Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nelson Hoineff

PROFISSÃO PERIGO

"Armadilhas do telejornalismo", copyright Jornal do Brasil, 8/1/02

"A imprensa não deu muita importância ao caso da repórter Cristina Guimarães, da TV Globo, que passou a ser ameaçada por traficantes depois que uma série de reportagens sobre a venda de drogas nas favelas da Rocinha e de Mangueira. A série, em parceria com dois outros jornalistas, foi exibida pelo Jornal Nacional e reproduzida por praticamente todas as outras redes de TV. Foi um dos momentos mais ricos do telejornalismo investigativo no ano passado. Forneceu também ingredientes de primeira linha para a discussão das questões éticas embutidas na utilização da câmera oculta em televisão. Há poucas semanas ganhou merecidamente o Prêmio Esso de Telejornalismo.

Na semana passada, uma reportagem publicada no Jornal do Brasil revelava que a coragem da jornalista de denunciar o tráfico de drogas ?se transformou em medo de sair às ruas depois que foi descoberta pelos bandidos?. A reportagem, no prudente médio destaque que se dá aos fatos controvertidos, lembrava o caso do repórter Carlos Alberto de Carvalho, que em outubro havia sido seqüestrado e mantido por vários dias em cativeiro por bandidos da Rocinha, que queriam saber quem havia feito a série sobre o tráfico de drogas. Numa confusa sucessão de acontecimentos, Cristina teria tido negada proteção da emissora e acabou se tornando, ela mesma, uma fugitiva, para escapar da retaliação dos traficantes.

O jornalismo investigativo, sabe-se, tem alto preço. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, 31 jornalistas foram mortos em todo o mundo em 2001. Outros 716 foram agredidos ou ameaçados – pelas polícias ou por governos. Na virada do ano, havia 110 jornalistas presos em diversos países.

No caso de Cristina, há agravantes espantosos. O principal está nas características do agressor. Não são países inimigos, muito menos adversários políticos, sequer facções ideológicas hostis. Quem a ameaça são bandidos urbanos comuns. Tornar-se vulnerável a isso é uma gravíssima ameaça à liberdade de imprensa.

Há precedentes, em países como a Colômbia – para ficar na vizinhança -, que ilustram assustadoramente essa situação. Em abril de 2001, o jornalista colombiano Luis Fernandez, fundador de uma organização que se dedica ao estímulo à liberdade de imprensa no seu país, calculava que nos últimos 20 anos mais de 150 jornalistas haviam sido assassinados na Colômbia, cerca de 200 haviam sido seqüestrados e inúmeros outros forçados ao exílio. ?O governo?, dizia Fernandez ao The Guardian, de Londres, ?respondeu ajudando a criar um Comitê de Proteção aos Jornalistas, mas nove meses depois os jornalistas já haviam sido declarados alvos militares pela guerrilha, sem receber qualquer tipo oficial de proteção?.

Como evitar um desvio semelhante no caminho do meio de maior penetração no Brasil? A resposta passa pelo entendimento das peculiaridades do jornalismo investigativo em televisão. Ele difere bastante do tipo de jornalismo que costuma ser praticado na mídia impressa. Em primeiro lugar porque, em televisão, a imagem não ilustra – ela é o próprio narrador. Não reproduz a experiência do repórter; é precisamente o relato dessa experiência. Isso gera de saída a necessidade do aparato, que amplia exponencialmente a exposição do repórter e das demais pessoas envolvidas na apuração.

Tão importante quanto essa peculiaridade instrumental é a ausência de uma tradição de telejornalismo investigativo no Brasil e, conseqüentemente, de um conhecimento das estratégias que ele impõe ao repórter. Com raras exceções, a experiência do jornalismo investigativo na televisão brasileira é um fato dos anos 90. Isso pode parecer espantoso, mas é conseqüência natural de um conjunto de circunstâncias que começam no forte comprometimento com o Estado que a televisão encontra desde o seu nascimento, no início dos anos 50, passam pela mordaça geral do período da ditadura militar e, ao final dela, pela impotência econômica do veículo durante os anos da megainflação.

Lidar com a própria autonomia é coisa nova em televisão, onde até hoje investigação responsável e mero sensacionalismo se confundem. Justamente por ser o relato da experiência, a imagem pode também ser leviana. Apresenta seu objeto como se prescindisse do filtro do repórter. Não é por outra razão que uma suposta investigação pode não ser mais do que a exposição pueril do enfocado nos programas que se vestem de jornalísticos mas não agem como tal.

O caso da repórter Cristina Guimarães é cercado de pequenos mistérios: a) por que nenhum outro jornal o noticiou, apesar da gravidade da situação e da ameaça que isso representa ao próprio exercício do jornalismo?; b) o que aconteceu de fato na Globo, que sabidamente é uma empresa que dá grande cobertura aos seus funcionários – e por mais razão aos que produzem um material de tal envergadura?; c) por que os outros repórteres não estão aparentemente sofrendo as mesmas ameaças?

