Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Brechas da muralha eletrônica

Toda organização jornalística precisa de uma estratégia para as mídias sociais. Até a agência de notícias Xinhua, controlada pelo governo da China, passou recentemente a publicar boletins nos microblogs Weibo – acessados por 300 milhões de internautas. As empresas chinesas que operam serviços no Weibo são obrigadas pelo governo a censurar e monitorar seus usuários, bloqueando conteúdo politicamente sensível. Mas apesar dos esforços de censura, classes extrovertidas da China se mostram mais astutas do que o sistema, recorrendo a alusões literárias, palavras em código e insinuações para transmitir informações detalhadas da mídia estrangeira sobre o suposto assassinado do empresário britânico Neil Heywood, atribuído a pessoas ligadas a Gu Kailai, mulher do ex-secretário do Partido Comunista (PC) de Chongqing, Bo Xilai, cuja queda ocasionou a maior crise na China desde a repressão na Praça Tiananmen, em 1989.

A censura já produziu resultados bizarros. Depois de um prolongado silêncio sobre o tema, há duas semanas, às 23 horas de Pequim, a Xinhua tentou tuitar um boletim oficial anunciando que Bo fora destituído de seus cargos e era investigado por “graves infrações disciplinares”. O Sina Weibo, o mais popular servidor do Weibo, censurou a atualização da agência oficial.

Furo disputado. O uso do nome de Bo disparou o sistema automático de censura da empresa – programado, ironicamente, de acordo com ordens do governo central que impunham o bloqueio a todas as mensagens com o nome de Bo. Ao mesmo tempo, o Sina Weibo publicou o texto do mesmo boletim da Xinhua em seu canal de notícias. Cinco minutos mais tarde, sem dúvida como resposta a telefonemas irados, o microblog desbloqueou a atualização da Xinhua. A agência oficial publicou então uma mensagem (posteriormente removida) queixando-se do roubo do seu furo de reportagem por parte do Weibo – o que provocou uma saraivada de comentários sarcásticos dos internautas mais irônicos, que brincavam com o fato de o aparato de propaganda do governo ter se tornado vítima das próprias regras.

“Campo de batalha” da opinião pública

Os sistemas de censura e propaganda da China podem ser complexos e multifacetados, mas obviamente carecem de uma coordenação competente. Em artigo publicado no Guardian, o artista dissidente Ai Weiwei declarou que, por mais que o sistema chinês de censura à internet seja alvo da inveja de burocratas de todo o mundo, os líderes de Pequim precisam compreender que, a longo prazo, “será impossível manter a internet sob controle, a não ser que cortem de vez o acesso à rede”. Ele estava parcialmente correto: embora as táticas do governo chinês sejam desajeitadas, provavelmente fadadas ao fracasso, funcionam bem o bastante para manter ao PC esse poder no curto e médio prazos.

Ao analisar o papel desempenhado pelas mídias sociais na mais recente luta de poder na China, é importante compreender que a derrocada política de Bo fortalece o poder do governo central, liderado pelo presidente Hu Jintao e pelo premiê Wen Jiabao. Bo era um desafiante popular – e populista – para o status quo político e econômico. Construiu para si uma base de poder independente em Chongqing. Sua ideologia neo-maoísta conquistou seguidores entre nacionalistas conservadores e os mais pobres da classe urbana, que responsabilizam a política econômica atual pelos níveis inaceitáveis de desigualdade. Bo representava uma ameaça política para as reformas de liberalização econômica e financeira que Hu e Wen parecem determinados a implementar antes de deixar o poder, em outubro.

O blogueiro chinês Michael Anti gosta de descrever o Weibo como um “campo de batalha” da opinião pública. Depois que o microblog se tornou parte da vida social de muitos chineses, o eventual fechamento do serviço provocaria a indignação generalizada. Em vez disso, a estratégia do governo é “ocupar” o Weibo para derrotar desafiantes como Bo no tribunal da opinião pública.

