Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Sylvia Colombo

‘Naquela manhã de 1945, em que explodiu a bomba de Hiroshima, um japonês acordou, foi até o banheiro, abriu a torneira e, desconfiado de que aquele seu simples gesto poderia ter detonado um mecanismo infernal, morreu.

É assim que Carlos Heitor Cony, 78, ironiza os relatos pessoais que se posicionam como eixo da história de determinado episódio. Comparando-se ao assombrado japonês da anedota, o escritor e colunista da Folha diz que até hoje não compreendeu direito a ‘explosão’ histórica que testemunhou, o golpe militar de 1964.

Como cronista do diário carioca ‘Correio da Manhã’, Cony foi um crítico duro do regime que se impôs no país a partir da noite de 31 de março daquele ano. ‘Muitos acharam que seria algo passageiro, de correção da ordem, e apoiaram. Mas eu já sabia que a coisa ia piorar e que iria durar’, diz.

O ‘making of’ desses já históricos textos está em ‘A Revolução dos Caranguejos’, que integra a coleção ‘Vozes do Golpe’, lançada agora pela Companhia das Letras. Já as crônicas propriamente ditas estão em ‘O Ato e o Fato’, livro de 1964 que agora é devolvido às prateleiras pela Objetiva.’

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‘‘Minha voz era a de um alienado’, diz Cony’, copyright Folha de S. Paulo, 20/03/04

‘‘A Hard Day’s Night’ (a noite de um dia difícil), dos Beatles, foi a última música que Carlos Heitor Cony escutou, no carro que o levava para operar uma apendicite, num dia de março de 1964. Quando pôde caminhar de novo, saiu para um passeio com Carlos Drummond de Andrade. O precavido amigo mineiro não se esqueceu de levar um guarda-chuva -poderia haver mau tempo…

Era 1º de abril de 1964, o presidente João Goulart tinha caído, o Exército levantava uma barricada na avenida Atlântica e a população ainda não sabia o que estava acontecendo. Cony voltou para casa e escreveu ‘Da Salvação da Pátria’, a primeira de uma série de crônicas que atacariam os militares e a ditadura que se instalava no país. O texto abre também ‘O Ato e o Fato’, relançado agora.

Organizado por Ênio Silveira, o livro saiu naquele mesmo ano. Foi reeditado em 1984, pela Civilização Brasileira. Agora a Objetiva relança-o com prefácio de Luis Fernando Verissimo.

‘Não me envolvi com as reedições. A crônica é como um fósforo que se acende e se apaga, o que eu tinha a dizer pertence àquele momento’, disse Cony à Folha.

Por não ter tido atuação política nem manifestado simpatia por homens ou partidos, o autor nunca foi rotulado como alguém de esquerda. Era visto como um alienado que só se interessava por sua obra literária. Isso acabou favorecendo-o, pois o liberou para continuar escrevendo quando os intelectuais vistos então como ‘subversivos’ eram presos ou desapareciam do cenário.

‘As crônicas têm em comum só o fato de que nunca dei ao evento político o direito de me modificar. Minha voz era a de um alienado. A crônica que escrevi depois do passeio com Drummond, se fosse escrita por ele, cuja opinião política era conhecida, teria tido uma outra repercussão’, diz.

Nos textos dessa histórica coletânea, Cony refuta o termo ‘revolução’, mas também não poupa Jango nem a esquerda. Em junho, quando Juscelino Kubitschek é cassado pelo regime, diz: ‘Sou pela manutenção dos direitos políticos do sr. Juscelino, para ter o prazer de não votar nele’. De Carlos Lacerda, ainda, dizia que era inteligente, mas que ‘teve um estalo e ficou burro’ e, do general Castello Branco, recém-empossado presidente, que dera ‘à nação um espetáculo triste: o de sua pequenez’. O ATO E O FATO. Autor: Carlos Heitor Cony. Editora: Objetiva. Quanto: R$ 28,90 (196 págs.).’

