Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os poderosos mandam no poder judiciário?

Na primeira audiência de instrução e julgamento dos 14 processos ajuizados pelos irmãos Romulo Maiorana Júnior e Ronaldo Maiorana contra mim, no dia 27 de junho de 2005, seus advogados contestaram o meu direito de apresentar testemunhas. Eu teria apresentado o rol de testemunhas fora do prazo da lei. Contestei essa alegação. O representante do Ministério Público do Estado reconheceu a justeza da minha posição. Superei assim a primeira barreira. Surgiu então um segundo empecilho.

Ronaldo Maiorana, presente pela primeira e última vez às audiências, se insurgiu contra a oitiva de sua mãe. Indiquei como minha testemunha Lucidéa Batista Maiorana, principal acionista das Organizações Romulo Maiorana. Seus advogados sustentaram que a mãe do autor da ação (querelante) não podia testemunhar contra os interesses do filho e de sua corporação empresarial.

Incorporando tal posição, entendeu o representante do MP, na condição de fiscal da lei, “da desobrigação da mesma vir depor em Juízo em fato que envolve ente querido seu, como testemunha do querelado”, manifestando-se pela sua exclusão. Admitiu, porém, que a decisão final ”cabe à magistrada que preside o processo, que na pior das hipóteses poderia, querendo, ouvir a qualquer tempo qualquer pessoa como testemunha no presente feito buscando o esclarecimento da verdade”.

Ouvindo as ponderações, a juíza Maria Edwiges de Miranda Lobato (promovida neste ano ao desembargo) decidiu ouvir as testemunhas arroladas, “de vez que é necessário para o esclarecimento da verdade, que a Sra. Lucidea Maiorana será ouvida como testemunha informante do Juízo, face o parentesco com o querelante, e a outra testemunha através de carta precatória, a qual fora fixado prazo de 60 dias para o seu cumprimento”.

Vencido o segundo incidente criado por Ronaldo Maiorana, a sessão foi encerrada, mantendo-se a testemunha por mim indicada.

Dois dias depois da audiência, portanto, a juíza da 16ª vara criminal de Belém deu o seguinte despacho:

“Após análise dos presentes autos, por este Juízo, verificando o grau de parentesco existente entre a testemunha Lucidéa Batista Maiorana e o querelante Ronaldo Maiorana, decido pela dispensa da oitiva da testemunha Lucidéa Batista Maiorana, face não ser imprescindível seu depoimento como testemunha informante”.

Opus então exceção de suspeição da julgadora. Argumentei que a súbita mudança de posição teve como eixo o mesmo argumento. Num primeiro momento esse argumento servia para avalizar a testemunha, mesmo sendo parente do querelante. Já num segundo momento, apenas 48 horas depois, servia para rejeitar a testemunha, por ser parente do autor da ação.

Valores subjetivos passaram a prevalecer sobre fundamentos jurídicos, evidenciando simpatia da julgadora por uma das partes da demanda e assim contaminando de vício insanável a tutela jurisdicional por ela exercida.

A juíza não aceitou a arguição. Alegou que, “após minuciosa leitura de todos os documentos que compõem os autos”, entendeu que a testemunha “estaria desobrigada de depor contra os interesses do Sr. Ronaldo Maiorana e contra os próprios, considerando que é de conhecimento público que a referida Sra. integra o grupo societário do qual também faz parte seu filho, o Sr. Ronaldo Maiorana”.

Também entendeu que o depoimento dessa testemunha “não traria informações capazes de trazer dados que iluminassem o julgamento relacionado aos fatos trazidos pelo querelante e o querelado (…). O juízo sobre a importância da prova compete ao Magistrado!”, exclamou, com o acento e tudo.

Acrescentou que a dispensa por si determinada “não se deu apenas em razão do parentesco próximo, que confere a [à] mesma compreensível interesse da lide, Deu-se, também, por entender o Juízo que a mesma nada poderia declarar que possibilitasse a esta Magistrada, com base em tal procedimento, prolatar sentença dentro das normas jurídicas que são exigidas a todos aqueles que exercem a função de julgar”.

A exceção foi então à instância superior, sendo submetida às Câmaras Criminais Reunidas do Tribunal de Justiça, que a receberam, mas, unanimemente, a rejeitaram.

Contra tal decisão opus, em tempo hábil, recurso especial, cujo seguimento foi denegado pela vice-presidente do tribunal, com poderes delegados.

O acórdão que rejeitou a exceção de suspeição teve o seguinte fundamento:

“Não há nulidade na decisão de indeferimento da oitiva da mãe do querelante como testemunha informante, pois a magistrada, tendo deferido anteriormente tal prova e após, mudado de ideia, nada mais fez do que exercer o juízo de retratação, podendo exercer a autotutela e rever suas decisões, até porque, cabe ao juiz que preside a ação penal analisar a importância de cada prova no caso concreto. Exceção conhecida e julgada improcedente, à unanimidade”.