Público é incentivado a relatar abusos

Quase toda a semana, reportagens são publicadas na China envolvendo aquilo que a mídia oficial do país chama de “tópicos quentes da internet”: matérias contando como cidadãos de determinadas regiões usaram o Weibo para denunciar delitos cometidos por autoridades locais. Isso chama a atenção do regime para problemas que podem então ser solucionados, dando a Pequim a aparência de estar mais preocupada com o povo do que os funcionários dos governos regionais. Os chineses conseguem até usar a vigilância cibernética – conhecida como “mecanismo de busca de carne e osso” – para provocar a renúncia de funcionários do governo que se portam mal. Às vezes, leis e estruturas reguladoras são alteradas e até reformas são implementadas nas políticas como resultado da campanha dos internautas.

Chamo o novo estilo chinês de administração orientada pelas informações de “autoritarismo em rede”. Graças à internet, em geral, e às mídias sociais, em particular, os chineses têm agora um mecanismo para responsabilizar as autoridades por abusos cometidos sem que nenhuma reforma política ou legislativa tenha ocorrido. No caso do escândalo Bo-Gu-Heywood, as mídias sociais “estão obrigando o governo a apresentar um nível de transparência na sua maneira de lidar com a situação que nunca existiu”, explica o blogueiro e empresário de mídia Jeremy Goldkorn, que mora na China desde a década de 90. O real efeito do Weibo pode ser o de ajudar o PC a centralizar novamente seu poder à custa dos funcionários locais e regionais.

As empresas do Weibo ficam todas na capital. “Se um governo local quiser bloquear ou apagar algum tipo de conteúdo, é preciso enviar um funcionário de avião até Pequim”, explica Anti. O Weibo criou um ciclo no qual o público é cada vez mais encorajado a usar as mídias sociais para relatar abusos locais. Ao mesmo tempo, as consequências dos eventuais esforços para a organização de protestos, reuniões ou movimentos cujo objetivo seja criticar ou alterar o governo central continuam as mesmas desde 1989.

Weibo, um espaço animado

No início de 2011, dezenas de pessoas que retransmitiram mensagens pedindo “protestos de jasmim”, inspirados pela revolução da Tunísia, foram interrogadas ou detidas. As mensagens publicadas no Weibo por intelectuais que pediam reformas políticas são rapidamente removidas, sem alcançar o status viral das publicações a respeito de Bo. Os jornalistas chineses têm sido amordaçados com um rigor sem precedentes para que não se dediquem ao jornalismo investigativo.

Enquanto isso, Pequim está fazendo o possível para ajudar os internautas chineses a lembrar quem está no comando. Vários sites populares dos defensores maoistas de Bo foram fechados ou suspensos. O Diário do Povo emitiu um ultimato contra os rumores divulgados na rede e as pessoas que os faziam circular. A mídia profissional recebeu instruções rigorosas de não publicar notícias não autorizadas a respeito do caso Bo-Gu-Heywood. Mais de mil pessoas foram detidas por “espalhar rumores”.

Na semana passada, o sistema da “Grande Muralha Eletrônica” que costuma bloquear sites estrangeiros presentes na lista negra do governo chinês impediu o acesso a todos os sites estrangeiros. Desde então, blogueiros e especialistas na indústria da internet relatam que o nível geral de censura aos sites aumentou perceptivelmente. As mensagens publicadas por usuários do Weibo com mais de 10 mil seguidores serão revisadas uma a uma. O governo está também pressionando as empresas do Weibo a implementar até meados do ano um sistema de inscrição que exija o nome verdadeiro dos usuários, significando que, ao menos em tese, os usuários do microblog terão muito mais dificuldade para esconder sua identidade das autoridades, ainda que continuem protegidas do público em geral.

O paradoxo da internet na China está no fato de, apesar de todas estas medidas, o Weibo continuar a ser um espaço animado, no qual a maioria dos internautas chineses se sentem mais livres do que nunca para debater e discutir questões de interesse público. Essas tendências são, a longo prazo, motivo de muito otimismo quanto ao significado da internet para o futuro político da China. Como diz Anti: “A mudança política virá de fatores externos à internet, mas graças à internet as pessoas estarão mais bem preparadas para fazer algo positivo com (a mudança política).”

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[Rebecca Mackinnon, é jornalista da Foreign Policy]