Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Norma Couri

BAO CHI, BAO CHI

"Um jornalista brasileiro na Guerra do Vietnam", copyright Jornal do Brasil, 12/05/02

"Entre os jornalistas brasileiros que cobriram a Guerra do Vietnam, estava Luís Edgar de Andrade, que passou o ano de 1968 no Sudeste Asiático. E levou mais de 30 anos tentando transformar em livro o impacto que viveu. Inclusive, a dor de ver outro correspondente brasileiro, José Hamilton Ribeiro, perder a perna ao pisar um terreno minado 14 dias depois de aterrissar no Vietnam.

Anos depois, ao ter a máquina Olivetti roubada num hotel nova-iorquino onde tentava escrever as memórias da guerra, Luís Edgar desistiu do livro. Mas as lembranças voltaram a incomodar de tal maneira que hoje o jornalista lança Bao chi, bao chi, um romance que concentra em 284 páginas de emoção sua visão do inferno. Para quem a acompanhou passo a passo, é o momento de reviver em fina escrita a guerra de guerrilha mais sangrenta da história. Para quem nasceu depois, pode ser uma lição de jornalismo indicada para estudantes ou manual de estratégia de guerra para aficionados. Mas será principalmente a chance de experimentar o prazer da leitura de um texto que Carlos Heitor Cony compara aos melhores de Hemingway.

Mas não se trata de uma reportagem nem um livro de memórias. É uma ficção que mistura o rigor histórico de um jornalista tarimbado à glamourização e ao sexo ocasional que envolvem situações de muito perigo. Também trata de personagens reais, como o colega José Hamilton, além de Peter Arnett, que a Guerra do Golfo consagraria, Oriana Falacci e outros jornalistas menos conhecidos.

Entre eles, o português José da Câmara Leme, tornado personagem do famoso livro de Michael Herr sobre o Vietnam, Dispatches, por ter desembarcado em plena guerra de roupa esporte e mala na mão. Os correspondentes eram obrigados a usar uniforme americano, com capacete e tudo. O medo de ser apanhado por um vietcong fez alguns, como o filho do ator Errol Flynn, bordarem na farda a expressão ?bao chi?. E obrigou o resto dos correspondentes a pronunciar ?bao chi? (imprensa) que implicitamente queria dizer: ?Não atirem.?

O tal jornalista português, que aparece no livro como Nuno Pereira, publicou Repórter no Vietnam, mas foi morrer em Portugal quando um carro caiu de um viaduto em cima daquele em que viajava como carona. Outro jornalista desconhecido, também personagem do livro, era o correspondente argentino do La Nación, Ignazio Escurra, que saltou de um táxi no bulevar Trang Hung Dao, entrou num beco qualquer e só apareceu numa pilha de cadáveres que Luís Edgar teve de reconhecer. Tinha 29 anos e a mulher estava grávida.

Bao chi, bao chi traz suspense quase como num romance policial, mas relata situações verdadeiras vividas pelo correspondente, que no livro aparece como Miguel de Arruda. ?Meu pai realmente morreu enquanto eu estava lá, e o telegrama chegou do Ceará em inglês?, conta, ?três meses depois?. ?Eu também havia sido demitido quando fui para o front.? Repórter free-lancer, tal como Miguel, Luís Edgar juntou o dinheiro da indenização, quando foi demitido do jornal, comprou a passagem e voou para Saigon, sofrendo impedimentos para entrar na guerra que, só agora, soube por quê. ?Havia mesmo um bloqueio à minha entrada, não estavam gostando dos meus artigos?, diz.

No livro, Miguel/Luís Edgar conta a noite de medo que passou antes de embarcar para Khe Sanh, a base americana sitiada durante três meses por norte-vietnamitas e vietcongs. ?Morri de vergonha por ter arrumado um álibi para não ir?, conta o jornalista. Acabou sendo um dos raros que cobriram o cerco. Também foi verdadeira a história da missa que o salvou da morte. Ele resolveu rezar meia hora antes de os americanos bombardearem por engano o pátio da escola Confucius. Ali era o posto de comando sul-vietnamita no bairro de Cholom. Morreram seis pessoas.

Anos mais tarde, assistindo a filmes como Apocalipse now (de Francis Ford Coppola), ele conta o pavor que sentiu. ?Esse som digital moderno espalhado por todos os lados me deu medo de ter estado lá e me fez perguntar: mas eu vivi isso tudo? Lá, na hora, não senti tanto terror?, conta Luís Edgar. ?Na guerra ou você tem medo antes ou depois. Hoje não vôo de helicóptero, recusei-me a entrar num no Kuwait , depois da Guerra do Golfo. No Vietnam eu roncava a bordo de um bicho daqueles. Quando acordava, meus companheiros comentavam o tiroteio em torno e eu perguntava: Onde? Não ouvi nada.?

Nos anos do pós-guerra, Luís Edgar, que tem 25 anos de televisão e hoje dirige o jornalismo da TVE, leu uns poucos romances sobre o Vietnam. ?Uma americana me fez morrer de rir ao embarcar seu personagem num táxi para ir do Hotel Continental ao Hotel Caravelle?, lembra. ?O bar do Continental, onde os jornalistas se reuniam depois dos briefings americanos, era famoso desde O americano tranqüilo, de Graham Greene, sobre a Guerra da Indochina. Só que o Continental fica exatamente em frente ao Caravelle, bastava o personagem atravessar a rua.?

Naquela época jornalistas não eram alvo de tiros como se tornariam depois. Dos quase 2 mil que passaram pelo Vietnam, 48 morreram no combate, 18 desapareceram. Mandavam os textos por telex, as fotos, por avião. Luís Edgar usava a Panam. ?Foi a última guerra em que os correspondentes foram respeitados?, diz o escritor.

