Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Sylvia Moretzsohn

ECOS DA GUERRA

"Como se transmite o horror da guerra?", copyright Parto de Idéias (www.partodeideias.org), 2/6/03

"Um furo mundial – o anúncio do bombardeio americano a Bagdá, às 5h30 do dia 20 de março – transformou inesperadamente o repórter Carlos Fino, da Rádio e Televisão Portuguesa, numa estrela. Ou vedeta, como ele costuma dizer, com o constrangimento de quem não se sente à vontade nessa posição. Mas foi esse súbito prestígio internacional que chamou a atenção do nosso público para a qualidade de seu trabalho e, finalmente, proporcionou a vinda do repórter ao Brasil. Desprovido de qualquer vestígio daquela arrogância tão comum a jornalistas, especialmente quando famosos, Carlos Fino passou por São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, numa sequência de entrevistas e palestras que, durante três semanas de maio, conheceu poucos momentos de folga. Dia 22, numa iniciativa conjunta das escolas de Comunicação Social da UFF e da UFRJ, participou de debate com estudantes e professores de jornalismo no Centro de Filosofia e Ciências Humanas, no campus da Praia Vermelha. Ali, e nas entrevistas que se seguiram, falou sobre sua trajetória como correspondente internacional, sua experiência nas guerras do Iraque e do Afeganistão e sobre um dos mais importantes dilemas do jornalismo atual, que pode ser definido através de uma proposta e uma indagação: a tentativa de equilibrar informação e espetáculo, ou como se transmite o horror da guerra?

?Eu não sei dar uma resposta precisa?, diz Carlos, depois de ter ele próprio apresentado a pergunta. ?Essa é uma das contradições de que são feitas as nossas coisas, não é? Brecht dizia: ?homem, olha bem nos olhos do outro homem e verás nele um irmão. As contradições que te consomem não são boas nem más, são a tua própria condição?. E assim vivemos, quer dizer, como é que damos o horror da guerra sem imediatamente sermos acusados de estarmos a comungar da sociedade do espetáculo e a explorar o sentimento alheio? Eu vou pôr a mão que vi decepada no mercado de Bagdá quando os americanos provocaram mais uma vítima colateral? Ponho a mão para provocar desgosto e repulsa ou escondo essa imagem, não a edito, para não ferir os sentimentos das pessoas??

Capitães de abril, famoso filme sobre a Revolução dos Cravos, começa com cenas assim: corpos mutilados, calcinados, de adultos e crianças negros, tão desfigurados que eventualmente poderiam ser confundidos com tocos de árvore, a não ser pelas moscas que lhes pousam em cima. Corpos inertes, imagens silenciosas: gente massacrada nas guerras coloniais que consumiam os jovens portugueses e foram um dos motivos da revolta que culminou na derrubada do regime. Tudo depende do contexto em que a imagem se apresenta, mas sempre restará a dúvida entre a intenção de comunicar e o sentido que se apreende. Pois o contexto maior é o mundo midiático, essa mistura de jornalismo, cinema e show de variedades que dissolve significados. Imagens chocantes conseguem ainda alertar para a barbárie e mobilizar as pessoas contra a guerra ou são apenas mais uma entre tantas que se precipitam nas telas, e que de tão repetidas tornam o público insensível ou produzem nele uma excitação mórbida?

Mal-estar da pós-modernidade, ?cujo drama é justamente a ausência de dramatismo, e não havendo dramatismo parece que não há autenticidade, e perdemos todas as referências, perdemos todos os valores, parece tudo possível. A guerra já não é o que era, porque é cada vez é mais rápida, é mais rápida do que uma telenovela, há uma tentativa de comprimir a própria guerra à velocidade de hoje, em que tudo se desfaz e refaz e que nada conta, nada é estável?. No Iraque, houve de fato momentos de risco enorme, como quando do inesperado ataque de um tanque americano ao hotel dos jornalistas ou quando a equipe da RTP foi cercada e espancada por um grupo de iraquianos. ?Mas fora isso você tá na varanda do hotel, é guerra, você olha de cima pra baixo como um deus, está vendo o que se passa lá embaixo, é como no Universal Studios, você paga o bilhete, vai para o teatro e vê os caras de Hollywood encenar os momentos mais vivos dos grandes filmes de ação. Indiana Jones… é um pouco isso, há qualquer coisa de imoral nisso e há qualquer coisa de estranho, a guerra também já não é o que era?.