No recurso especial mostrei que tal decisão não se sustentava – nem quanto às provas dos autos, nem quanto às razões de direito. A decisão era plenamente nula, por acarretar prejuízo irreparável à defesa, cerceando, assim, o exercício do meu direito, em violação frontal à constituição brasileira. Além disso, foi adotada sem qualquer fundamentação legal, por ato de império, de arbítrio, de capricho e de tendenciosidade da juíza, agora desembargadora.

O impedimento para ouvir a testemunha constituía grave violação à função jurisdicional e ao direito, um ultraje a um dos mandamentos mais sagrados da constituição do país, que é o exercício do amplo direito de defesa, assegurado aos acusados e denunciados, inocentes até prova em contrário.

É nulo o processo no qual o julgador dispensa testemunha arrolada pela parte sem que esta tenha desistido de ouvi-la. Os tribunais têm reconhecido a nulidade quando o juiz, sem ouvir a parte, dispensa a testemunha arrolada, ou deixa de ouvir testemunha dando andamento ao processo.

Dispensando unilateralmente a testemunha do réu (ou querelado), sem ouvi-lo, o julgador o impede de exercer o direito à prova, fulminando o princípio do contraditório e da ampla defesa no devido processo legal, e age tendenciosamente em favor de uma das partes.

Além de ser plenamente nula, por cercear o direito de defesa, a produção de provas e o contraditório, a decisão da então juíza da 16ª vara criminal de Belém foi adotada sem qualquer fundamentação legal.

No entanto, todas essas boas e sólidas razões não foram capazes de convencer as Câmaras Criminais Reunidas do tribunal de que a juíza não tinha condições de presidir as ações impulsionadas contra mim por Rosângela Maiorana.

Depois de propor a primeira exceção de suspeição contra a juíza da 16ª Vara Criminal de Belém, ajuizei uma segunda suspeição contra a mesma magistrada. No despacho que proferiu, ela disse que deixaria de se manifestar “acerca da exceção interposta, para fazê-lo em momento mais adequado”.

O problema era que a legislação processual penal não dava guarida a essa decisão. Cabe ao juízo aceitar ou rejeitar a exceção suscitada, mas não deixar para fazê-lo “em momento mais adequado”, como pretendeu Maria Edwiges.

Quando o recurso especial foi interposto, em 18 de novembro de 2005, o “momento adequado” não chegara para a decisão sobre a exceção nem a magistrada respondera ao pedido de reconsideração do seu despacho, que lhe fizera.

Duas semanas depois, a juíza consignou em um dos sete processos que tramitavam então pela vara sob sua responsabilidade, e mandou juntar nos demais, por cópia xerox, mesmo naqueles onde não havia o incidente de suspeição, o seguinte despacho:

“Encontram-se tramitando neste juízo, precisamente 07 (sete) processos, dentre eles, queixas-crimes, notificações e exceções de suspeição, estas últimas, interpostas em número de duas, sendo que em uma já decidida pelo Tribunal de Justiça, que a rejeitou à unanimidade, e a última rechaçada por este Juízo, em 21/11/2005, através de despacho fundamentado. Consigne-se, que as insatisfações do Querelado Lúcio Flávio Pinto, se iniciaram, quando esta magistrada o descontentou, no momento de não aceitação de que fosse arrolada como testemunha, pelo querelado, a Sra. Lucidea Maiorana, ao entendimento jurídico, técnico e racional declinado nos feitos. Daí para frente, o querelado, tenta de todas as formas afastar esta magistrada dos feitos em que é parte, chegando até mesmo, por vezes, a usar termos não compatíveis com os que militam nos corredores forenses, tudo na vã tentativa de denegrir a imagem desta Juíza, inclusive interpondo reclamação junto ao Órgão Correcional. Para que não pairem dúvidas, acerca da conduta desta magistrada, e considerando o verdadeiro tumulto nos feitos, pelo próprio querelado, para demonstrar suas irresignações, esquecendo-se até mesmo das vias recursais cabíveis, por motivo superveniente e de foro íntimo, juro suspeição para funcionar em todos os feitos em que figurem como parte LÚCIO FLÁVIO DE FARIA PINTO. Feitas as devidas anotações, encaminhem-se a Corregedoria de Justiça Metropolitana de Belém, para os fins de redistribuição. Cumpra-se. Insira-se cópias deste despacho nos demais feitos”.

Cada uma das razões apresentadas pela juíza para justificar sua superveniente admissão de suspeição foram por mim contestadas, através de nova representação que fiz contra ela à Corregedoria Metropolitana de Justiça. No despacho, Edwiges consignou pela primeira vez queixas e reclamações que jamais fizera até então.

Se as queixas contra mim procedessem, se realmente eu tivesse tido o comportamento que a magistrada me atribuía (pela primeira vez, e somente ao se afastar do processo), certamente eu estaria sujeito ao poder de polícia que ela detinha.

Mas essa questão, embora relevante, não vinha ao caso. O que importava à demanda era que, depois de repelir a primeira argüição de suspeição, a magistrada decidiu se afastar de todos os processos, admitindo sua suspeição, quando do segundo questionamento. Todos os processos que estavam sob sua jurisdição foram redistribuídos. Passaram a tramitar pela 3ª, 7ª e 9ª varas penais de Belém.

Esse fato vital foi ignorado por Francisco Barbosa de Oliveira, Procurador-Geral de Justiça, em suas contrarrazões ao recurso especial, de 17 de janeiro de 2006.

Também não foi considerado pela desembargadora vice-presidente do TJE, com poderes delegados, em sua decisão denegatória, lavrada quase 10 meses depois do juramento de suspeição da juíza da 16ª vara criminal.

A demanda perdera, pois, seu objeto. Mas ficara demonstrada a parcialidade da juíza, que dispensou unilateralmente a testemunha da defesa 48 horas depois de haver decidido exatamente o contrário, em plena audiência de instrução e julgamento, presentes as partes e seus advogados.

Nessa ocasião a julgadora declarou, peremptoriamente, que decidira ouvir todas as testemunhas, “de vez que é necessário para o esclarecimento da verdade”. Para viabilizar o depoimento, transformou a minha testemunha de defesa em “testemunha informante deste Juízo, face o parentesco com o querelante”.

A nova decisão, frontalmente contrária à anterior, foi tomada fora de audiência, sem qualquer consulta ao autor da indicação da testemunha, que era eu. Na nova manifestação, a juíza declarou ter decidido pela dispensa da testemunha de defesa do querelado “face não ser imprescindível seu depoimento como testemunha informante”.

Em primeiro lugar, a juíza praticou uma violência, ao mudar a qualidade da testemunha, que era de defesa, em informante do juízo, sem o menor amparo legal, num grave erro de ofício, já que a vedação imposta é exclusivamente a parenta do réu e não do autor da ação.

É a lição de um dos maiores penalistas do país, Eduardo Espínola Filho:

“Respeitando os escrúpulos morais de quem é cônjuge do acusado, de quem é, por consangüinidade, legítima ou não, ou por afinidade (…), ou pelo laço civil da adoção, ascendente ou descendente dele, de quem é seu irmão, a lei não lhes impõe a desumana obrigação de testemunhar contra o mesmo. Assim, tais pessoas, que, naturalmente, muito se interessam, da forma mais imediata, em ver o seu parente próximo livre do perigo que o processo lhe cria, de ser condenado, podem, e o cônjuge ainda que esteja desquitado, recusar-se a depor”.

O texto do artigo 206 do CPP comentado é fulminante:

“A testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor. Poderão, entretanto, recusar-se a fazê-lo  o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias”.

Era evidente que, para ter amparo no direito, a retratação da magistrada, caso coubesse, precisaria ser fundamentada. Mas Maria Edwiges se limitou a dizer que, no interregno de apenas 48 horas, o testemunho de Lucidéa Maiorana passara de um polo a outro: de “necessário para o esclarecimento da verdade” para “não ser imprescindível”.

A que se devia atribuir a súbita mutação?

A juíza teria conversado reservadamente com a testemunha, certificando-se de que ela nada podia dizer que interessasse à causa?   Ou conhecia a testemunha e lhe era íntima, podendo firmar tal entendimento?

Ao rejeitar o pedido de anulação desse despacho, que lhe fiz antes de argüir sua suspeição, a juíza, contrariando o conteúdo de sua própria decisão, aduziu uma inovação, que não constava do texto original. Disse:

“A dispensa da testemunha não se deu apenas em razão do despacho da lide. Deu-se, também, porque a mesma nada poderia declarar de útil à causa,haja vista que se trata de uma ação de imprensa na qual a alegada ofensa se encontra materializada em artigo de jornal. A testemunha, assim, quando muito, poderia emitir juízos e impressões pessoais, com o que não se coaduna o processo penal. Como se sabe, se por um lado ninguém se escusa de depor, em princípio, por outro deve o Juiz da causa garantir que a testemunha deponha sobre o que efetivamente sabe, não emitindo opiniões meramente subjetivas”.

Ou seja: a juíza declarou então, ao ser questionada, que não decidiu apenas pelo que constava do seu despacho nos autos, mas também pelo que acrescentou depois. Isto queria dizer que a parte, ao recorrer de decisão judicial com a qual não concorda, a partir da materialidade do despacho que consta nos autos, se sujeita ao risco de não captar a íntegra da decisão. Além do texto propriamente dito, pode surgir um metatexto imaginário, destinado a abrigar o que o julgador imagina, pensa ou elucubra, subjetivamente falando, dentro de si.

Nesse metatexto continuava a julgadora a laborar sobre o imaterial e o intangível. Como sabia o que a testemunha, ainda não ouvida, sabia? Como pode classificar de “opiniões meramente subjetivas” o que a testemunha teria a dizer, se ouvida? Como era capaz de assegurar que nada a testemunha poderia declarar de interesse da causa?

Sendo um ato de império e de arbítrio, sem base legal e sem explicação, a decisão da julgadora, evidentemente, constituía violação ao direito da parte de produzir prova no devido processo legal, ferindo de morte a ampla defesa. Nada demais: tratava=se da regra nos processos contra mim.

***

[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]