Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Sérgio Augusto


‘Está feia a coisa. E não é de hoje. Falo da crítica, não do governo Lula. E da crítica como um todo, daqui e de fora, pois a crise é mundial. Crítica de cinema, literatura, teatro, música, artes plásticas, dança, etc. Por uma série de razões, ela perdeu espaço e status na mídia impressa. Seu poder se esvaziou, sua influência é quase nula hoje em dia. Poderosos árbitros da criação artística, que exigências mercadológicas rebaixaram a meros guias de consumo, os críticos sabem agora como Adão e Eva se sentiram ao serem expulsos do paraíso.


‘Quando jornalistas que cobrem cultura se encontram, a conversa sempre converge para o declínio de sua influência sobre a atividade artística e o gosto do público’, constatou há dias o veterano crítico de música de Seattle, Doug McLennan, editor do ótimo site ArtsJournal. Estava ele justamente num encontro de jornalistas que cobrem cultura. Não um encontro qualquer, pequeno e fortuito, mas um autêntico congresso multidisciplinar de críticos, a National Critics Conference, o primeiro da espécie realizado na América e, creio, no mundo. Foi em Los Angeles, entre os dias 25 e 29 de maio. Presentes 487 críticos de artes plásticas, música clássica, jazz, dança, poesia e teatro de todos os cantos do país. A maioria, claro, freelancers. Também nos EUA, só os grandes veículos ainda mantêm seus críticos sob contrato. Nos últimos cinco anos, apenas o New York Times e o Los Angeles Times aumentaram seus quadros de críticos permanentes.


Os críticos de cinema não compareceram ao congresso, talvez porque necessitem de um simpósio à parte, de um muro das lamentações exclusivo – e suficientemente gigantesco para acomodar sem discriminações a categoria, a que mais cresce no planeta. Vingou nas redações a certeza de que qualquer um pode ser crítico de cinema porque todo mundo vai ao cinema desde criança. Na verdade, qualquer um pode ser crítico de cinema, hoje em dia, porque qualquer jornalista razoavelmente adestrado é capaz de redigir um comentário de 30 linhas depois de abastecido de informações que às toneladas lhe chegam às mãos, através de folders promocionais, revistas, sites e programas de TV por assinatura. Se lhe derem menos de 30 linhas, talvez nem precise assistir ao filme – e ninguém irá notar. Os cineastas deveriam protestar contra esse capitis diminutio.


Nas palestras, painéis e seminários da National Critics Conference discutiu-se praticamente tudo: do futuro da crítica (na mídia que encolhe, a impressa, e na que se expande, mas sem pagar ou pagar direito, na internet), da crise das gravadoras, dos estragos causados pela globalização e padronização das culturas, das técnicas para tornar um texto crítico mais palatável, sedutor, incisivo e didático, das estratégias para arrumar vaga num mercado de trabalho saturado de ofertas e dominado por editores melancolicamente submissos à indústria cultural, coniventes, enfim, com a ‘zagatização’ da crítica. (Zagat é um famoso guia de consumo americano, um Guide Michelin sem o mesmo pedigree.) Robert Hughes, o australiano que se transformou no mais respeitado expert em artes plásticas dos EUA, não foi ao encontro mas sua famosa boutade sobre a profissão (‘Fazer crítica é como ser pianista num bordel; você não tem o menor controle sobre o que estão fazendo no andar de cima’) foi lembrada mais de uma vez pelos que lá estiveram.


No dia da abertura, o crítico e produtor de discos John Kieser, visando injetar ânimo nos colegas, divulgou um dado otimista: os primeiros CDs das sinfonias de Mahler, por ele produzidos com a Sinfônica de São Francisco, já haviam vendido, em poucas semanas, 65 mil cópias. O produtor e roteirista de TV Norman Lear, que enriqueceu com as telesséries All in the Family e Mary, Mary Hartman, também se esforçou para levantar o astral dos presentes, no discurso de abertura do congresso. ‘A crítica’, augurou Lear, ‘sobreviverá a todas as suas adversidades, pois o impulso humano que anima a atividade crítica é tão elementar e necessário quanto o que anima a criação artística.’ Apontando para a platéia lotada e desvanecida, declarou: ‘A cultura e a política contemporâneas precisam de vocês. Elas precisam ouvir o que as mentes inteligentes e analíticas têm a dizer. Vocês são o giroscópio moral da nossa cultura confusa.’ Desceu do pódio ovacionado.


