Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Naomar de Almeida Filho

COBERTURA DA GUERRA

"Distorções da mídia provocam histeria da guerra biológica", copyright Folha de S.Paulo, 16/10/01

"Tempos estranhos na América. Um país à beira do pânico. De repente, a saúde pública ganha manchetes no paraíso da medicina privada. Infelizmente, trata-se de uma proeminência trágica, inoportuna e distorcida.

A opinião pública americana experimenta por uma semana uma nova onda de interesse por epidemiologia e epidemiologistas, mais aguda que no auge da epidemia de Aids nos meados da década de 80.

Noticiários de televisão conduzem intermináveis entrevistas, debates e painéis com autoridades de saúde pública e especialistas em epidemiologia de doenças transmissíveis. São aparições curtíssimas -sempre menos de dez minutos e quase nunca repetidas, bem dentro do figurino CNN.

Os âncoras dos noticiários, com ar grave e solene, bombardeiam os supostos pesquisadores com questões bizarras (como explicar para o americano médio, aquele que completou o segundo grau com apenas 90 horas de ciências naturais, a diferença entre o vírus da varíola e a bacilo do antraz?), curiosas (que cuidados tomar para abrir uma correspondência que pode estar contaminada?) e interessadas (como é mesmo o nome do único antibiótico disponível no mercado que pode ser tomado preventivamente caso alguém acredite que tenha se infectado?). Digo supostos pesquisadores não por desrespeito, mas porque a maioria dos entrevistados, com poucas exceções, sempre maquiados, com voz empostada e treinamento de pose televisiva, parecem mais profissionais do vídeo que cientistas.

Às vezes aparecem figuras que claramente têm o que dizer, mas infelizmente sucumbem à pressão da mídia para criar o clima de terrorismo epidemiológico. Assisti consternado ao massacre que a Fox News impôs à ex-secretária da Saúde do governo Carter, primeira mulher negra a ocupar esse cargo no governo americano, equivalente a ministro da Saúde. A atônita senhora não conseguia completar nenhuma das suas respostas, talvez pelo erro de começá-las pela correta negativa ou por tentar situá-las em um patamar de sensatez. O que o entrevistador queria mesmo era arrancar uma declaração de que o sistema público de saúde americano encontra-se sucateado e que necessita urgentemente de mais investimentos (o que é verdade), não para proteger a saúde da população carente (que é minoria, mas existe), mas para se capacitar a atuar no fronte interno da ?nova guerra?.

No dia seguinte, lá estava um especialista em guerra biológica, curiosamente com aparência e nome árabe, presidente e CEO de um certo instituto X de saúde pública inc., com gráficos e mapas, demonstrando que a bioindústria estava pronta para assumir seu papel na defesa contra o terrorismo epidemiológico.

Nunca pensei, em mais de 20 anos de carreira nessa exótica especialidade, que existissem tantas empresas de consultoria epidemiológica nem que a epidemiologia fosse servir de trincheira numa guerra. Há alguns anos, no entanto, tive um relance deste cenário de agora, quando participava da reunião anual do Comitê Científico da Organização Mundial da Saúde, em Genebra. Um dos temas em pauta era o que fazer com as amostras do vírus da varíola armazenadas em locais secretos, sob rígido esquema de segurança, nos EUA e na Rússia. As autoridades da OMS propunham a destruição das amostras russas pelo temor de que, com a dissolução da antiga União Soviética, estas fossem repassadas a grupos terroristas. Tal posição era defendida vigorosamente pelo representante americano, Joshua Lederberg, bacteriologista, Prêmio Nobel de Medicina de 1986, que apresentou um cenário catastrófico (e realista, concordo) caso fosse reintroduzido o vírus da varíola em populações sem a memória imunológica do microorganismo. Lederberg foi enfim escolhido presidente do subcomitê designado para tratar da questão e terminou elaborando um denso relatório sobre a perspectiva do terrorismo com armas biológicas. Esperei que ele aparecesse em algum momento nos debates televisivos. Em vão.

Naquele momento, algumas questões me intrigavam. A mais direta e imediata: por que antraz? Microorganismos com maior grau de infectividade e patogenicidade causariam muito maior dano à população que uma bactéria esporulada, mal adaptada ao organismo humano. Porém o que me parecia realmente intrigante era a insistência da mídia em destacar os casos confirmados e os casos suspeitos de infecção por antraz como efeito de terrorismo epidemiológico, esforçando-se para alertar a população sobre um risco que ela de fato não corria. Por que a mídia evitava apresentar ao público informações com base científica, praticamente reprimindo opiniões abalizadas e efetivamente informadas sobre o assunto?

Nesse fim de semana, a CNN colocou no ar uma reportagem e entrevistas que me trouxeram algumas respostas. A reportagem enfim dava a palavra a pesquisadores e cientistas com credibilidade reconhecida sobre o tema. Demostrava que a circulação de amostras e cepas de microorganismos é uma prática comum na pesquisa da área e, mais ainda, que se tornara um ?business? muito lucrativo. Chegaram a apresentar catálogos de empresas de equipamentos e insumos científicos com cepas registradas e patenteadas de patógenos, que poderiam ser comprados a preços promocionais, até pela internet. Um pesquisador afirmou ter adquirido recentemente uma cepa de peste bubônica, esta sim, uma verdadeira bomba atômica biológica que exterminou um terço da população européia na Idade Média. A matéria terminava denunciando que várias remessas haviam sido feitas nos últimos anos para países considerados promotores de terrorismo internacional. Pude entender um pouco por que a nação que pretende transformar a biodiversidade em balcão de negócios está em pânico.

A entrevista com Steven Block, epidemiologista e microbiologista da Universidade Stanford, me foi mais útil. Aliviado, pude constatar que, afinal, alguém conseguia colocar suas posições de modo claro e adequado. Block rejeita a idéia de terrorismo epidemiológico e propõe usar a epidemiologia para compreender essa variante peculiar do terrorismo. Traz uma hipótese interessante. Primeiro, postula (com muita lógica) que o antraz seria uma arma terrorista com pouca eficiência em larga escala. Mostra que a forma cutânea é rara (porque haveria necessidade de lesão dermatológica prévia para permitir a penetração dos esporos e provocar sintomas) e tem letalidade praticamente nula. A forma respiratória, fatal nos casos em que o diagnóstico é tardio, necessita da inalação de enorme quantidade de esporos para se tornar patológica. Por outro lado, destaca já haver evidências suficientes de que o material postal contaminado teria sido fonte de infecção primária em pelo menos três casos e que a bactéria neles isolada não havia sofrido alteração genética. Block faz então o que qualquer estudante de epidemiologia faria e pergunta: quem são os casos? Quase todos profissionais de comunicação. Qual o destino das correspondências? Personalidades, empresas e redes de notícias formadoras da opinião pública norte-americana. Como controlar o surto epidêmico? Com medidas de vigilância epidemiológica e bloqueio, o que incluiria radical modificação da política de divulgação da mídia.

Concluo com uma interpretação que já não é mais responsabilidade de Block. Ao expor a comunidade das empresas de comunicação a um risco concreto, nela fazendo poucas vítimas porém todas com nome e rosto, o terrorismo amplia enormemente seu raio de ação. Aterroriza milhões de pessoas, cumprindo assim a ameaça de Bin Laden de que a América não mais teria paz. A arma biológica, de baixa eficácia, está sendo usada no seu potencial máximo, ao sinergizar com outra arma do terrorismo, altamente eficiente, de natureza mais propriamente cultural. Os entrevistadores, repórteres, produtores, executivos das redes, por algum tempo, sem nem sequer desconfiar, reforçam o braço armado da Al Qaeda. [Naomar de Almeida Filho, 49, é PhD em epidemiologia. Ensina atualmente na Harvard School of Public Health.]".

    
    
                     
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