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‘Golpe inspira coleção de relatos e ficção’, copyright Folha de S. Paulo, 20/03/04

‘‘Vozes do Golpe’, uma simpática coleção de pequenos livros, reúne quatro nomes da literatura nacional em textos encomendados para marcar os 40 anos do golpe de 1964. Idealizada pelo gaúcho Moacyr Scliar, a coletânea é composta de dois textos de ficção e dois relatos pessoais.

Scliar é autor de um deles, ‘Mãe Judia, 1964’, sobre um médico recém-formado que é levado pela diretora da clínica em que trabalha a colocar um gravador numa capela para obter declarações de uma misteriosa mulher.

A outra ficção, assinada pelo também gaúcho Luis Fernando Verissimo, é a divertida ‘A Mancha’, que conta a história de um homem que reencontra por acaso o prédio em que foi torturado durante a ditadura, compra-o e depois não sabe o que fazer nem com o imóvel nem com suas lembranças do período.

‘Não tive atuação política e, na época do golpe, eu estava em lua-de-mel. Então tenho até boas recordações, pessoalmente. Mas sofri as conseqüências da ditadura depois, atuando na imprensa’, disse o escritor à Folha.

Já em ‘Um Voluntário da Pátria’, Zuenir Ventura narra os acontecimentos a partir de sua experiência pessoal. O escritor deixara o Rio num Fusca, com a mulher grávida, e chegara a Brasília no dia 31 de março. ‘Queria devolver a sensação que me causou aquele dia. Havia uma guerra de boatos e uma estupefação generalizada’, disse. VOZES DO GOLPE – De: Moacyr Scliar, Luis Fernando Verissimo, Zuenir Ventura, Carlos Heitor Cony. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 41 (336 págs.).’





Luiz Chagas

‘Memórias do medo’, copyright IstoÉ, 22/03/04

‘O que os brasileiros estavam fazendo no dia 31 de março de 1964? Para responder a esta pergunta aparentemente simples, quatro observadores privilegiados da história recente do País – os escritores Carlos Heitor Cony, Moacyr Scliar, Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura – escreveram os libretos da coleção Vozes do golpe (Companhia das Letras, 336 págs., em quatro volumes, R$ 41), que acaba de chegar às livrarias. O lançamento vem acompanhado de outras leituras urgentes. Quatro décadas após o golpe que instaurou o regime militar no País, calando suas vozes mais expressivas entre 1964 e 1985, uma espécie de revanche toma conta das livrarias com a publicação de textos que procuram jogar um pouco de luz sobre esse período obscuro. Na esteira do painel em cinco volumes elaborado pelo jornalista Elio Gaspari, dos quais já foram lançados o díptico As ilusões armadas (A ditadura envergonhada e A ditadura escancarada) e o primeiro volume do tríptico O sacerdote e o feiticeiro (A ditadura derrotada), pelo menos uma dezena de títulos sobre o assunto chega ao mercado.

Entre eles destacam-se as biografias do presidente deposto, Jango, um perfil (1945-1964) (Editora Globo, 288 págs., preço a definir), de Marco Antonio Villa, e a de seu sucessor, Castello – a marcha para a ditadura (Editora Contexto, 432 págs., R$ 43,90), de Lira Neto. Além do fundamental Visões do golpe – a memória militar de 1964 (Ediouro, 260 págs., R$ 32), de Maria Celina D’Araújo, Gláucio Ary Dilon Soares e Celso Castro, originalmente lançado em 1994 e elogiado pelo próprio Gaspari, que deve finalizar o quarto volume de sua obra em junho. Na mesma linha, a edição atual da revista Nossa história (Biblioteca Nacional/ Editora Vera Cruz, 98 págs., R$ 6,80) traz um dossiê com cinco reportagens escritas por especialistas sobre os antecedentes do golpe. O envolvimento da Marinha é reavaliado em Vozes do mar – o movimento dos marinheiros e o golpe de 1964 (Cortez Editora, 280 págs., R$ 38), de Flávio Luis Rodrigues, e Trajetória rebelde (Cortez Editora, 208 págs., R$ 28), de Pedro Viegas, cujos autores são marinheiros presentes nos acontecimentos.

