Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Jornal do Brasil na resistência à ditadura

Numa entrevista concedida em março de 1988 para a realização de uma pesquisa sobre a liberalização do regime autoritário iniciada em 1974, o jornalista Luiz Alberto Bahia, editor do Jornal do Brasil no período Médici, assinalou que nesse governo houve uma luta constante na área militar em torno do poder. Segundo Bahia, o Jornal do Brasil teve um papel positivo ao contribuir para a implantação e sustentação da política da distensão idealizada pelos militares mais moderados, que foram deslocados na eleição de Costa e Silva e acabaram por retornar com Geisel na direção do Estado.

De fato, a disputa no interior do Estado a que se refere o jornalista Luiz Alberto Bahia ocorreu ainda durante o governo Médici, período de maior repressão política, quando a economia, sob o comando do ministro da Fazenda Delfim Neto, apresentou um crescimento surpreendente, consolidando um tipo de desenvolvimento que privilegiava a grande empresa nacional, estatal e multinacional. As taxas de rápido crescimento industrial facilitaram a construção da imagem de um país dinâmico que havia modernizado sua estrutura capitalista e promovia uma arrancada econômica. Os resultados favoráveis na economia criaram um clima de euforia, sobretudo entre segmentos da classe média e do empresariado, e contribuíram para que os representantes do autoritarismo apresentassem propostas diante das controvérsias sobre os benefícios do modelo político instituído após o AI-5.

“A coerção excessiva gera perigos e tensões”

Ao despedir-se da vida pública em dezembro de 1970, o senador Mem de Sá (Arena-RS), por exemplo, reafirmou sua fé no regime e disse que a “democracia plena, a que é estável e liberta de subversões, golpes e eclipses, esta apenas nos chegará através do desenvolvimento econômico”. Reconhecido como um político solidário às teses do poder, o ministro da Justiça de Castelo Branco na fase pós-AI-2 reiterava, assim, a necessidade de manter a prioridade do econômico sobre o político e apontava o caminho do fortalecimento do governo, de modo a assegurar a continuidade do desenvolvimento (Jornal do Brasil, 22/12/1970, p. 4).

A proposição do senador não teria causado tanta repercussão caso o país não vivesse uma fase de crescimento econômico, ao lado da mais total falta de perspectiva em direção às liberdades. No dia seguinte à sua publicação pela imprensa, ela seria comentada pelo Jornal do Brasil em editorial intitulado “Doutrina perigosa”, segundo o qual “a tese do senador era no mínimo temerária e, em última análise, consistia em dizer que a democracia seria um luxo proibido para as nações subdesenvolvidas” (Jornal do Brasil, 23/12/1970, p. 6). Esse tipo de formulação adotada pelo representante da imprensa liberal carioca chamava atenção para o fato de que as realizações no plano econômico não deveriam obscurecer o autoritarismo do sistema político. Embora o governo Médici encontrasse resultados favoráveis na economia, vivia-se o tempo de maior restrição à participação e influência sobre os centros decisórios.

Em torno dessa questão, também se manifestaria Golbery em documento datado de 1972, argumentando que:

“[…] a centralização do poder político nas mãos do Executivo, as restrições ainda existentes para a atividade política e o excessivo controle do Estado sobre a economia são todos riscos calculados, aceitos conscientemente de forma a assegurar uma rápida decolagem do país […]. Além disso, a coerção excessiva gera muito mais perigos e tensões […]. Frequentemente, como nesse caso, há um certo grau de incompatibilidade entre os diversos objetivos em conjunto. Essa incompatibilidade só pode ser contornada por uma manobra estratégica a ser planejada e executada numa sucessão de etapas” (GASPARI, Elio, A Ditadura Derrotada. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p.198).

“O caminho da estabilidade”

Nessa linha de raciocínio, é possível aceitar a ideia de que o projeto da distensão política foi uma estratégia articulada e amadurecida ainda no decorrer do governo Médici, visando a amenizar o grau de coerção mas garantindo a continuidade do regime. Se no plano intragovernamental ocorreu uma articulação de apoio a Geisel, no plano institucional militar a Escola Superior de Guerra promoveu debates sobre o modelo político. Responsável pela preparação ideológica e técnica dos quadros militares e civis que assumiram posições dirigentes no Estado após 1964, a ESG tornou-se durante o governo Médici um centro de aferição e difusão de propostas no campo político-institucional. O foco recaiu sobre a questão da sobreposição da ordem jurídica institucional (AI-5) com relação à ordem constitucional, modificada e outorgada pela Emenda de outubro de 1969, quando foi ampliada no texto a noção de segurança nacional, refletindo a prioridade em fortalecer o aparato repressivo voltado para a defesa da segurança interna.

Atores comprometidos com o regime – parlamentares, autoridades do Executivo e militares – apresentaram as diferentes visões sobre a estratégia que pensavam adotar para institucionalizá-lo, dividindo-se entre a permanência e a extinção do AI-5. Embora restrito, o debate acabou ultrapassando os marcos da instituição militar e, em alguns momentos, ganhou repercussão na imprensa. Foi o caso, por exemplo, da palestra proferida na ESG pelo ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, que defendeu uma posição de continuidade. Ele via como improvável a incorporação do AI-5 à Constituição e defendia a manutenção das duas ordens, a constitucional e a institucional. Na sua avaliação, a nação estava satisfeita com a conjuntura política e a revolução inaugurara uma Constituição que definia o regime democrático. Além de pedir a permanência das duas ordens jurídicas, Buzaid não fazia distinção entre a revolução como ideário e como processo, procurando sensibilizar as áreas políticas para a ideia de que uma “revolução que deseja alcançar seus supremos objetivos e desenvolver em toda a plenitude sua filosofia não deve promover a fixação de prazos e datas”(Jornal do Brasil, 4/7/1970).