A maioria dos presentes, contudo, deu mais importância a um longo e rigoroso artigo sobre a ‘condição crítica da crítica’ que, três dias antes, Scott Timber publicara no Los Angeles Times e se transformara no principal assunto de todas as conversas, e à primeira má notícia divulgada durante o congresso: o fim próximo do Programa Nacional de Jornalismo Cultural da Universidade de Columbia, por falta de subsídios. Desânimo e discussões também provocou o new look das revistas Time (em cujas páginas Robert Hughes se projetou) e Newsweek, agora com menos resenhas e mais fofocas, minientrevistas com celebridades e chorumelas que tais. Antes vilipendiadas como o supra-sumo da degradação crítica, as resenhas, quem diria, viraram peça de resistência do jornalismo cultural.


O que, diabos, aconteceu? Nem sei por onde começar, se pela ‘cultura da celebridade’ ou se pelos efeitos colaterais do pluralismo estético desenfreado nas duas últimas décadas, se pela inversão ou falta de critérios e parâmetros analíticos dogmatizada pelo pós-modernismo, se pelo populismo anti-intelectualista cada vez mais em alta na era Bush, se pelas conturbações na mídia impressa (que nos últimos anos perdeu publicidade, qualidade, leitores e credibilidade), se pela ascendência da geração screenager (cujos hábitos de leitura e poder de concentração diferem radicalmente dos de seus ancestrais), se pelo crescente desinteresse das pessoas por paladares exigentes e análises consistentes, se pela desimportância da arte (e a conseqüente prevalência do entretenimento digestivo e escapista) na vida das pessoas. Ou se pela internet e seu enxame de sites e blogs, que fizeram a crítica perder sua antiga aura, democratizando a opinião e o palpite, nem sempre, infelizmente, dignos de atenção ou crédito, como sói acontecer em qualquer espaço que se assemelhe à casa-da-mãe-joana.


‘O que existe é uma desaprovação sistêmica do pensamento inteligente e da complexidade cultural’, sintetizou Chris Jones, do Chicago Tribune. Em determinadas publicações, não se faz mais distinção entre crítica e publicidade, entre elogio e hype. Aos exemplos ressaltados no congresso, como a revista People e programas do tipo Entertainment Tonight, poderíamos acrescentar a maioria das publicações populares daqui, sempre abanando o rabinho para o último megasucesso de Hollywood, e até o Cineview do TeleCine.


Scott Timber abria seu tão comentado artigo sobre a ‘condição crítica da crítica’ falando de Addison De Witt, o personagem de George Sanders em A Malvada (All About Eve), o protótipo do crítico bem-sucedido. Culto, brilhante, cínico, mordaz, elegante, encantador e, acima de tudo, poderoso, sua opinião podia deslanchar ou destruir uma carreira, consagrar uma peça ou encurtar sua temporada. Isso em 1950, quando era outra a relação do crítico com o público e bem outra, mais seleta e cosmopolita, a platéia da Broadway. Timber pranteia a ausência, hoje, de luminares da envergadura e influência de H.L. Mencken, Clement Greenberg (o padrinho do modernismo nos EUA) e Pauline Kael, e lamenta que o crítico de maior prestígio no país, atualmente, seja a eminência parda da revista Wine Advocate, Robert Parker, há pouco visto no documentário Mondovino.