Em meio à enxurrada de dados, datas e testemunhos, a série Vozes do golpe confere um pouco de humanidade àquele momento lembrado com tanto pesar. Enquanto o carioca Carlos Heitor Cony e o mineiro Zuenir Ventura partem da situação real – onde estavam?, o que faziam?, como se sentiram? – para descrever o turbilhão que foi a passagem do dia 31 de março para o 1º de abril, os gaúchos Moacyr Scliar e Luis Fernando Verissimo se valem da ficção para transmitir o desconforto experimentado. Em Mãe judia, 1964, Scliar entremeia o fim de um caso de amor com o relato da enlouquecida mãe de um ativista político, ‘depoimento’ transcrito de fitas gravadas pelo microfone oculto em uma imagem de Nossa Senhora, diante da qual a velha se confessava em voz alta. A obsessão de um homem em encontrar o cativeiro em que foi mantido é transformada por Verissimo em A mancha, na fria descoberta da sobrevivência do status quo.

Curiosamente, Cony e Ventura, apesar de serem jornalistas atuantes na época, estiveram à margem dos fatos. Em Um voluntário da pátria, o mineiro conta que passou os três dias que antecederam o golpe fazendo a viagem Rio-Brasília apertado em um fusquinha junto com a mulher, Mary, grávida, e a amiga Maria Luiza. O trio viajara para assumir um posto na ‘universidade do Darcy’, em uma referência a Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil de Jango, ambos às vésperas da deposição. O jornalista preenche as dúvidas e a sensação de vazio com dados que recolheu de 1964 para cá, incluindo passagens hilariantes com Ribeiro. Já Cony, em A revolução dos caranguejos, confessa que convalescia de uma operação de apendicite quando saiu pela primeira vez de casa, no dia 31, levado pelo poeta e amigo Carlos Drummond de Andrade. Juntos assistiram à tomada do Forte de Copacabana pelos rebeldes contra João Goulart, o que lhes pareceu pouco mais que uma pantomina. De volta à redação do Correio da

Manhã, os textos de Cony logo seriam tachados de comunistas pelos militares e de alienados pela esquerda, o que o fez ser perseguido por seguidores de ambas as ideologias. A hard day’s night, que acabava de surgir na voz dos Beatles, foi a última música que ouviu a caminho do hospital, sentindo que os jovens começavam a assumir uma outra espécie de poder. Mas, para a maioria, era o início de uma verdadeira noite de um dia difícil.’



Amaury Ribeiro Jr.

‘Como morreu Baumgarten’, copyright IstoÉ, 20/03/04

‘Ao assumir em 1986 o cargo de ministro-chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI), a convite do então presidente José Sarney, o general Ivan de Souza Mendes constatou que dois dos principais quadros da agência durante o governo João Baptista Figueiredo (1978-1984) – os coronéis Ary Pereira de Carvalho, o Arizinho, e Ary de Aguiar Freire – gozavam de uma prolongada mordomia no Exterior que fugia dos protocolos normais do governo. Homem de confiança do ex-chefe do SNI, general Octávio Medeiros, desde 1969, quando o ajudou na operação que resultou na queda dos militantes de esquerda do Colina (Comando de Libertação Nacional), em Belo Horizonte, Arizinho se encontrava em Buenos Aires, onde engordava sua aposentadoria com abono de US$ 6 mil mensais por serviços de espionagem. A mesma regalia era desfrutada pelo coronel Ary Aguiar – homem forte de Medeiros na agência central do SNI no Rio de Janeiro -, lotado em Genebra, na Suíça. ‘Ficou claro que eles estavam no Exterior escondidos porque tinham feito algo errado. Por isso pedi que retornassem imediatamente’, disse Ivan de Souza Mendes, recentemente, a um grupo de militares amigos.

A conclusão do general estava baseada numa coincidência intrigante. Os dois ‘Arys’ debandaram dias depois de terem sido envolvidos no assassinato do jornalista Alexandre Von Baumgarten, em outubro de 1982. Dois dias antes de morrer, o jornalista compôs um dossiê que envolvia membros do SNI num plano para assassiná-lo. No chamado Dossiê Baumgarten, os dois oficiais são acusados de terem participado da reunião em que foi decidida a sua morte.

A participação dos oficiais do SNI e de qualquer outro suspeito do assassinato do jornalista nunca foi comprovada. Apontado como principal testemunha do processo, o bailarino Claudio Werner Polila, o Jiló, apresentou uma versão fantasiosa alimentada pela imprensa e pela polícia na época, que acabou tirando o foco principal da investigação. Embora sofresse de problemas visuais, Polila declarou ter presenciado o sequestro do jornalista, de sua mulher, Janete Hansen, e do barqueiro Manoel Valente por ninguém menos que o chefe da Agência Central do SNI, o general Newton Cruz.

Esse mistério, no entanto, já havia sido desvendado no 14 de outubro, um dia depois do desaparecimento do jornalista, por agentes do CIE de Brasília. Responsável pela análise dos fatos da semana, o então agente no Distrito Federal, Marival Dias, teve acesso a um informe interno que caiu como uma bomba na comunidade de informação. ‘A notícia interna dizia que o Doutor César (o coronel José Brant) tinha comandado uma operação do Garra – braço armado das ações clandestinas do SNI -, que resultou na morte do Baumgarten’, disse Marival. Os detalhes do assassinato do jornalista foram passados a Marival pelo cabo Félix Freire Dias, o mesmo que cortava os ossos dos presos políticos na Casa de Petrópolis e participou de várias operações de captura e execução com o Doutor César no CIE.

De acordo com Marival, o Doutor César recebeu ordens para dar uma dura no jornalista e recuperar as provas que ele estaria usando para chantagear o SNI. ‘Mas, ao chegar no Rio, o Doutor César, oficial nervoso recém-chegado do CIE, acabou matando o jornalista, o que o obrigou a eliminar também sua mulher e o barqueiro Manuel.’

Pescaria – Marival esclarece que, quando a notícia chegou ao CIE, o corpo ainda não havia aparecido na praia e a imprensa nem especulava sobre o caso. De fato, o jornalista, que saiu no dia 13 de outubro para uma pescaria ao lado do barqueiro e da mulher, somente apareceu boiando doze dias depois na praia da Macumba, no bairro Recreio dos Bandeirantes. Segundo a perícia, ele não morrera por afogamento e havia marca de três tiros no cadáver. Dias depois, outros dois corpos carbonizados, apontados como sendo de Janete Hansen e do barqueiro, foram localizados em Teresópolis, mas até hoje não foram identificados pela perícia.

Antigo colaborador dos serviços de informação do Exército, Baumgarten usava a revista O Cruzeiro, de sua propriedade, para defender teses favoráveis ao regime militar. Pelos serviços prestados, conseguiu que o SNI lhe fornecesse cartas destinadas a empresários nas quais pedia publicidade. Segundo um amigo do jornalista, que não quis se identificar, ele passou a usar o mesmo método para angariar fundos para a candidatura de Medeiros à Presidência da República. ‘Aí está a chave do crime’, afirma o amigo. Em seu dossiê, Baumgarten conta que acabou entrando em atrito com o SNI porque a ajuda do órgão à revista não estava sendo suficiente para mantê-la.

Emboscada – Nos órgãos onde trabalhou, Marival sempre atuou nos setores de análise e informações. Sua tarefa consistia no levantamento sobre prisões e mortes de presos políticos e no cruzamento de dados fornecidos pelos interrogados ou pelos chamados ‘cachorros’, militantes que colaboravam com a repressão. Essa função estratégica permitiu, segundo ele, acompanhar as principais ações do CIE comandadas pelo Doutor César, o coronel reformado José Brant Teixeira, e pelo Doutor Pablo, o coronel Paulo Malhães. ‘Ao contrário do major Sebastião Curió Rodriguez, figura carimbada que teve uma atuação restrita à Guerrilha do Araguaia, os doutores César e Pablo circulavam por todo o País e estavam envolvidos nas principais operações de prisão, execução e ocultação de corpos do CIE. No Araguaia, participaram da Operação Limpeza, escondendo os cadáveres dos guerrilheiros’, disse Marival.

O ex-agente conta que os dois coronéis ganharam fama dentro dos órgãos de repressão ao montar uma emboscada em Medianeira, cidade no sudoeste do Paraná, para atrair, no dia 11 de julho de 1974, um grupo argentino de militantes de esquerda e guerrilheiros. Comandados pelo ex-sargento Onofre Pinto, os militantes da VPR fugiram do Chile, acuados pela repressão no país, e passaram pela Argentina antes de regressarem ao Brasil. Malhães era ligado ao Dina, o serviço de inteligência chileno, e ganhou o codinome ‘Pablo’ ao participar do gigantesco interrogatório seguido de torturas no Estádio Nacional de Santiago, logo após o golpe militar que derrubou o presidente chileno Salvador Allende.

Segundo Marival, Malhães montou a emboscada no Paraná com a ajuda da Dina e do ex-sargento Alberi Vieira dos Santos, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, o responsável por atrair os militantes para uma área de guerrilha fictícia na zona rural de Medianeira. De acordo com Marival, Alberi havia sido preso em 1965, ao comandar uma tentativa de rebelião contra o regime em Três Passos (RS), e acabou se tornando informante do CIE infiltrado na VPR. A chácara usada para a área da falsa guerrilha foi arranjada pelo então capitão Areski de Assis Pinto Abarca, chefe do serviço de inteligência do Quartel do Exército de Foz do Iguaçu, que, após a operação, passou a integrar os quadros do CIE. Comandados pelo ex-sargento Onofre Pinto, o estudante argentino Enrique Ernesto Ruggia, 18 anos, e os guerrilheiros da VPR Daniel José Carvalho, Joel José de Carvalho, José Lavéchia, Vitor Carlos Ramos e Gilberto Faria Lima, o Zorro, foram facilmente dominados pelos agentes do CIE ao chegarem na chácara de Medianeira.

‘Presos, os irmãos Carvalho, Lavéchia, Vitor, Ruggia e Zorro foram torturados e executados imediatamente’, conta Marival. Em seu relato, diz que a vida do ex-sargento Onofre seria poupada porque, após ter sido torturado, ele teria aceitado colaborar com o Exército. Mas, ao consultar o implacável general Miltinho Tavares, chefe do CIE, Doutor Pablo recebeu ordem contrária. ‘Temos de acabar com ele para dar o exemplo e inibir a possibilidade de novas deserções’, teria respondido o general. Alberi também teria sido assassinado, como queima de arquivo, em 1977, no Paraná. Para o secretário Nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, esse episódio pode ter originado o diálogo entre o presidente Ernesto Giesel, empossado três meses antes da emboscada, e seu segurança, o tenente-coronel Germano Arnoldi Pedrozzo, revelado pelo jornalista Elio Gaspari no livro A ditadura derrotada: ‘Nessa hora tem de agir com muita inteligência para não ficar vestígio nessa coisa’, afirmou Giesel ao comentar a prisão e a morte de um grupo de sete pessoas, vindas do Chile e da Argentina, capturadas no Paraná.

Comandando uma rede de informantes do CIE, Doutor César e Doutor Pablo, segundo Marival, também foram responsáveis pelo planejamento e execução de uma megaoperação em inúmeros pontos do País para liquidar, a partir de 1973, os militantes das várias tendências da Ação Popular (AP), movimento de esquerda ligado à Igreja Católica. Segundo o ex-agente, entre os mortos estão Fernando Santa Cruz Oliveira, Paulo Stuart Wright, Eduardo Collier Filho e Honestino Monteiro Guimarães, militantes da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), movimento dissidente da AP. Irmão do reverendo Jaime Wright, Paulo Stuart foi preso e morto em São Paulo, em 1973. Os demais militantes também tombaram naquele ano e em 1974, no Rio. Antes de morrer, Honestino disse a amigos que estava sendo caçado pelos órgãos de informação do Exército em todo o País.

