Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Em nome da honra

A Advocacia-Geral da União (AGU), que representa a Presidência da República, e o Congresso Nacional manifestaram ser contrários a uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) que corre hoje no Supremo Tribunal Federal referente a publicação de biografias no país.

A ação, movida pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), pede mudanças no Código Civil, que hoje exige autorização prévia de biografados ou herdeiros para a publicação de livros ou obras audiovisuais.

Os alvos da ação são os artigos 20 e 21 do Código Civil, que serviram de base para a Justiça proibir, por exemplo, livros sobre os músicos Roberto Carlos e Noel Rosa.

Os artigos dizem que, sem autorização de biografados ou herdeiros, a publicação de imagens ou informações pode ser proibida se “atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade” de retratados.

Mas a discussão em curso no Supremo vai além do Código Civil e se dá no choque entre direitos fundamentais previstos pela Constituição.

De um lado está a liberdade de expressão, independente de censura ou licença, e o direito difuso à informação. Do outro está a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da imagem e da honra das pessoas.

O embate gera dois caminhos distintos: caso não seja autorizada, como determina o Código Civil, a biografia de uma figura pública deve se guiar pela liberdade de expressão ou pela inviolabilidade de sua vida privada?

Para os editores de livros, a vida de uma personalidade pública se confunde com a história coletiva e, por isso, a biografia não pode ser submetida a autorização.

“O Brasil é hoje um país onde somente as biografias chapa-branca têm vez”, diz a associação, que classifica a necessidade de autorização como “censura prévia privada”.

Já a advocacia do Senado -cujo presidente, José Sarney (PMDB-AP), ocupa o mesmo cargo no Congresso Nacional (parte na ação)- nega que existam biografias proibidas no país. Diz ainda que os dois artigos em questão evitam que os “bens da personalidade”, como a honra e a privacidade, se tornem “mercadorias”.

Em sua petição, o Congresso argumenta que, se deferida a ação, ela dará “imunidade à publicação livre e desenfreada de biografias não autorizadas, ainda que imbuídas de conteúdos ofensivos à intimidade, privacidade, honra e imagem das pessoas”.

Jabuticaba

Em outros países, a publicação de biografias não encontra tantas barreiras, o que faz do caso brasileiro uma espécie de jabuticaba do universo editorial.

Em Portugal, o Código Civil determina que, no caso de obras sobre pessoas públicas, não é necessária autorização.

Nos EUA, cuja primeira emenda constitucional garante a liberdade de expressão no país, há uma jurisprudência que diferencia a abordagem legal entre obras sobre pessoas públicas ou não.

“Na pesquisa que fizemos sobre a legislação de outros países ocidentais, só encontramos a necessidade de autorização prévia de biografados na lei brasileira”, afirmou Gustavo Binenbojm, advogado que representa a Anel.

O processo, que é relatado pela ministra do Supremo Cármen Lúcia, ainda não tem previsão para ser julgado.

Além da investida judicial, as editoras aguardam a tramitação de um projeto de lei na Câmara com o mesmo fim.

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“Não queremos carta branca para ofensa e calúnia”, diz editor

O diretor vice-presidente da Associação Nacional dos Editores de Livros, Roberto Feith, afirma que as informações prestadas ao Supremo pelo Congresso distorcem o ponto central do questionamento proposto pela ação.

“Não estamos tratando da privacidade de um cidadão comum. Quando alguém se torna uma personalidade pública, passa a fazer parte da história do país. Não dá para tratar o ex-presidente Juscelino Kubitschek da mesma forma com que se trata uma pessoa anônima”, diz Feith.

Na sua opinião, a manifestação da Advocacia Geral da União ao Supremo não parece refletir o que a presidente Dilma Rousseff pensa sobre esse assunto.

“Não acredito que Dilma, com sua história de vida, concorde com o cerceamento da liberdade de expressão. Ainda mais ela, que criou a Comissão da Verdade para dar acesso a fatos históricos. Hoje, um torturador da Ditadura pode proibir um livro que cite isso.”

Em processos que discutem a constitucionalidade, no entanto, a AGU sempre se posiciona a favor da lei vigente, ou seja, de forma contraditória a qualquer Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Assim, a AGU argumenta que o Código Civil já estabelece uma “solução” sobre o conflito entre liberdade de expressão e privacidade.

“Basta, para tanto, que o biografado nada tenha a objetar. Afinal, são os seus direitos fundamentais personalíssimos da imagem, privacidade, dignidade e honra que estarão ali retratados e não há nenhum outro direito que a estes não deva se curvar.” (M.M.)

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[Matheus Magenta, da Folha de S.Paulo]