Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A cerveja antes do sono eterno

O mundo do noticiário policial, apesar de grave, ou talvez por ser muito grave e severo, está quase sempre cercado de equívocos, ironias erros e piadas. Também vivi este mundo na década de 70, do século passado, quando fui editor da página policial e, mais tarde, chefe de reportagem do Diário de Pernambuco. Era o tempo em que as faculdades de jornalismo ainda estavam na fase embrionária. Encontrei na equipe dois repórteres analfabetos que foram contratados, a princípio, como informantes espertos e trabalhadores. Pouco dotados de inteligência, tinham, porem, um incrível senso investigativo.E coragem, muita coragem. Trabalhavam sempre, mas eram convocados nas horas mais difíceis, quando o noticiário se tornava tenebroso.

Uma tarde cheguei no jornal e já havia a informação de que um bancário fora assassinado com um tiro no pescoço, num cabaré do bairro do Recife. Pedi a um deles – mais tarde se transformou no modelo do personagem Félix Gurgel, do meu romance A Dupla Face do Baralho – que levantasse a matéria. Na volta tentou rascunhar um texto, tudo em caixa alta, onde dizia que o tiro fora na região glútea. Chamei-o para uma conversa – “Enfim, onde foi o tiro?” “Na região glútea, seu Carrero.” “Mas você diz que a bala raspou o queixo da vítima, impossível.” “Como impossível? O pescoço não faz glut, glut, glut?” “Que bela descoberta, rapaz! É melhor esquecer este assunto.” Fiquei me perguntando como aquilo podia acontecer num jornal tão importante. Mas ele permaneceu na equipe.

Outro dia, ele foi cobrir um almoço de confraternização entre políticos. O texto era soberbo: “À direita da mesa, comeram o governador e os deputados; à esquerda, comeram os vereadores e os secretários, mas, na falta de cadeiras, o secretário de Saúde comeu em pé, sem guardanapo”.

Num acidente de trânsito, entrou em pânico porque um caminhão Mercedes chocou-se com outro no centro do Recife. Não era para menos. Um dia antes havíamos conversado sobre a não repetição de palavras no texto. Ele escreveu: “O Mercedes, placa 2428, bateu ontem no seu colega…” E ao noticiar o assassinato de uma mulher pelo marido traído, que a encontrou na cama com outro, começou assim: “Pelo simples fato de encontrar a mulher prevaricando…”

Retrato falado

Portanto, vou recorrer ao meu antigo repórter para iniciar a notícia: pelo simples fato de denunciar o roubo dos políticos maranhenses, o jornalista Décio Sá foi assassinado a tiros em São Luís (MA), no meio da semana, quando encerrava mais um dia de trabalho, preparando-se para voltar a casa, após beber um pouco, naquilo que a crônica policial chamaria de “uma cerveja antes do sono eterno”. Ainda estava na mesa quando o criminoso se aproximou atirando. Foram três tiros na cabeça e dois nas costas.

Idealista, Décio acreditava, sinceramente, nos bons propósitos da imprensa e, por isso, denunciava os maus políticos, em princípio no jornal Estado do Maranhão e, mais tarde, também no blog que criou para não deixar o povo esquecer o assalto aos cofres públicos. Ou ao dinheiro do povo. Nunca perdou os malandros partidários, sob qualquer sigla ou governo – federal, estadual ou municipal. Trabalhava incansavelmente.

O perfil de Décio era o de um homem desassombrado. E, é claro, morreu por isso. Conhecia, milimetricamente, a política do Maranhão. Tornou-se uma referência do jornalismo político do Nordeste. A governadora Roseana Sarney exigiu que a polícia identificasse e prendesse, imediatamente, os criminosos. O bandido que puxou o gatilho – chegaram três ao local do crime – não teve sequer o cuidado elementar de usar algum disfarce. Chegou ao bar Estrela do mar na garupa de uma motocicleta, sem chapéu ou boné, saltou e dirigiu-se ao banheiro. Em seguida foi á mesa de Décio e, sem dizer uma palavra , fez cinco disparos. Fugiu ainda na moto e, segundo a imprensa maranhense, saltou da moto nas dunas para continuar num veículo cujas placas não foram anotadas.

A polícia divulgou, no dia seguinte, o retrato falado do criminoso. Mas já na quinta-feira [26/4] prendia o principal suspeito. Um recorde no Brasil. O suspeito foi identificado como Fábio Roberto Cavalcanti Lima, um homem denunciado por outros crimes em São Luís.

Ética bandida

Esse é pelo menos o terceiro assassinato de jornalistas no Nordeste desde o ano passado. Em abril de 2011, foi morto a tiros o jornalista Luciano Leitão Pedrosa, em Vitória de Santo Antão, no agreste de Pernambuco. Sua morte, segundo a polícia, está ligada ao tráfico de drogas, que ele denunciava, sistematicamente no seu programa Ação e Cidadania, na TV Vitória.

Outra vítima da força política foi o jornalista Ednaldo Filgueira, assassinado na Serra do Mel, no Rio Grande do Norte. Ele costumava denunciar os desmandos no blog que mantinha há vários meses. Logo a polícia prendeu o suspeito Rafânio de Brito Azevedo, denunciado pelos colegas.

No mundo da criminalidade é assim: bandido entrega bandido. Igual ao Mercedes que bateu no seu colega, do centro do Recife. Lembram?

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[Raimundo Carrero é jornalista e escritor, autor de O amor não tem bons sentimentos, As sombrias ruínas da alma e A minha alma é irmã de Deus]