Michael Herr dizia que, assim como as armas convencionais não puderam vencê-la, nenhum jornalista foi capaz de cobrir a Guerra do Vietnam. Mas, literariamente, ela parece ter tido, para a geração dos anos 60, ?o mesmo efeito da guerra da Espanha para a geração de Hemingway e Malraux nos anos 30?, acredita Luís Edgar. Quando o correspondente inglês Gavin Young voltou para casa em 1974, escreveu: ?A guerra do Vietnam espera pelo seu romancista.?

O romance chegou. Bao chi, bao chi, escrito no ponto certo, paga de sobra essa dívida com a literatura e a história."

 

D. QUIXOTE vs. REALITY SHOWS

"?D. Quixote? é mesmo o melhor livro?,", copyright O Estado de S. Paulo, 12/05/02

"Nada contra Dom Quixote de la Mancha – narrativa do século 17 do espanhol Miguel de Cervantes escolhida na semana passada a melhor obra de ficção de todos os tempos -, mas, na opinião de alguns autores brasileiros, a idéia de uma eleição como esta não faz muito sentido. ?Lista por lista, prefiro a das mulheres mais bonitas?, brinca, por exemplo, Ignácio de Loyola de Brandão.

A pesquisa foi organizada pelos editores do Clube do Livro da Noruega, que pediram a cem escritores – entre eles V.S. Naipaul, Carlos Fuentes, Milan Kundera e os brasileiros João Ubaldo Ribeiro e Ana Miranda – que elencassem as dez melhores obras de ficção já publicadas. Dessas listas apareceu o resultado. Dom Quixote ganhou de longe: obteve 50% a mais de votos que os segundos colocados – Madame Bovary, de Flaubert, e Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust.

A intenção, segundo os organizadores, era colaborar com uma campanha que visa à promoção da ?leitura de clássicos contra o ?mal? da televisão, do vídeo e dos jogos de computadores?. No entanto, na opinião do poeta Régis Bonvicino, autor de Céu-Eclipse, ?este tipo de pesquisa representa o vazio de nossa época?. ?Não existe melhor ou pior, existe arte que é construída, desenvolvida. Atitudes como essa mostram um relacionamento autoritário com relação à produção artística.? Além disso, segundo o jornalista e escritor Luiz Ruffato, ?o resultado não vai fazer com que Dom Quixote venda mais, nem acrescentar nada aos leitores?.

?Como afirmar uma coisa dessas? Esse tipo de coisa é tão arbitrário. Por que não a Ilíada de Homero ou O Som e a Fúria de Faulkner??, questiona Antônio Torres, autor de Essa Terra. ?Basta perguntar: qual o sentido de uma pesquisa como essa? A resposta – nenhum – já diz tudo. Livro bom é livro bom?, acrescenta Loyola. ?Melhor livro em que sentido? Em termos de linguagem, estrutura, originalidade??, pergunta Lya Luft. E completa: ?Qual seria, então, o pior? Pesquisas como essas são frutos de uma enorme falta de assunto.? O próprio João Ubaldo concorda: ?Nem me lembrava de ter votado e nada tenho a dizer sobre o resultado, listas como essa são, no fundo, uma grande besteira.?

Deonísio da Silva aponta problemas no modo ?científico? como foi feito o levantamento. ?Qualquer lista com números inteiros é problemática, talvez fosse melhor dividi-la por gêneros, autores, mas jamais dizer que este é melhor que aquele livro. Além do mais, ninguém, por mais culto que seja, pode conhecer todos os livros publicados no mundo, em todas as línguas.?

Nélida Piñon, da Academia Brasileira de Letras, também aponta preconceitos que aparecem em momentos como esses. ?Fui convidada a participar dessa pesquisa, mas não abono essas buscas que, em geral, sem perspectiva histórica, marginalizam obras produzidas por tempos pretéritos, por sociedades esquecidas e por aquelas outras culturas hoje consideradas periféricas?, diz a autora de O Calor das Coisas, no que é seguida por Ruffato. ?No geral, escolhas como essa são eurocêntricas, contam com a presença de alguns autores norte-americanos e latino-americanos, mas ignoram a África e o Oriente.?

Obviedade – ?Apesar de não concordar com o conceito por trás da lista, entendo a escolha de Dom Quixote, afinal se trata de um livro com o qual, de uma forma de outra, as pessoas já se relacionaram ao longo da vida, já faz parte do imaginário coletivo?, indica Lya Luft. ?Desta vez, pelo menos, escolheram um bom livro?, comemora, hesitante, Loyola. ?Casualmente, julgo Dom Quixote uma das mais extraordinárias obras que o gênio humano jamais concebeu, a que deu vida?, diz Nélida.

?Particularmente, escolheria a Comédia de Dante, que é uma obra ligada com seu tempo e, ao mesmo tempo, bastante significativa no contexto da evolução da passagem da cultura greco-latina para as literaturas nacionais, modernas. O próprio Dom Quixote deve muito a Dante?, diz o professor de teoria literária Alcir Pécora. ?Mas, se jogarmos as regras de um jogo arbitrário como esse, Dom Quixote até que é uma escolha mais ou menos aceitável.? Para Antônio Torres, a opção chega a ser óbvia. ?Faz sentido, todos nós temos, de certa forma, um pouco de Dom Quixote e Sancho Pança.? Deonísio da Silva, porém, é enfático. ?Sou mais Machado de Assis.? (Colaborou Karla Dunder)"