Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Juiz de costas largas, tribunal sem memória

Escrevi uma carta muito respeitosa à desembargadora Raimunda do Carmo Noronha, presidente do Tribunal de Justiça do Estado, a propósito do juiz titular da 1ª vara cível de Belém, Amílcar Roberto Bezerra Guimarães. Passadas três edições do jornal, nenhuma manifestação da dirigente máxima do poder judiciário paraense.

Certamente não será por desconsideração da presidente para com a imprensa, ao menos em tese. Afinal, o Jornal Pessoalé apenas um pequeno órgão dessa imprensa. Se a carta aberta que escrevi tivesse saído em O Liberal ou no Diário do Pará, as coisas seriam diferentes. Tudo bem: o jornal dos Maioranas é poderoso e merece a resposta que faltou a esta publicação minúscula. Assim como a folha dos Barbalhos, o outro lado da dominação bipolar das comunicações no Pará

Lembro à desembargadora, de qualquer modo, que este jornal existe. Até já mereceu editorial do Washington Post, matérias destacadas no New York Times, Los Angeles Times, Le Monde, Corriere della Sera, La Reppublica, The Guardian e por aí vai, dentre órgãos de grande prestígio da imprensa internacional. Atenção que nunca foi dispensada aos demais veículos do jornalismo paraense. Mas isso é o de somenos, ainda que dê uma ideia dos valores dos personagens do caso e da qualidade dos termos de referência dos detentores locais de poder.

Interprete-se do silêncio da presidente que ela considera sem interesse para a administração superior do TJE o que o doutor Amílcar Guimarães escreve no seu blog pessoal. Esta seria uma seara da privacidade do juiz. Pelos temas tratados, entendo diferentemente. Acho que o juiz, ao dizer o que diz num espaço de acesso público, sem qualquer restrição a quem queira tomar conhecimento do que diz, algumas vezes prejulga questões que examinará no gozo da tutela jurisdicional estatal.

Tanto o conteúdo do que escreve quanto a forma usada na escrita revelam um estado de espírito incompatível com os requisitos exigidos em lei daqueles que irão julgar causas e pessoas com os poderes delegados pela sociedade. O juiz tem revelado a falta de equilíbrio, serenidade, ponderação, discernimento e isenção para continuar a exercer o seu ofício.

Dano moral

Posso dizer isso sem suspeição. Já estou fora do âmbito jurisdicional do juiz, que, presentemente, e por dois meses, se acha licenciado da 1ª vara. Mas milhares de outras pessoas estão sujeitas ao seu poder de julgar. Podem sofrer efeitos terríveis desse poder. Às vezes pelo simples exercício do capricho, da vaidade, de algo que o próprio juiz diria ser mera iconoclastia.

Nada a opor se ele fosse apenas um blogueiro, um escritor de internet. O problema é quando se investe dos poderes que lhe foram conferidos na presunção de que supre as condições para exercê-los. É quando o beletrismo, a picardia, a bonomia e o bizarro se tornam nocivos, por afetarem terceiros.

Não há de se esperar outra coisa de um cidadão que escreve os absurdos que o juiz posta em seu blog. Se um personagem nada tivesse a ver com o outro, seria o caso clássico de esquizofrenia. Stevenson lhe deu forma literária em Dr. Jekyll e Mr. Hyde, o médico e o monstro. O tribunal lhe devia dar o tratamento recomendado pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

A mais alta direção do Tribunal de Justiça do Estado do Pará nada faz para prevenir os males desse exercício jurisdicional. Desdenha da petulância desse David impresso, despejado na bacia das almas, onde sobrevivem os cidadãos comuns. Nenhuma resposta a uma carta pública. Talvez nenhuma atenção. A presidência do TJE do Pará é inatingível? Nada ecoa aos seus ouvidos que não seja filtrado por seus mecanismos de controle, seleção, e expurgo? Só o eco das suas palavras e a música dos louvores?

Anos atrás a atual vice-presidente do tribunal também fez sua advertência sobre a postura do juiz Amílcar Guimarães.

Foi quando ele se tornou o primeiro juiz brasileiro a despachar um processo em inglês. O comportamento era – no mínimo – insólito diante da exigência legal de adoção do vernáculo nacional em todos os atos oficiais realizados no país. Revelava, porém, mais do que isso: “sua tendência à ironia e ao cinismo, bem como o descaso pelas normas da boa educação, quando não raro à própria lei”, o que já era um fato “público e notório”,

O diagnóstico era de ninguém menos do que a desembargadora Eliana Rita Daher Abufaiad. Embora se confessando admiradora da competência técnica do juiz, já o advertira sobre seu procedimento incorreto como julgador.

Por isso, um ano antes dessa observação, mandou riscar “palavras injuriosas” empregadas pelo juiz em uma sentença, na qual utilizava os vocábulos “indecente” e “imoral”. Advertiu-o para “não sucumbir às suas emoções negativas e ultrapassar o limite que nos é exigido pela lei dos homens e de Deus”. Mas a admoestação “não surtiu efeito ou surtiu efeito contrário”.

