Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalista não investiga jornalista

Deveria fazer parte do Código de Ética do jornalista a obrigação de investigar o desvio de conduta de algum colega metido em corrupção para compreender melhor os fatos e prevenir a categoria deste mal que assola o país. Até porque não temos um controle interno da classe, fato esse que coloca bons e maus profissionais no mesmo balaio.

Quem prega a moralidade no país – e tem a obrigação de fazer isso –, teria que zelar pelo bom nome da classe. É o mínimo que se pode exigir dos jornalistas que, ao contrário dos médicos, engenheiros, advogados e tantas outras categorias, são desprovidos de um conselho disciplinar. Não temos, às vezes, nem o cuidado de denunciar a prática do baixo jornalismo – e, muito menos, de criticá-lo individualmente, com raras exceções. Uma delas é este espaço do Observatório da Imprensa, o qual tenho a honra de eventualmente ocupar.

Nenhuma de nossas instituições de classe (sindicatos, federação, associações) se manifesta quando um jornalista é preso ou acusado de extorsão, por exemplo. Normalmente, essas entidades soltam notas quando o jornalista aparece como vítima de algum crime de imprensa. O autocontrole permite a apuração dentro dos critérios profissionais e o resultado desse procedimento administrativo pode apontar culpa ou inocência do investigado. Portanto, a sua finalidade não é meramente punitiva, mas acima de tudo esclarecedora e benéfica para a classe e a sociedade.

Políticos e empresários

Essa reflexão serve para ilustrar a prisão do jornalista e blogueiro pernambucano Ricardo Antunes, acusado de prática de extorsão contra um marqueteiro em Recife, através de seu blog Leitura Crítica. O único registro que se tem do fato é o policial, sem qualquer posicionamento da categoria. A imprensa convencional limitou-se ao registro sucinto do fato, o qual foi ignorado pela classe, que não se manifestou de forma corporativa, seja através de notas de repúdio ou de esclarecimento à sociedade. Se fosse um advogado, que divide com os jornalistas a missão de defender os direitos civis da categoria e do cidadão, a OAB já estaria investigando o caso, da mesma forma ocorreria com o Conselho Regional de Medicina (CRM), que independe de denúncias formais para investigar o profissional acusado de má conduta.

Não vou entrar no mérito da acusação por desconhecer a versão de Antunes. Como se sabe, vítima e acusado em capa de inquérito são posições sujeitas a inversões em processos criminais e até mesmo em sentenças, de modo que a ordem desses fatores varia conforme o fato, e não o seu relato abstrato.

Antunes é apenas um entre os muitos jornalistas acusados de extorsão neste país, com a diferença de que ele foi preso. Não são apenas os pequenos que agem assim. Os grandes veículos de comunicação extorquem políticos e empresários – não é de hoje. Assis Chateaubriand (1892-1968) criou o seu império fazendo isso. A maioria dos jornais do interior age dessa forma. Tropeço todo dia em jornalista desonesto, que usa os adjetivos conforme a grana que coloca no bolso.

Esperteza profissional

Sobre Ricardo Antunes, posso falar um pouco mais. Ele foi meu repórter na década de 1980, no antigo jornal Última Hora de Brasília, onde eu era editor de polícia. Foi o seu primeiro emprego. Ele tinha uma boa capacidade cognitiva, mas era burocrático. Tão desinteressado que o apelidei de Meia Lauda, pela improdutividade quase total. Encerrava qualquer assunto em 10 ou 15 linhas, não pela concisão do texto, mas por total falta de interesse. Dei conselhos, tentei endireitá-lo, mas não teve jeito.

Até que pedi a sua demissão ao editor-geral Walmir Botelho (hoje editor de O Liberal, do Pará). A contragosto, porque ele me era simpático. Aparentava ter um ótimo caráter. Botelho levou o meu pedido na brincadeira, como uma velha raposa disposta a proteger os seus filhotes. Em parte, tinha razão. O jornal pagava mal e eu deveria ter mais paciência com o incorrigível Meia Lauda, mas ele me aporrinhou tanto que foi embora do jornal.

Surpreendi-me, no entanto, quando o meu amigo Gervásio Gonçalves Filho, dono da Rádio Regional de Brasília, informou-me de sua prisão com o fôlego de quem estava dando uma notícia a quem não levava fé no rapaz desde o início de sua carreira. Corrijo: não acreditava no repórter naquele momento, mas de sua esperteza nunca tive dúvida – e esperteza profissional é um elemento dúbio de várias interpretações.

Crítica não pode ser moeda de negociação

Conto essa história e invoco a nossa triste falta de controle interno da profissão para chamar a atenção dos futuros jornalistas, que se formam sem qualquer aptidão para tal, às vezes com a falsa ideia de que poderão obter sucesso e dinheiro sem esforço, o que é uma mentira. Jornalismo é puro conflito, jogo bruto, pesado demais para quem não quer aporrinhação na vida.

Não temos o direito de explorar a vida alheia, como se a honra das pessoas dependesse de uma negociação jornalística. Toda critica, denúncia e acusação devem ser feitas com base no interesse público, sem qualquer retorno financeiro extra para o autor da matéria, a não ser o fato de credenciá-lo ainda mais a exercer o jornalismo critico com a autoridade de quem não está atuando em causa própria.

Costumo dizer que o carma do repórter é fazer inimizade e enriquecer o patrão. Quanto mais sério e justo é o jornalista, mais credibilidade ganha a empresa onde trabalha, gerando dividendos para o proprietário que – salvo algumas exceções – infelizmente usa esse crédito como uma moeda de negociação para ganhar dinheiro e poder junto aos seus parceiros políticos e comerciais. Funciona assim em qualquer canto do mundo, independentemente do tamanho do veículo.

Primeiro, arrumar a casa

Portanto, já passou da hora de criarmos um Conselho Federal de Jornalismo para o controle interno da profissão, sob pena de sermos obrigados a admitir que, da mesma forma que polícia não prende polícia (e político faz vistas grossas para seu páreo corrupto), jornalista também não investiga jornalista e ponto final. Se alguém quiser denunciar algum jornalista corrupto, tem que ligar para a polícia, como ocorreu no caso de Ricardo Antunes, pois a categoria simplesmente não tem um órgão de correição.

Se quisermos moralizar este país, tão criticado por nós, temos primeiro que arrumar a nossa casa, fiscalizar a nossa atividade, punir os maus elementos, sufocar os picaretas e, se necessário, cassar os seus registros profissionais. Tem que ser assim.

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[José Cleves é jornalista]