob o Hospital Saddam Hussein em Bagdá até tão recentemente quanto um ano atrás.’ O grupo Knight Ridder Newspapers relatou na semana passada que funcionários americanos levaram aquele desertor – seu nome é Adnan Ihsan Saeed al-Haideri – ao Iraque no início deste ano para indicar os lugares em que ele alegou ter trabalhado, e que esses funcionários não encontraram evidências de que tenham sido usados em programas de armas. Ainda é possível que armas químicas e biológicas sejam descobertas no Iraque, mas neste caso parece que nós, juntamente com o governo, fomos enganados. E até agora não informamos isso a nossos leitores.

Em 8 de setembro de 2002, o artigo principal do jornal foi intitulado ‘EUA dizem que Hussein intensificou a busca por componentes de bomba atômica’.

Aquela reportagem referia-se a tubos de alumínio que o governo anunciou insistentemente como sendo componentes para a fabricação de combustível de armas nucleares. A alegação não veio de desertores, mas das melhores fontes de inteligência americanas disponíveis na época. Ainda assim, deveria ter sido divulgada mais cautelosamente. Havia indícios de que a utilidade dos tubos na fabricação de combustível de armas nucleares não era algo comprovado, mas os indícios foram enterrados profundamente debaixo de 1.700 palavras de um artigo de 3.600. Funcionários do governo puderam falar extensamente sobre por que esta evidência de intenções nucleares do Iraque requeria que Saddam Hussein fosse desalojado do poder: ‘O primeiro sinal de um ‘revólver fumegante’ (uma prova cabal), argumentaram eles, ‘pode ser um cogumelo atômico.’

Cinco dias depois, os repórteres do Times souberam que os tubos eram, efetivamente, objeto de debate entre agências de inteligência. As desconfianças apareceram escondidas num artigo na página 13, sob uma manchete que não fez nenhuma alusão a que estivéssemos revisando nosso ponto de vista anterior (‘Casa Branca relaciona passos do Iraque para produzir armas proibidas’). O Times deu voz aos céticos quanto aos tubos em 9 de janeiro, quando essa peça-chave de evidência foi contestada pela Agência Internacional de Energia Atômica. A contestação foi noticiada na página 10; poderia muito bem ter saído na página 1.

Em 21 de abril de 2003, enquanto caçadores americanos de armas seguiam as tropas americanas no Iraque, outro artigo de primeira página declarou:

‘Armas ilícitas foram mantidas até as vésperas da guerra, teria garantido um cientista iraquiano.’ O texto começava assim: ‘Um cientista que alega ter trabalhado no programa de armas químicas do Iraque por mais de uma década disse a uma equipe militar americana que o Iraque destruiu equipamento de guerra com armas químicas e biológicas apenas dias antes do início da guerra, disseram membros da equipe.’

O informante também alegou que o Iraque tinha enviado armas não-convencionais à Síria e havia cooperado com a Al-Qaeda – duas alegações que eram, e continuam sendo, altamente polêmicas. Mas o tom do artigo sugeria que esse ‘cientista’ iraquiano – que, num artigo posterior, descreveu-se como um funcionário da inteligência militar – tinha fornecido a justificativa que os americanos vinham buscando para a invasão. O Times nunca se aprofundou sobre a veracidade dessa fonte ou as tentativas de verificar suas alegações.

Um fragmento da cobertura, incluindo os artigos mencionados aqui, está na internet em nytimes.Com/critique, onde os leitores também encontrarão uma discussão detalhada escrita no mês passado para The New York Times Review of Books por Michael Gordon, correspondente de assuntos militares do Times, sobre a informação dos tubos de alumínio. Respondendo a uma crítica da cobertura sobre Iraque, sua declaração pode servir como uma cartilha das complexidades de tais reportagens sobre inteligência.

Consideramos a história das armas iraquianas, e do padrão de desinformação, negócio inacabado. E pretendemos completamente continuar a fazer reportagens agressivas destinadas a estabelecer o registro correto.’