No dia seguinte a esta declaração de Buzaid, o editorial do Jornal do Brasil, referindo-se a ela, lembraria:

“[…] que o movimento militar que pôs fim ao governo Goulart foi concebido e posto em prática de acordo com a tradição política brasileira, com o objetivo precípuo de restaurar a ordem no país, francamente ameaçada. Por esse motivo, o movimento de março de 1964 teria contado com o apoio da opinião pública. Como decorrência, a palavra revolução teria uma inequívoca conotação de transitoriedade, o que implicava a ideia de instabilidade. O caminho da estabilidade seria o contrário do permanente estado revolucionário” (“Transitório e permanente”, Jornal do Brasil, 4/7/1970, p. 6).

Críticas ao desfecho de 1968

As questões relacionadas ao modelo político a ser adotado adquiriram prioridade na agenda de discussão da ESG, contribuindo para a constituição de um campo de forças que não questionava o regime burocrático-autoritário. A divergência central dava-se em torno das proposições de manter o regime fechado politicamente (linha dura) ou continuar com o regime mas reduzir o coeficiente de arbítrio, pois “o arbítrio excessivo”, já dizia Roberto Campos em 1972, “passa a ser uma disfunção pela diminuição de insumos informativos e críticos” (Jornal do Brasil, 17/1/1972, p. 3).

Para a linha de pensamento do ex-ministro do planejamento de Castelo convergiam outras declarações surgidas no âmbito do sistema político e da sociedade civil, como a do senador Milton Campos, que anteriormente já havia tornado público em discurso feito no Congresso Nacional uma posição divergente em relação à decretação do AI-5. Ele lembrou os compromissos democráticos da revolução, sinalizando para o fato de que estaria havendo uma desvirtuação dos seus princípios originais. E propunha que se distinguisse a revolução de seu processo: “A revolução há de ser permanente como ideia e inspiração para que, com a colaboração do tempo possa produzir frutos. O processo revolucionário há de ser transitório e breve, porque sua duração tende à consagração do arbítrio” (Diário do Congresso Nacional, nov.1969, sábado, 8 – 0271).

Além do governador da Bahia Luiz Viana Filho, chefe da Casa Civil no governo Castelo, que pregava a “retomada democrática” (Jornal do Brasil, 13/1/1971, p. 3) e do general Rodrigo Otávio, então comandante da ESG, que propunha conciliar a condição de segurança com a redução do arbítrio, soma-se o pronunciamento do marechal Cordeiro de Farias, um dos líderes do movimento de 1964 e ministro do Interior de Castelo. Em palestra na ESG em março de 1970 ele havia feito críticas ao desfecho de 1968 e afirmara que o “AI-5 afastava da Revolução uma grande e numerosa classe que pelo menos moralmente ficou sem situação para defendê-la”.

Estado controlado pela sociedade

As declarações dos protagonistas do autoritarismo que se tornaram de domínio público, somadas à articulação do grupo intragovernamental de apoio à candidatura de Geisel, são claros sinais de que a dinâmica do processo político durante o governo Médici foi marcada por disputas em torno de posições na corrida sucessória e por intensas polêmicas sobre o tipo de modelo político a ser institucionalizado. Mostram também que alguns segmentos próximos aos centros de poder estavam defendendo uma clara estratégia de resistência aos rumos que o Estado tomara após a decretação do AI-5. Ao questionar a manutenção de um tipo de autoritarismo mais dependente do apoio das Forças Armadas, que desacreditava por completo as tradicionais mediações institucionais liberais, a corrente mais moderada acabou galvanizando opiniões que ultrapassavam as fronteiras do aparelho de Estado.

Alguns representantes da grande imprensa liberal, que antes haviam apoiado o golpe em 1964, pronunciaram-se sobre a evolução do regime durante o governo Médici. Apesar da forte censura a que estavam submetidos, construíram um discurso de aproximação com os grupos favoráveis à diminuição do grau de coerção estatal. Foi o caso do Jornal do Brasil que, embora não contestasse a ordem instituída, adotou uma linha editorial que procurava ampliar o exíguo campo de crítica a um regime que perdera as referências legais. O jornal adotou uma estratégia discursiva de resistência ao tipo de autoritarismo inaugurado após a decretação do AI-5. Frequentemente exaltava o compromisso original dos dirigentes militares, argumentando que a defesa do Estado de Direito teria permitido o acordo entre as Forças Armadas e setores da sociedade na deposição de Goulart em 1964.

Os textos do Jornal do Brasil enfatizavam a ideia de que o caminho para se encontrar a estabilidade política exigia a garantia dos direitos dos indivíduos e o reconhecimento das tradicionais instituições representativas da opinião pública contempladas na cultura liberal-democrática. O jornal não apenas espelhou uma luta interna que se travava nos bastidores do Estado entre as diversas tendências em disputa pela sua direção. O Jornal do Brasil acabou por ser um campo produtor de significados correspondentes às demandas dos atores que viam na diminuição do grau de autoritarismo sobre a imprensa, os partidos, as eleições e o Legislativo o primeiro passo para caminhar no sentido de um Estado mais controlado pela sociedade, prescindindo, assim, da intervenção militar na vida política.

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[Aloysio Castelo de Carvalho é professor do Departamento de Economia e da Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ]