Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Nilson Lage

DIPLOMA EM XEQUE

“Diploma em questão”, copyright Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), 27/3/03

“A tese sustentada pelo procurador André Ramos de Carvalho e acolhida pela juíza Carla Rister é, do ponto de vista da Lógica, uma falácia que tem história. Chama-se ?falácia de acidente? e consiste em aplicar uma regra geral a caso particular em que as circunstâncias a tornam inaplicável ou inadequada.

Platão, em A República, parte da regra geral de que uma pessoa deve pagar suas dívidas para exemplificar o sofisma: Suponhamos que um amigo, quando em seu perfeito juízo, confessou-me, em depósito, suas armas e me pediu que lhas devolvesse quando seu espírito estivesse conturbado. Deveria devolvê-las? Ninguém diria que sim ou que estaria certo se assim procedesse.

O princípio geral a que recorre o procurador é o da liberdade de expressão do pensamento. O caso particular é o da apuração de informações, redação, ilustração fotográfica ou infográfica e edição de veículos gráficos, sonoros, em vídeo ou Internet. Não há como supor que a especificidade da formação dos jornalistas impeça alguém de expressar-se; a legislação apenas exige padrão escolar adequado à competência de quem exerce as habilidades descritas. Particular e geral são categorias distintas.

Exemplificando:

Todas as pessoas têm direito de acesso à Justiça, mas isso não impede que advogados exerçam seu ofício.

Todas as pessoas têm o direito de ir e vir, mas isso não impede as companhias de ônibus e empresas aéreas de cobrar passagem.

Todas as pessoas têm direito à educação, à alimentação, à recreação e, por Deus, essas coisas são pagas, se não pelo usuário, por alguém, seja o Estado ou a caridade pública.

Todos os homens têm direito à liberdade, mas nem por isso devemos libertar os condenados e fechar os presídios.

Se o que você comprou ontem comerá hoje, então você comerá hoje a carne crua que comprou ontem (este exemplo, tomado da Margarita Philosophica, de Reisch, em 1496, funcionava melhor quando não havia refrigeradores e é mais compreensível nas línguas em que ?carne crua? é designada por palavra diferente de ?carne comestível?)

Sobre esse tema escreve Irving Copi, no seu clássico Introduction to Logic, de 1953:

O que é verdadeiro em geral não pode ser universalmente verdadeiro, sem limitações, porque as circunstâncias alteram os casos. Muitas generalizações conhecidas ou suspeitas de terem exceções são enunciadas sem restrições (….) . Quando se recorre a uma tal generalização, ao argumentar sobre determinado caso cujas circunstâncias acidentais impedem a aplicação da proposição geral, diz-se que o argumento cometeu a falácia de acidente.

Quais as circunstâncias, no caso? Algumas são tecnológicas e se chamam Quark-X-press, Pagemaker, Flash, Dreamweaver, Fireworks, Photoshop, Director, Adobe Premiere, Access, entre muitos outros softwares especializados. Outras são técnicas e se chamam lead, layout, módulos de texto, computer assisted reporting, jornalismo público, jornalismo de precisão, operação de câmara portátil, data mining; redação de notícias, redação de textos para magazines ilustrados, suplementos, magazines de informação geral e roteiros; jornalismo científico, político, de esportes; treinamento para sobrevivência em situações de guerra e conflito etc.

Outras são éticas e, destas, algumas são lembradas em nomes de rua que lembram heróis ou destacados trabalhadores: Evaristo da Veiga, Libero Badaró, Alcindo Guanabara, Vladimir Herzog… (são tantos os que tombaram feridos pelas balas dos pistoleiros e pela tortura dos ditadores …) . E, mais, conhecimentos de história recente, política de comunicação, teorias da informação…

Mais de cinco mil jornalistas precários registraram-se ano passado no Brasil, proclama, vitorioso, o procurador André Ramos de Carvalho. Trabalham em jornal, rádio, TV? Claro que não. Na totalidade ou quase totalidade, são bacharéis vaidosos que querem um título a mais, gente em busca de identidade, ingênuos que acreditam que a forma cria conteúdo, bandidos pretendendo prisão especial.

Pirro, contam as lendas, teve vitória parecida e ficou célebre por isso.

A anatomia do poder real

Há aspectos interessantes no processo que envolve a demonização da profissão de jornalista no Brasil, instigada por círculos acadêmicos e jurídicos que não percebem o quanto, ao culpar quem codifica as mensagens, protegem os autores da informação falsa e da mentira institucional.

Primeiro, neste caso, não se trata da formação superior específica – ou, como dizem os donos de jornal, do ?diploma?, expressão que traduz o desprezo dos toscos pelo estudo e pela dedicação a um ofício. Trata-se, na verdade, de eliminar a regulamentação profissional, vigente há 65 anos. Quem se animaria a ir ao Ministério do Trabalho para obter um significa obter um registro que nada garante ou protege e está ao alcance de todos?

Em segundo lugar, a estranha configuração de poder que se implantou no país. Um procurador, sustentando argumentos muito discutíveis, aciona uma juíza, que dá sentença liminar e demora muito para expedir a definitiva. Quereria ela, de própria intenção, gerar fato consumado? É o que sugere o procurador André Ramos de Carvalho quando, comentando sentença destoante de um tribunal catarinense, insiste, em declaração pública, que ?qualquer DRT no Brasil deve cumprir a ordem judicial contida na sentença da ação civil pública da 16? Vara Federal de SP? (fonte: revista Consultor Jurídico, 24 de março de 2003).

Acontece que parte da sentença final da juíza não está sendo cumprida: o ministro do Trabalho, atendendo a representação da Federação Nacional dos Jornalistas e considerando que o assunto está sub judice, decidiu pela manutenção da palavra ?precário? nos registros concedidos. Embora essa decisão tenha-se tornado pública, não houve, até agora, a iniciativa de ação contra o ministro, a qual, provavelmente, anteciparia, de alguma forma, a apreciação do mérito – no caso, ameaçando a hipótese do ?fato consumado?.

A mesma juíza impôs ao Sindicato dos Jornalistas de São Paulo que concedesse carteiras de identidade profissional a um casal de advogados, jornalistas ?precários?.

Nenhum outro magistrado, que se saiba, manifestou-se a respeito – o que parece concentrar, neste tema, até que se cumpra a longa tramitação de um recurso, todo poder, não aos sovietes, como na revolução russa, mas à 16?. Vara Federal paulista.

A raiz da controvérsia

A decisão, nas instâncias superiores, dependerá do Tribunal Regional Federal de São Paulo, presidido pelo desembargador Márcio Moraes, mas, principalmente, do Supremo Tribunal Federal e, nele, do ministro Celso de Mello, que poderá firmar jurisprudência.

O suporte jurídico não é extenso, nesta matéria. Não há, certamente, aportes específicos válidos no Direito Romano, porque o jornalismo, como entendemos hoje, só passou a existir no Século XVII. Por outro lado, a maioria dos países europeus e os Estados Unidos construíram sua arquitetura legal sobre jornalismo na época do publicismo, em que não havia distinção entre ?opinião? e ?informação?, entre ?expressão pessoal? e ?veiculação de mensagens públicas?.

Até o final do Século XIX, não se percebia a necessidade de traduzir para públicos interdisciplinares, incluindo os menos letrados, a produção científica e tecnológica – essa função era atribuída às escolas, sem que as inovações e mudanças sociais obrigassem as pessoas a se atualizar permanentemente. Não havia a atual variedade de meios (rádio, televisão, Internet, jornais, revistas).

Finalmente, até vinte anos atrás, a produção, em cada mídia dessas, era intermediada por linotipistas ou digitadores, paginadores de rama, operadores de áudio e ilha de edição em TV – em suma, uma legião de profissionais técnicos de nível primário ou básico que o computador fez ou está fazendo desaparecer.

As circunstâncias em que se processa o jornalismo de hoje foram-se definindo de forma tal que a exigência de formação específica tornou-se óbvia – embora nem tanto para a tradição jurídica, superestrutura do pensamento informada por formas de realidade que, não obstante, já se extinguiram. Com isso, a prevalecer o entendimento do procurador e da juíza paulistas, o Brasil, que ocupa a liderança no campo da institucionalização do jornalismo, recuará para uma postura bem menos moderna. Qual o custo social disso?

O direito de ser informado

Já por ocasião do Relatório MacBride – estudo produzido por uma comissão da Unesco, presidida pelo irlandês Sean MacBride, na década de 1970, sobre a circulação da informação no mundo (título original Voix multiples, un Seul monde) – , ficou clara a oposição l entre dois conceitos jurídicos: o ?direito de informar? e ?o direito de ser informado?.

O primeiro consulta os interesses de quem produz informação – não os jornalistas, mas as elites, os países dominantes, os interesses empresariais e os núcleos centrais de poder em sociedades poliárquicas como são essas nossas, industriais e pós-industriais. O segundo atende à conveniência dos povos, dos países periféricos, da juventude, daqueles que, por alguma circunstância, permanecem distantes dos que decidem.

Não é por acaso que, vinte anos antes das agruras hoje vividas pelo Conselho de Segurança da ONU, a Unesco passou pelo inferno astral por conta desse relatório, que lhe custou grandes perdas, com o boicote e a oposição declarada dos Estados Unidos.

Isso nos permite localizar os beneficiados e as vítimas do míssil disparado pela juíza da 16? Vara Federal. A decisão atende ao interesse dos donos de jornais paulistas, em particular de Octavio Frias Filho, da Folha de S. Paulo (não sei porque eles não escrevem ?São?, em lugar de ?S.?), que há muito fez do combate ao sindicato local dos jornalistas uma causa pétrea. Não serão esses os prejudicados. Nem mesmo as grandes empresas de outros estados, que selecionam seu pessoal e não deixarão de empregar os mais preparados.

Quebra-se, no entanto, o já precário equilíbrio de poder nas redações (certamente elas deveriam ter conselhos editoriais com alguma estabilidade, como ocorre em Portugal). Fragiliza-se a categoria, na medida em que o compromisso ético e os valores técnicos partilhados já não asseguram a unidade diante de situações específicas; os interesses comerciais, políticos e, eventualmente, criminais dos proprietários poderão comandar o processo de produção do veiculo sem encontrar resistência.

Pelo que acontecia antes, constata-se a morte da vida sindical inteligente. Os sindicatos serão invadidos por multidões de falsos jornalistas, empenhados em chantagear pessoas e instituições, beneficiar-se de verbas do FAT, ser aceitos em lugares convenientes – em suma, ?picaretas?. A derrubada dessa gente dos comandos sindicais, a partir da década de 1960, só foi possível com a exigência de formação específica, que criou nova identidade à profissão.

Prejudicam-se populações periféricas e as do interior do País. Gente que escuta rádio e ouvirá o rumor dos ratinhos; que vê televisão e verá a cobertura de Brasília nas curvas sensuais de Miss Brasil, jornalista ?precária?. Municípios (a maioria) em que cada prefeito que assume tem seu cabo eleitoral preferido para imprimir um panfleto periódico de poucas páginas e exemplares, destinado a cumprir a lei que determina a veiculação em jornal do município, se houver, da publicidade legal (editais, avisos etc.).

Essa é a contribuição que posso dar às reflexões dos juízes do TRF paulista e dos tribunais superiores, em Brasília. Quixotesco como todo jornalista deve ou deveria ser, aposto no ?direito de ser informado?, até porque ninguém impede o ?direito de informar?. Todos, em tese (na prática não é bem assim, mas essa é outra discussão), podem expressar por qualquer veículo, suas opiniões pessoais, ressalvados os casos particulares – e retornamos, aí, à falácia descrita por Platão nos primeiros parágrafos desse texto. (Nilson Lage é jornalista e professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem um doutorado em Semântica e leciona Lógica.)”

 

VOCÊ S/A CENSURADA

“Cai a censura à Você S/A”, copyright Jornalistas & Cia, 26/3-1/4/2003

“Como era de se esperar, o feitiço voltou-se contra o feiticeiro. O Tribunal de Justiça de SP cassou, no último dia 21/3, a liminar que condicionava a revista Você S/A a publicar direito de resposta na mesma edição em que traria reportagem a respeito de empresas de recolocação profissional no mercado. A decisão tem força de jurisprudência e deve inibir futuras tentativas na mesma direção. Nesses três meses em que vigorou a ?censura prévia?, a Você S/A continuou apurando a pauta e recebeu (até por força da divulgação que o assunto teve) preciosas colaborações de leitores e ex-funcionários de empresas do setor, o que deixou a matéria, segundo a diretora Maria Tereza Gomes, atualizada e muito mais completa. A revista fez, neste início de semana, uma última tentativa de ouvir a Dow Right Consultoria em Recursos Humanos, responsável pelo veto da justiça, mas não conseguiu. O presidente da empresa chegou a marcar um horário, mas desistiu horas antes da conversa. De qualquer modo, a empresa havia sido ouvida na fase anterior. A edição da Você S/A com a matéria – agora com 16 páginas – sairá nas bancas em 10/4, provavelmente com reforço de tiragem.”