Operação Limpeza – Narradas por Marival, as histórias dos doutores do CIE parecem não ter fim. Em 1974, quando trabalhava em São Paulo, ele diz ter visto o coronel Brant chegar ao DOI-Codi com os dirigentes comunistas José Roman e David Capistrano, presos quando tentavam regressar ao Brasil pela fronteira do Uruguai. Segundo ele, ambos foram transferidos para a Casa de Petrópolis, onde morreram assassinados.

Em 1977, quando servia no Batalhão de Infantaria de Selva, Marival diz ter deparado novamente com Brant, que se dirigia ao Araguaia numa operação de controle para evitar a localização dos corpos dos guerrilheiros do PCdoB. Em 1981, a Operação Limpeza foi reforçada com a transferência de André Pereira Leite Filho, o Doutor Edgar, oficial do DOI-Codi de São Paulo, para o CIE de Brasília. Ele integrava a tropa de choque de Aldir Santos Maciel, que eliminou oito dirigentes do Comitê Central do PCB.

Preocupados com uma caravana liderada pelo advogado Paulo Fonteles, que se deslocou para o Araguaia na tentativa de localizar as ossadas de guerrilheiros, os agentes do CIE montaram uma operação, no início da década de 80, para amedrontar os moradores que pudessem fornecer informações sobre possíveis cemitérios clandestinos. De acordo com o relatório Hugo Abreu, encontrado entre a papelada do general Bandeira, a Operação Limpeza começou em janeiro de 1975 com ‘as transferências dos corpos dos guerrilheiros enterrados junto às bases militares do Exército para diversos outros pontos’. Essa política de ocultação de ossadas se estendeu para outras regiões próximas onde tombaram guerrilheiros de outras organizações.

Segundo Marival, em 1980 o Doutor Edgar comandou, por exemplo, uma expedição que retirou de uma fazenda em Rio Verde, em Goiás, as ossadas de Márcio Beck Machado e Maria Augusta Thomas, integrantes do Molipo (Movimento de Libertação Popular), mortos 1973 num confronto com agentes do CIE. De acordo com o fazendeiro Sebastião Cabral, os corpos enterrados em sua propriedade foram exumados por três homens em 1980, que deixaram para trás pequenos ossos e dentes perto das covas.

O cortador de ossos – Ao ser transferido para o CIE de Brasília, em 1981, Marival foi trabalhar ao lado de um dos homens mais sádicos da ditadura: o cabo Félix Freire Dias, cujos codinomes eram ‘Doutor Magro’ e ‘Doutor Magno’. As confissões do agente do CIE, famoso por sua atuação na Casa de Petrópolis, no Rio, contribuíram para que Marival pedisse demissão do Exército, sem nenhum rendimento, no final do governo João Baptista Figueiredo (1979-1985). Durante a rotina de trabalho no CIE, Félix contou a Marival que cortava os corpos das vítimas em Petrópolis. Entre elas estava o ex-deputado federal Rubens Paiva, preso no dia 20 de janeiro de 1971, no Rio de Janeiro, por agentes do DOI-Codi.