Há quem acredite que o último descendente de Addison De Witt a ter nas mãos os destinos da Broadway foi Frank Rich, do New York Times. O próprio Rich, há tempos colunista cultural do jornal, não lastima a perda de poder de seus pares. ‘A única coisa que me incomoda é o desaparecimento da crítica séria nos jornais e nas revistas. É fundamental que haja uma discussão alternativa sobre as criações artísticas, desatrelada do mercado e sem excluir a cultura popular.’ Ao que outro crítico, presente ao congresso de Los Angeles, acrescentou: ‘As pessoas não precisam que alguém lhes diga se devem ou não assistir a, digamos, Desperate Housewives, mas precisam que alguém lhes revele o que Desperate Housewives tem a dizer sobre a América de hoje.’


Depois de ouvir e conversar com muita gente, um repórter do Los Angeles Times traçou um perfil do crítico ideal, aquele que, supostamente, terá mais condições de sobreviver às incertezas do mercado de trabalho. Ele precisa ter voz própria, estilo, personalidade, ser bem humorado, curioso, erudito, versátil, acessível, inteligente, didático, prolífico (para desfrutar de uma renda razoável no fim do mês), rápido e claro na exposição das idéias, ligado na cultura pop sem desdenhar a alta cultura, franco, e corajoso o bastante para enfrentar as pressões para amolecer e baixar seu nível de exigência. Um crítico assim nem precisa se chamar Clark Kent.’



DOM QUIXOTE


Affonso Romano de Sant`anna


‘Na rota de Dom Quixote’, copyright O Globo, 25/06/05


‘Bela coisa seria a televisão brasileira percorrer os caminhos que Dom Quixote trilhou nas regiões centrais da Espanha. Reconstruiria uma viagem imaginária agregando a ela ainda mais imaginação presente.


Penso nisto por causa de uma sugestiva reportagem feita em terras lusas por Maria Leonor Nunes para o invejável ‘Jornal de Letras’, chefiado por um dos mais queridos intelectuais portugueses – José Carlos Vasconcelos. É que a jornalista fez uma coisa simples e invejável: saiu estrada afora para refazer os descaminhos de Dom Quixote, assim como Azorin o fizera em 1905, quando do terceiro centenário do livro, na obra ‘La ruta de Don Quijote’.


E lá foi ela conferindo a lenda suscitada na obra literária com a lenda que foi ganhando vida nas estradas atuais, nas estalagens e hotéis de hoje, nos teatros e moinhos de vento. Mais que nunca as frases ‘a arte imita a vida, a vida imita a arte’ se confundiram. Bandas de rock e conjuntos musicais barrocos, comerciantes e intelectuais, literatos e turistas entraram num processo de comunhão mítica celebrando Dom Quixote. Isto aconteceu também com algumas grandes obras e grandes autores de outras literaturas. Lembra-me uma crônica de Paulo Mendes Campos dizendo, no caso inglês, da grande indústria que se formou a partir do autor de ‘Hamlet’, uma espécie de Shakespeare Incorporation em torno da qual vivem milhares e milhares de pessoas em todo o mundo . Os grandes autores geram realidades. E até enriquecem pessoas, pela mente e pelos bolsos.


Por exemplo: no local daquela ‘venta’ onde Quixote foi armado cavaleiro, existe hoje uma estalagem que desde os anos 60 tem armado inúmeros Quixotes que por ali passam. Aconteceu que há cerca de quarenta anos um hóspede vindo de Porto Rico se sentiu impelido a repetir o gesto do cavaleiro andante de Cervantes. Rogou ao senhor que o hospedava que o cingisse cavaleiro. Como recusar um tão augusto e delirante pedido?


A partir desse gesto ‘sério e divertido’, Dom Antônio já presenciou centenas de pessoas, de todas as profissões e nacionalidades, como o velho Quixote, serem sagradas cavaleiros no pátio da sua hospedaria.


Assim as pessoas saem da realidade e mergulham na fantasia. Que realidade? indagaria o cavaleiro da Mancha. Vai ver que apenas pulamos de uma fantasia para outra. De uma fantasia que chamamos realidade para outra realidade que chamamos fantasia.


Virou moda e até sinal de erudição ficar citando aquele conto do Borges, onde um certo Pierre Menard teria desejado tanto escrever o ‘Quixote’ que imagina escrevê-lo palavra por palavra, como se ele fosse seu. Alguns leitores incautos de Borges, entendendo-lhe erradamente a ironia – pois ele não se ‘apropriou’, mas satirizou a ‘apropriação’ – começaram então a reescrever obras de outros autores imitando-lhes o estilo, sem entender a sutileza do que Borges estava dizendo. Se Borges fosse tolo iria fazer pastiche de Cervantes. Isto seria fácil, como faz a estética da pós-modernidade. Mas como Borges é pré-moderno e pós-antigo, não se entregou a essa facilidade criativa, mas a ironizou e a superou. Jogou uma casca de banana onde os afoitos escorregaram.


Pois fora do texto de Borges aconteceu um fato que confirma Borges como profeta da escrita coletiva. A ficção fez-se realidade. Na Espanha pôs-se em movimento o desejo de escrever/reescrever o ‘Quixote’ coletivamente. Mais de dois mil copistas trabalhando desde o início deste ano transcreveram, parágrafo por parágrafo, o primeiro volume da obra. Agora começam a escrita/reescrita do segundo volume e mais de cem novas grafias de assinantes já aparecem nas páginas.


Pierre Menard ganhou consistência, agora socialmente. Pela letra as pessoas estão se apoderando do texto cervantino, ou se quiserem, através de seus manuscritos estão devolvendo ao texto original a sua participação. O gestual de Cervantes, há quatrocentos anos, transforma-se no gestual de novos escribas, que em plena era da eletrônica e do computador, voltam à caligrafia. Meu Deus! Se Barthes fosse vivo, que carnaval de beletrismo crítico faria com esse fato!


As comemorações em torno de Cervantes estão contabilizando cerca de três mil eventos na Espanha. Quem quiser se espantar veja o site (www.donquijotedelamancha2005.com). Surgiram em todo o mundo edições do ‘Quixote’, umas para crianças, outras para adolescentes, outras para universitários, enfim, para todos os gostos. Fizeram uma edição de bolso que vendeu um milhão e meio de exemplares. E até o presidente da Venezuela, o irrequieto Hugo Chávez, entrou na roda de celebrações e mandou rodar um milhão de exemplares do ‘Quixote’ para distribuição gratuita. E para dar mais charme e ampliar o leque ibérico da obra convidou José Saramago para prefaciá-la.


No Museu Cervantino, em Toboso, há uma exposição de exemplares do ‘Quixote’ com autógrafos de personalidades como Mitterrand, Mussolini e Mandela. E isto me fez lembrar que em 1991, quando dirigia a Fundação Biblioteca Nacional, tive a felicidade de poder anexar ao acervo daquela instituição a fabulosa coleção cervantina do doutor Genival Londres.Trata-se de cerca de mil volumes que ele amorosamente a vida inteira colecionou, e que sua viúva gentil e graciosamente cedeu à BN. São exemplares da obra em inúmeras línguas e com autógrafos os mais diversos, a começar com o do ditador e presidente Getúlio Vargas.


‘O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha’ foi traduzido pela primeira vez para o português em 1793, por um anônimo. Num outro texto já tratei do ‘Tirant lo Blanc’ (1460), traduzido por Claudio Giordano, livro que fez a cabeça de Cervantes. Mas agora chamo a atenção para outra obra, ‘O livro apócrifo de Dom Quixote de la Mancha (1614)’, de Alonso Avellaneda, editado pela Ed. Itatiaia. Como se sabe, aquele esperto Avellaneda tentou pastichar Cervantes, misturando o falso com o verdadeiro. Cervantes não teve piedade. Botou o pastichador como personagem no segundo volume do ‘Quixote’, triturando-o com a ironia, confirmando a tese antropofágica de Paul Valéry de que o leão é a soma dos cordeiros assimilados.’