Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Censura, um excesso de tolerância

No Brasil, a censura chegou antes da imprensa, do teatro, das bibliotecas. Controlaram-se crenças, opiniões, linguagens. Proibiram-se idiomas nativos, deuses “estrangeiros”, instrumentos musicais inconvenientes e danças consideradas indecentes. Numa colônia de diversificada população indígena e escravos de origem africana, o controle da expressão e da informação foi logo implantado pela Igreja e pela Coroa Portuguesa, promovendo-se uma cultura da camuflagem, do sincretismo, do disfarce, da ironia e do humor.

Se essas estratégias, por um lado, enriqueceram nossa cultura, também nos deram uma perigosa tolerância em relação às interdições -passamos a conviver com elas como se fossem parte da natureza das relações sociais e das razões de Estado.

Desde tempos remotos, convivemos com a suspeita acerca de nossa fé, de nossa opinião e da conveniência de nossos dizeres. Desde tempos remotos, tivemos as visitações do Santo Ofício buscando identificar heréticos, blasfemos, mal falados e mal falantes.

Quando, enfim, nos tornamos independentes, passamos a ter, com a Monarquia, órgãos especialmente destinados ao fomento das artes laicas e ao controle do que se fazia com elas. A partir de 1841, nenhuma apresentação pública se faria sem aprovação e visto do chefe de polícia, guardião da moral, da religião e da decência pública.

Censores insuspeitos

De 1834 a 1843, nenhuma apresentação teatral foi permitida, temendo-se que o teatro se tornasse palco (literalmente) de agitações republicanas e abolicionistas. Em 1843, foi criado o Conservatório Dramático Musical, onde colaboraram como censores nomes importantes das artes e da intelectualidade -João Caetano, Quintino Bocaiuva e Machado de Assis que, com esse trabalho, recebiam algum rendimento e privavam da intimidade com o poder.

Machado exerceu as funções de censor de 1862 a 1864, período em que pediu para Augusto César de Lacerda modificar o desenlace da peça “Mistérios Sociais”, na qual uma baronesa abandona o marido por um escravo.

Na República, começamos a produzir um jornalismo e uma arte mais regular, fecunda e nacionalista, mas sempre atrelada aos ditames do Estado, misturando nossa sede de autonomia com o paternalismo, o clientelismo e a censura.

Assim é até o Estado Novo, quando Getúlio Vargas, inspirado por chefes de governos nazifascistas como Mussolini e Salazar, cria os primeiros sistemas burocráticos e consistentes de censura, atrelados ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). E nós, apesar dos ares libertários da Semana de Arte Moderna, atravessamos os túneis escuros da censura prévia à imprensa e às diversões públicas.

Dessa época, foram diretores do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda do Estado de São Paulo (Deip) Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo, que também atuou como censor. Nesse período também, Vinicius de Moraes serviu como censor do cinema, antes mesmo de ser diplomata.

Subserviência nefasta

A conivência escandalosa entre intelectuais e artistas e o poder chegou a um beco sem saída na ditadura militar, quando viu-se que o “rei estava nu”, ou seja, que as benesses do Estado punham em risco a sobrevivência não só das artes, como dos próprios artistas e da cultura.

Foi preciso que essa promíscua convivência entre poder e cultura chegasse aos seus extremos -à repressão e à perseguição política- para que parte dos artistas e intelectuais rompesse com esse secular apadrinhamento. Só então passaram a ver a censura como realmente é -a nefasta relação de subserviência de produtores culturais ao poder, sob um manto simplista que encobre interesses, barganhas e uma insuportável (ao menos nos dias atuais) tolerância.

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[Maria Cristina Castilho Costa, livre-docente em ciências da comunicação pela USP, é coordenadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da mesma universidade]