Foi o que concluiu a desembargadora ao relatar um agravo de instrumento que o Citibank interpôs contra sentença do juiz, que se negou a reconhecer sua suspeição para continuar a funcionar numa ação que decidira contra o banco e a favor do então deputado estadual Luiz Afonso Sefer, autor de um pedido de indenização por dano moral contra a instituição financeira (e que depois perderia o cargo, acusado de pedofilia, mas conseguiria se safar da justiça graças aos méritos do advogado Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da justiça de Lula, e a alguns milhões de reais).

Pedido rejeitado

Amílcar decidiu contra a exceção de suspeição contra ele proposta pelo banco americano com base no Código de Defesa do Consumidor e não no Código de Processo Civil. Deu motivo para um questionamento meramente técnico do City. Não satisfeito, introduziu na sua sentença um trecho que indignou a desembargadora Eliana Abufaiad, relatora do agravo na 2ª Câmara Cível Isolada do Tribunal de Justiça do Estado.

O que a irritou foi a seguinte afirmativa do juiz:

“Se o réu fosse uma humilde padaria de esquina, em um subúrbio do Rio de Janeiro, talvez eu observasse com mais cuidado os seus argumentos e quem sabe até decidisse contra o texto expresso da Lei. O que não é possível é o juiz violar dispositivo do CDC para favorecer um réu cujo patrimônio é milhões de vezes superior ao consumidor”.

Admitiu a desembargadora-relatora, “sinceramente”, não entender “aonde o Dr. Amílcar Guimarães quis chegar” com essa afirmação: “Será que se o réu fosse humilde, ele, Juiz, conhecedor da Lei, deixaria de observar o que manda a lei, no caso o Código de Defesa do Consumidor, e julgaria contra essa lei?”, especulou a magistrada.

Mas decidiu: “Não posso mais compactuar” com a conduta do juiz, autor de sentenças que, embora contendo “um cabedal de inteligência e sabedoria jurídica”, revelavam um “absoluto desprezo pela boa educação, como dito, e, sob este outro prisma, totalmente incompatíveis com a postura que um magistrado deve ter”.

Ao mesmo tempo em que acolheu o agravo do banco, “apesar de vislumbrar que o referido magistrado não tem condições de atuar no feito nos moldes como o fez”, a desembargadora decidiu remeter o caso à Corregedoria de Justiça da Região Metropolitana, “para as providências que o caso requer”.

“Visando um exame mais acurado da situação”, a corregedora Carmencin Marques Cavalcante decidiu submeter o pedido de providências ao Conselho da Magistratura. O procurador-geral de justiça Francisco Barbosa de Oliveira manifestou a posição do Ministério Público do Estado, favorável “à apuração dos fatos por parte do Conselho da Magistratura e a adoção das providências que entender cabíveis”.

Um pouco antes, o mesmo conselho recomendou a instauração de inquérito administrativo disciplinar contra Amílcar Guimarães, com base em representações feitas contra o magistrado por seis diretores do Banco da Amazônia e por mim. Mas os pedidos foram rejeitados, por maioria de votos dos integrantes do Tribunal Pleno. O novo pedido também foi rejeitado, graças à mobilização do desembargador Milton Nobre, conforme revelou o próprio Amílcar.

Certamente a desembargadora Eliana Abufaiad, como vice-presidente do TJE, tem agora as condições de enfrentar as articulações sempre favoráveis ao juiz e por em prática a própria recomendação e tomar uma atitude, mesmo sem ser cobrada por uma carta pública.

Justiça vesga

Ao escrevê-la e publicá-la, não o fiz em causa própria apenas. Expressei um sentimento que se espalhou pela opinião pública e alcançou até uma cidadã brasileira, Francisca Caetana Rousselot, que mora em Paris, de onde escreveu uma carta imediatamente ao ler a última edição deste jornal. Nota-se na mensagem o estado de indignação e repulsa de uma pessoa que nem paraense é e está longe da sua pátria, estado de espírito que falta aos paraenses aqui. Diz a carta:

“Hoje, pela manhã, os correios me entregaram o Jornal Pessoal. Fiquei atônita ao ler a matéria referindo-se ao juiz Amilcar Roberto Bezerra Guimarães e perceber a incapacidade dele em dissociar papéis sociais: o homem público e o homem privado.

“O narcisismo, algo que ele evoca para si, recheia as suas atitudes dúbias, por isso não podemos esperar comportamentos e ações brilhantes vindas do lado dele. Ao contrário, o linguajar, de teor altamente escarnecido, leva a crer que este senhor tem as amígdalas cerebrais reduzidas… Grande risco para a sociedade?! A contar para o outro papel que ele diz desempenhar: fotógrafo.

“Que espécie de fotógrafo sensível ele é? Será que neste papel teria realmente ele o direito de publicar uma foto deste tipo [um idoso com Alzheimer]? Visando apenas a zombaria? Que sentido teria enfocar a fraqueza física e mental de um ser humano portador do mal de Alzheimer. Bom, há fotógrafos e fotógrafos…

“E enquanto juiz? Será que ele se dá conta que a lei condena este tipo de atitude sarcástica? Enquanto juiz, ele teria o direito de publicar indecentemente a foto de um ser humano em redes sociais, sem sua prévia autorização? O que ele objetiva expondo as pessoas ao ridículo e tecendo comentários insanos?

“São os vesgos que tornam vesga a justiça. Que falta de postura decente.”

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]