Nenhum mal-estar, porém, para quem está embedded – não episodicamente, como ocorreu nessa guerra com os repórteres americanos que seguiam junto às tropas, mas estruturalmente, em seu cotidiano como profissionais adequados às regras das empresas de comunicação, que alimentam o espetáculo. É o que permite a Ana Paula Padrão anunciar no Jornal da Globo ?os melhores momentos da guerra no Iraque?, mais ou menos ao estilo de Cid Moreira, que, na primeira guerra do Golfo, em 91, exultava diante das imagens dos mísseis riscando o céu de Bagdá: ?parece um espetáculo de fogos de artifício?. ?Na realidade, esta é uma imagem que se impõe?, diz Carlos, ?porque à primeira vista, para quem vê ao longe, é um fogo de artifício. Só que é um fogo de artifício mortal, é isso que é preciso acrescentar?. E não se acrescenta. A espetacularização teria, portanto, vencido a realidade? ?Isso é uma pergunta tão genérica… eu acho que a espetacularização é hoje a linguagem dos mídia, e da televisão em particular. Mas o desafio é justamente perceber isso, ter isso em conta, se for possível até utilizar, mas manter qualquer coisa para além disso, e apesar disso. Manter e conseguir dar o dramatismo e a tragicidade das situações mesmo neste ambiente em que nos querem fazer crer que já não há drama e já não há tragédia?.

Em suma, o desafio que representa a busca do equilíbrio para conjugar a emoção e o envolvimento do repórter à precisão da informação que ele transmite, as diferentes visões de cada história e, sobretudo, a busca do equilíbrio entre o espetáculo, sem o qual não se atrai a atenção do público, e a informação, sem a qual o jornalismo não tem razão de ser. O desafio, portanto, de preservar a capacidade do jornalista em oferecer resistência à voracidade da máquina midiática na qual ele está inserido como profissional, recuperando a idéia de que uma redação de jornal é um campo de luta. ?Eu julgo que isso é importante porque há sempre a tentação, dada a facilidade dos mídia hoje e a maneira como as coisas são encaradas às vezes nas redações, há regras não escritas que são às vezes mais importantes que as escritas, certos hábitos, certas atitudes que tendem a desconsiderar as matérias, porque nada mais perecível do que uma imagem, uma imagem esgota-se no momento em que é vista, e queremos sempre mais imagens e queremos sempre mais crônicas, e há assim uma idéia dos editores, dos diretores, da estação, de que tudo vale, tudo passa e que nada é importante. E é essa idéia que é preciso contrariar com o desejo de autenticidade, um culto dessa autenticidade e um culto também da procura de aprofundamento dos temas, nunca ir para um tema com a noção de que as coisas podem ser feitas facilmente, pelo contrário, considerar que a realidade é sempre mais complexa do que nós suspeitamos, e isso obriga-nos a estudar e a aprofundar os temas antes de os poder transmitir?."

TIROS EM COLUMBINE

"À procura do inimigo", copyright Folha de S. Paulo, 28/05/03

"Uma das melhores coisas de ?Tiros em Columbine?, documentário sobre a cultura da violência e do armamentismo nos Estados Unidos, é que seja um americano quem tenha feito o filme.

E que americano! O diretor Michael Moore aparece o tempo todo na tela. É um daqueles brancos obesos, de óculos grossos, camisa xadrez e boné de beisebol, que, com nossa arrogância brasileira, teríamos tudo para chamar de perfeito exemplo do ianque babaca. Ou pior. Como ele está muitas vezes com um rifle na mão para demonstrar sua tese de como é fácil adquirir armas nos Estados Unidos e sair dando tiros em inocentes-, Michael Moore parece, ele próprio, um sério candidato a tornar-se serial killer em algum momento.

Sangue-frio ele tem, sem dúvida. Nunca perde a oportunidade de fazer perguntas desagradáveis e provocativas. Assim, depois de esperar um bocado, ele consegue entrevistar a assessora de relações públicas de uma rede de supermercados, a K-Mart.

Foi numa loja dessas, em Littleton, que dois garotos compraram as balas que usaram para matar 14 colegas e um professor do colégio em que estudavam. Ficamos sabendo que as balas são vendidas sem nenhum controle. A câmera filma, então, o ato de protesto organizado por Moore. Ele está na sede nacional da rede de supermercados, com dois sobreviventes da tragédia (um deles ficou tetraplégico), para ?devolver a mercadoria?.

Chega a relações-públicas do supermercado, sem saber exatamente que tipo de louco é aquele; Moore explica o propósito da visita. Hipócrita e embaraçada ao mesmo tempo, a assessora diz sentir pena das vítimas; está tentando, é claro, livrar-se o mais rápido possível do visitante importuno. Sorrindo, sempre simpático, Michael Moore lhe diz que não está ali para ouvir enrolação de assessor de imprensa.

O aspecto meio maluco do documentarista ajuda-o a se enturmar com seus, digamos, adversários: vendedores de armas, paranóicos da defesa pessoal e os adeptos da Associação Nacional do Rifle -cujo presidente, o ator Charlton Heston, é entrevistado por Michael Moore no trecho mais criticado do filme.

Defensor do direito de cada cidadão americano à posse de armas de fogo, Charlton Heston é uma figura bastante antipática. Mas muitos críticos observaram que Michael Moore errou a mão ao entrevistá-lo, e que o velho ator fica parecendo mais inofensivo e frágil do que seria de esperar. É verdade.

E é também verdade que, fazendo um documentário muito militante e nada imparcial, Michael Moore nos deixa várias vezes desconfiados de que está manipulando dados, cenas e entrevistas. Não é difícil notar cortes estratégicos de cena, argumentações simplificadas e expedientes grosseiros para demonstrar determinada idéia, como o de sair andando pelas ruas de um bairro tido como perigoso para mostrar que não existe tanto perigo assim.

Mas fiquei pensando se o principal defeito de ?Tiros em Columbine? não seria, no fundo, mais a ambiguidade do que o empenho manipulador.

Durante boa parte do documentário, somos levados a crer que seria necessário proibir a venda indiscriminada de armas nos Estados Unidos. É assim que figuras como Charlton Heston, defensores da tese oposta, surgem sob uma luz extremamente antipática.

Mais adiante, o filme mostra que no Canadá é livre a venda de armas; contudo, são baixíssimos os índices de criminalidade naquele país. O filme de Moore envereda por outra explicação: haveria uma ?cultura do medo? nos Estados Unidos, uma espécie de paranóia generalizada. Aparece um breve e divertido resumo de todos os medos do americano comum: índios, marcianos, abelhas, cobras, russos, colesterol, tudo o que quisermos, sugere Moore, numa espécie de máquina que estimula os cidadãos à violência e ao consumismo.

Está certo. Mas não sei se o filme consegue ficar livre da paranóia que denuncia. A perseguição de Moore a Charlton Heston é, nitidamente, a tentativa de achar um bode expiatório que encarnasse essa conspiração belicista americana. As diversas cenas em que o documentarista aparece procurando alguma pessoa física responsável pela cultura da violência são simétricas àquelas em que puras idéias, caricaturas, desenhos animados e colagens de noticiário ocupam o primeiro plano. Entre o vilão clássico e um anônimo ?sistema?, Michael Moore está à procura de seu inimigo.

De certo modo, é como se sua própria agressividade ficasse um tanto à solta. Dentro de uma agência bancária, com um rifle na mão, ou ?invadindo? casas numa cidade do Canadá para mostrar que lá as pessoas não trancam as portas, o diretor parece em vários momentos flertar com a idéia de que ele poderia, também, representar algum tipo de ameaça. Isso às vezes é irônico, às vezes parece inconsciente.

O fato de Moore aparecer diante das câmeras durante a maior parte do filme tem outra ambiguidade. A feiúra, a insistência e o bom humor do documentarista parecem servir de contraponto ao mundo de aparências certinhas, hipócritas e intimidadas de tantos assessores de relações públicas e apresentadores de TV. Ao mesmo tempo, Moore tem tudo para se tornar também parte do espetáculo; como se fosse um misto de Bussunda com Ernesto Varela (o repórter cínico encarnado por Marcelo Tas), ele bem que poderia fazer parte de um programa cômico na televisão.

Tanto melhor. Sem essas ambiguidades, ?Tiros em Columbine? ficaria bem menos interessante; e, ainda que possamos acusá-lo de manipular o público, aposta muito mais na sua inteligência."

MÍDIA, PAPA & PAZ

"Imprensa, rádio e tevê devem trabalhar pela paz, diz o papa", copyright O Estado de S. Paulo, 2/06/03

"O papa João Paulo II pediu ontem aos meios de comunicação que trabalhem para a paz no mundo, respeitando a liberdade e a justiça. O apelo foi feito diante de milhares de peregrinos, na Praça São Pedro. O papa lembrou, ainda, os 40 anos de publicação da encíclica de João XXIII, Pacem in Terris.

Como ontem a Igreja celebrava o Dia Mundial dos Meios de Comunicação Social, o papa disse ser importante refletir sobre o papel desses veículos ?na construção de um mundo pacífico, fundado na verdade, na justiça, no amor e na liberdade?.

O pontífice pediu à imprensa, às rádios e televisões que tragam uma ?contribuição válida para a paz, eliminando as barreiras da desconfiança, promovendo a compreensão e o respeito recíproco e favorecendo a reconsideração e a misericórdia?.

No texto, similar ao divulgado em razão das festas de São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas, o papa disse que a busca da verdade pressupõe, ao lado da honestidade profissional, a existência de liberdade plena. (EFE)"