Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Clarín ganha mais tempo no embate com Cristina

O governo da Argentina e o Clarín, maior grupo de mídia do país, avançam rumo a um confronto centrado numa lei antimonopolista que poderá provocar uma transferência forçada de negócios da empresa. Na quinta-feira (6/12), uma corte ampliou o prazo de defesa do grupo, que se esgotaria hoje, “até que haja uma sentença definitiva”. A presidente Cristina Fernández acusa rotineiramente o grupo, que publica o jornal Clarín, de mentir e de distorcer fatos. O confronto entre ela e o grupo de mídia que já manteve uma relação harmoniosa com o governo, mas que é agora o seu mais implacável crítico, é o mais recente em uma longa guerra na qual, advertem analistas, um Judiciário independente poderá ser vitimado.

Até a decisão de quinta-feira da Câmara Civil e Comercial Federal, o governo dizia ser incontornável o prazo de 7 de dezembro para que os grupos apresentassem seus planos voluntários detalhando como cumprirão os limites à propriedade de meios de comunicação impostos por uma lei aprovada em 2009. Isso apesar de um recurso do Clarín, que alega que parte da lei é inconstitucional, ainda não ter sido apreciado pela Justiça.

Martín Sabbatella, chefe da Autoridade Federal para Serviços de Comunicações Audiovisuais (Afsca), disse que a decisão da Câmara Civil e Comercial Federal é “uma vergonha” e que o governo irá à Suprema Corte pedir “a revisão do ato”. Na quarta-feira, a Afsca já havia tomado a decisão incomum de recusar todos os juízes em um tribunal de apelações que está apreciando o recurso do Clarín, após o tribunal ter rejeitado objeções anteriores do governo.

“Diversidade de proprietários, não de opiniões”

Álvaro Herrero, diretor-executivo da entidade Associação pelos Direitos Civis, afirmou que esse é “um sinal muito claro de que [o governo] não aceitará nenhuma decisão adversa”. Sabbatella disse que 14 dos 21 grupos de mídia que precisam apresentar seus planos já o fizeram. Ele afirmou que iria permanecerá em seu gabinete até a meia-noite de ontem esperando o restante dos planos, no que ele qualifica de processo democrático “pacífico”, que inaugurará uma era de maior pluralidade na mídia.

Mas ninguém acredita que o Clarín esteja entre os que apresentarão planos, apesar de o Fintech, um fundo de investimentos que detém 40% da Cablevision, subsidiária do Grupo Clarín no setor de TV a cabo, ter encaminhado, na quarta-feira, uma carta à Afsca dizendo desejar pedir ao Clarín que venda sua participação de 60% para cumprir a lei. O Clarín reagiu imediatamente dizendo nada ter a ver com a carta do Fintech. O grupo argumenta que uma parte crucial da lei da mídia “está totalmente suspensa pelos tribunais”, enquanto se aguarda uma decisão sobre a sua constitucionalidade.

Para cumprir a lei, o Clarín teria de vender dezenas de licenças, algo que, segundo Herrero, poderia garantir “uma diversidade de proprietários, mas não de opiniões”. O governo e o Clarín são inimigos, mas já foram os melhores amigos. Néstor Kirchner, marido e predecessor de Cristina, prorrogou as licenças do Clarín e aprovou uma aquisição no setor de TV a cabo. Mas as relações azedaram a partir das críticas do grupo de mídia ao governo durante seu conflito com o setor agrícola, em 2008.

Comemoração do retorno à democracia

A questão em torno do direito da mídia, que o advogado constitucionalista Eduardo Barcesat diz ter “evidentes conotações políticas”, é uma batata quente para a Suprema Corte, que ordenou que um juiz de instância inferior se apresse a decidir sobre a questão constitucional. Seja qual for sua decisão, a parte perdedora certamente recorrerá, possivelmente valendo-se de um mecanismo jurídico conhecido como per saltum para levar a espinhosa questão diretamente à Suprema Corte.

Pouco depois de assumir o cargo, em 2003, Néstor Kirchner renovou a Suprema Corte, onde alguns juízes tinham ganho uma reputação de tomar decisões rápidas a favor do governo. Atualmente, a Corte goza de uma reputação de independência, que pode estar sob ameaça. É é o que temem alguns observadores, caso o governo continue pressionando o Judiciário.

Carlos Kunkel, um ferrenho legislador governista, disse que uma “corporação judiciária” estava tentando dar “um golpe institucional para romper a continuidade da democracia”. Marcelo Fuentes, chefe da comissão de Assuntos Constitucionais do Senado, também foi citado como tendo dito: “Se os juízes querem governar com suas decisões, é claro que podemos determinar um impeachment.”

Sabbatella, do órgão regulador, esperava anunciar amanhã quais grupos estão cumprindo a lei. Ele havia dito que na segunda-feira visitaria pessoalmente os grupos que não apresentaram planos acompanhado de um notário para informá-los que o governo irá leiloar suas licenças – um processo com prazo estimado de cem dias.

O governo fez planos para celebrar a lei de mídia com uma festa diante da Casa Rosada, no domingo, comemorando os 29 anos do retorno da Argentina à democracia.

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Entidades brasileiras criticam governo argentino

A Associação Nacional de Jornais (ANJ), a Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) divulgaram comunicado ontem em que condenam a ação do governo da Argentina no caso envolvendo o Grupo Clarín.

“A incapacidade de conviver em um ambiente democrático tem levado o governo argentino, nos últimos anos, a buscar as mais diversas formas, veladas ou não, de limitar e pressionar o exercício do jornalismo independente, como o direcionamento das verbas publicitárias oficiais, o uso indevido do fisco para constranger empresas, o impedimento da circulação de jornais, o controle do papel de imprensa e o desrespeito à independência do Poder Judiciário”, afirma a nota das entidades brasileiras.

Classificando o projeto levado ao Congresso como “legislação obscurantista”, as associações consideram a iniciativa de Cristina Kirchner como “mais um triste exemplo na América Latina de governo eleito democraticamente que se volta contra o verdadeiro espírito da democracia”.

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[Jude Webber, do Financial Times, de Buenos Aires]