‘O Doutor Magno sentia um prazer mórbido em me contar que apostava com outro carcereiro quantos pedaços ia dar o corpo de determinado prisioneiro executado. As impressões digitais eram as primeiras partes a serem cortadas ‘, conta Marival. O destino daqueles corpos também foi relatado por Doutor Magno: ‘Ele me disse que os pedaços dos corpos, cortados nas juntas, eram colocados em sacos plásticos e enterrados em lugares diferentes para dificultar a localização.’ Segundo Marival, a frieza e a morbidez de Félix, que começou no DOI-Codi como carcereiro, lhe valeram uma promoção para a tropa de elite do CIE. Designado para a Guerrilha do Araguaia, integrou-se à tropa de execução do Doutor Luquine, codinome do coronel Sebastião Curió Rodriguez. Do mesmo esquadrão passou a fazer parte ainda o cabo José Bonifácio Carvalho. Conhecido até hoje como Doutor Alexandre, Carvalho entrou nas fileiras do Exército no Pará e chegou ao CIE devido ao seu desempenho nos primeiros combates no Araguaia. ‘Os dois faziam todo o tipo de trabalho sujo para o Curió, que os presenteou com a presidência e a vice-presidência da Cooperativa de Garimpeiros de Serra Pelada.’

De acordo com um documento obtido por ISTOÉ, em 1º de março de 1985, às vésperas da posse de José Sarney, Félix deixou o Exército, aos 36 anos. No ano seguinte, em 31 de abril, assumiu a vice-presidência da cooperativa Mista de Garimpeiros de Serra Pelada, cujo presidente era o Doutor Alexandre. De 1993 a 1995, Doutor Magno trabalhou na Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). ‘O Félix andava com um uniforme da Polícia Federal e junto com o Doutor Alexandre formava a dupla de Curió que aterrorizava os garimpeiros em Serra Pelada’, afirma Jane Resende, presidente da União Nacional dos Garimpeiros.

A história do Doutor Alexandre também é conhecida pelos garimpeiros. Após o término da Guerrilha, ele foi escalado por Curió para lotear as terras que deram origem a Curionópolis, cidade cujo atual prefeito é o próprio Curió. A distribuição de terras fez parte do projeto do Exército para ocupação do território por agentes do CIE, a fim evitar a localização dos corpos.

Disposto a esquecer o passado, o coronel Paulo Malhães, que entrou para o Exército em 1958, também foi para a reserva no dia 1º de dezembro de 1985, aos 47 anos, no apagar das luzes do regime militar. A mesma preocupação não teve, porém, seu ex-companheiro José Brant, que até 2001 ocupava um cargo de assessor especial da atual diretora da Abin, Mariza Diniz. Até hoje ele está na folha da Agência.

Um homem de decisões corajosas

Nos últimos 20 anos, Marival Chaves Dias, ex-agente do DOI-Codi, tem tomado decisões corajosas. Em 1985, com o fim do regime militar, pediu demissão do Exército, sem vencimentos, depois de 25 anos de serviços prestados em órgãos de repressão. Em janeiro deste ano, resolveu finalmente revelar o nome dos militares que executavam presos políticos.

ISTOÉ – Por que o sr. só deixou o Exército após o fim do regime?

Marival Dias – Todos os militares que se insurgiram contra a ditadura, sem exceção, foram mortos.

ISTOÉ – Mas parece que o cabo Anselmo está vivo.

Marival – Ele se tornou um infiltrado especial, porque até os militares infiltrados eram eliminados. Era tão sem escrúpulos que delatou a própria mulher, grávida, morta pela repressão.

ISTOÉ – Por que só agora o sr. resolveu revelar o nome dos matadores que sabem dos cemitérios clandestinos?

Marival – Para garantir a vida de minha família. Soltei aos poucos para perceber a reação. Revelei em solidariedade aos que não podem enterrar seus entes.

ISTOÉ – O sr. sofreu represálias?

Marival – Numa situação absurda da Justiça, estou perdendo minha casa, único bem da família, só por ter atrasado em dez dias uma prestação.

ISTOÉ – E o que tem a ver isso com o seu passado?

Marival – O processo foi politizado com a anexação de uma reportagem em que eu falava dos porões do DOI.

ISTOÉ – E não dá para reverter?

Marival – Está difícil. O autor da ação morreu e o processo não foi extinto. Minha advogada, Lucineide Caliari, depois de receber os honorários, perdeu os prazos de defesa no STJ.’

RODAPÉ