Nenhuma dessas questões altera a pergunta essencial: como garantir a liberdade de exercício do jornalismo investigativo num meio onde a exposição dos repórteres é muito grande, a existência do aparato técnico, por menor que seja, é necessária, e que ainda por cima não dispõe de uma cartilha de procedimentos formatada pela experiência desse tipo de jornalismo?

Esse caso tão nebuloso mostra a urgência de se encontrar respostas a esse tipo de pergunta, para que o jornalismo televisivo, que evoluiu verticalmente no Brasil na década passada, não seja forçado a recuar. E para que a televisão jamais volte a ser confundida com o veículo oficialista e impermeável à prática analítica, que durante os 40 primeiros anos de sua existência pareceu ser."

 

"Repórter da Globo diz que traficantes querem matá-la", copyright Folha de S.Paulo, 13/1/02

"Há cerca de dois meses a jornalista Cristina Guimarães, 38, vive escondida. Co-autora da reportagem ?Feira de Drogas? -exibida no Jornal Nacional em agosto e uma das vencedoras do Prêmio Esso 2001-, ela diz ter sofrido várias ameaças de pessoas ligadas aos traficantes da favela da Rocinha (Zona Sul do Rio), cujos rostos foram mostrados na televisão.
Dizendo-se cansada de esperar pelo auxílio da Rede Globo, Cristina entrou com uma ação trabalhista contra a emissora e se afastou do trabalho e do Rio de Janeiro. Agora, pede ajuda à Anistia Internacional.

Como foi a reportagem?

Entrei na Rocinha e na Mangueira (Zona Norte) com uma microcâmera escondida na bolsa. Fiquei durante quase seis horas lá dentro. Pelas imagens, dá para identificar os traficantes. Um deles foi preso logo depois da exibição.

Quando você começou a ser ameaçada?

Em setembro, quando voltei de uma licença, pessoas que trabalham na TV Globo e moram na Rocinha me disseram que os traficantes estavam oferecendo R$ 20 mil pela minha cabeça. Começaram a me telefonar constantemente -e dava para identificar que era um número da área da Rocinha. Quando eu atendia, perguntavam se quem estava falando era a ?dona ferrada?. Umas duas ou três vezes, um motoqueiro com capacete bateu no vidro do meu carro e perguntou se eu era a Cristina.

Qual foi a atitude da Globo quando soube das ameaças?

Não é bem a TV Globo… A chefia do jornalismo da emissora falava que eu não devia esquentar a cabeça com aquilo, que não ia acontecer nada comigo. Afinal, eu já tinha feito outras reportagens desse tipo.

Como foi seu afastamento?

Eu comecei a me sentir muito mal. Só dormia sob efeito de calmantes. Em novembro, decidi entrar na Justiça contra a Globo. Fui a primeira pessoa do Brasil a me afastar de uma empresa por liminar do Ministério do Trabalho.

E hoje, qual é a sua situação?

Vivo escondida. Espero resposta da Anistia Internacional para sair do país.

E em relação à Rede Globo?

Só quando saiu a liminar eles me chamaram para conversar, mas não volto para o Rio. Só espero receber o que a emissora me deve. Não cheguei a receber nem o dinheiro do Prêmio Esso.

A emissora não ofereceu nenhum tipo de auxílio?

Não. Minha família me tirou do Rio e contratou seguranças para me acompanharem.

Emissora não acredita

Segundo o diretor da Central Globo de Comunicação, Luís Erlanger, a emissora só tomou conhecimento das ameaças que Cristina Guimarães teria sofrido ao ser notificada pela Justiça. ?O suposto problema não foi comunicado à TV Globo. Ninguém na redação estava sabendo de nada. Ela simplesmente não veio mais trabalhar e só entendemos o porquê quando recebemos a notificação judicial?, disse Erlanger.

Segundo ele, a TV Globo ?tem tradição em jornalismo investigativo? e dá proteção a seus jornalistas quando eles sofrem ameaças, concedendo férias ou enviando-os para trabalhos no exterior.

Erlanger disse duvidar das ameaças. ?Dos quatro produtores que participaram da série de reportagens, ela não seria a única a ser perseguida; é muito estranho?, afirmou."

 

ARTIGO 222

"Os que virão em 2002. A que preço?", copyright Jornal do Brasil, 3/1/02

"Ficou para o início deste ano um restinho, um rabicho do debate em torno da emenda constitucional que permite a participação do capital estrangeiro nas empresas jornalísticas nacionais. Já aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados, no dia 11 de dezembro, com 406 votos a favor, 23 contra e duas abstenções, a proposta ainda precisa passar pela votação em segundo turno, o que deve acontecer só depois do Carnaval. Resta-lhe ainda um caminho a percorrer no Congresso Nacional e, mesmo que seja um caminho feito apenas de formalidades, vai dar mais tempo aos brasileiros (e não somente aos parlamentares) para discutir e examinar o assunto. Melhor assim. É desejável que haja mais qualidade na discussão. Não se trata de um tema corriqueiro, menor. Quando aprovada em definitivo, a emenda estará convertida na autorização legal para que acionistas internacionais sejam proprietários de até 30% de rádios, emissoras de televisão, editoras de revistas ou jornais brasileiros. A nossa mídia nunca mais será a mesma – para o bem e para o mal.

Na opinião de empresários (brasileiros) da mídia, o debate já aconteceu, pois os parlamentares já manifestaram, na primeira votação, que são favoráveis à emenda. Favas contadas, portanto; não há mais que se perder tempo com isso. Há os mais afoitos que, por princípio, acham inútil qualquer diálogo a respeito. Dizem que essa história toda não é da conta do sujeito que passa na banca para comprar uma revista ou que liga a TV para ver um noticiário. O que esse sujeito quer, segundo os que são contrários a qualquer debate, é um conteúdo bem preparado e só. Esse sujeito, o consumidor, não está preocupado, e nem deveria estar, com quem é o dono da quitanda.

É uma argumentação traiçoeira. De um lado, porque não há favas contadas coisa nenhuma. Parlamentares podem, sim, rever seus pontos de vista – basta que seus eleitores os pressionem devidamente. De outro lado, o tema &eaceacute;, por princípio, da conta do homem comum. Incrível como até hoje isso não ficou claro. Saber quem decide nas empresas de mídia, saber a quem elas prestam contas, tudo isso é do interesse do brasileiro comum, assim como é de seu interesse saber quem é que manda nas ruas, nas cidades e nas estradas. Pode parecer uma comparação forçada, mas não é. A comunicação social não é um assunto privado, privativo de investidores, mas é um assunto público, pois realiza uma função pública, que é a de dotar cada cidadão das informações necessárias para que ele pleiteie e exerça plenamente seus direitos. Sem isso, a democracia não respira. E não vive. Se eu pudesse fazer uma analogia, por assim dizer, orgânica, eu diria que o projeto democrático tem aí, na comunicação social, as suas vias respiratórias. Embora os jornais e as emissoras de rádio e TV sejam empresas privadas nas democracias contemporâneas, eles realizam uma função pública essencial e, por isso, precisam prestar contas ao público – inclusive sobre sua estrutura de capital. Não é por outro motivo que todas as democracias detêm instrumentos para regular e fiscalizar o setor. O objetivo é impedir deformações como a prática do monopólio ou a ingerência de interesses estrangeiros que, instrumentalizando as empresas de mídia, distorçam a própria democracia nacional.

O que ocorre se houver monopólio na mídia? Simples: mais que um setor de mercado, é o próprio espaço público quem fica monopolizado. Nós, no Brasil, infelizmente, somos mais do que escolados nessa matéria. Quando há monopólio na mídia, a pluralidade de opiniões fica prejudicada, a livre concorrência deixa de existir, as empresas jornalísticas se partidarizam quase sem perceber. Quando há monopólio, o mercado deixa de refletir a diversidade social e se volta contra a democracia. Muito simples.

Pois isso fica pior, muito pior, quando o monopólio é exercido pelo capital estrangeiro. Democracias nacionais no mundo contemporâneo correm um risco que nunca haviam corrido. Imagine um país pequeno, com um PIB na casa dos US$ 20 bilhões, cuja mídia seja dominada por um conglomerado internacional cuja receita bruta anual é maior do que esse PIB. A mídia, nesse pequeno país, prestaria contas à sua opinião pública ou ao capital de fora? O que aconteceria com a cobertura dos debates eleitorais? E com a missão da imprensa de fiscalizar o poder? São indagações hipotéticas mas, mesmo dentro do campo das hipóteses, não teríamos aí uma situação em que o peso do capital ficou desproporcionalmente maior que o peso da própria máquina do Estado? Seria isso o que chamamos de imprensa livre? Quem, nesse caso, iria zelar pelo sagrado direito à informação? O mercado? Mas como, se o mercado ficou – no campo hipotético, por enquanto – inteiramente colonizado?

Hoje, falar em deixar a mídia ao sabor do mercado é falar em deixá-la ao sabor dos oligopólios mundiais: AOL Time Warner, com um faturamento anual estimado em US$ 37 bilhões para 2001; Vivendi Universal, 27 bilhões ao ano; News Corporation, 25,5 bilhões; Disney, 25 bilhões. São monstros desse porte que as empresas brasileiras de mídia pretendem atrair oferecendo 30% de suas ações. Eu, pessoalmente, não sou catastrofista. Acho que esses 30% não causarão nenhum desastre no Brasil. Mas o debate é maior do que 30%. Ainda há perguntas não respondidas. Muitas. Será que os gigantes virão e ficarão satisfeitos com 30%? Em que é que eles vão interferir? Ou ficarão quietinhos, sem dar nenhum palpite na área editorial? Perguntas, perguntas. Umas hipotéticas, outras nem tanto. Perguntas que o país precisa enfrentar com mais clareza. E com menos pressa."