Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Novas tecnologias esquentam debate sobre privacidade

A ideia de atar artefatos tecnológicos ao corpo, mesmo que rudimentares, não é nova. O primeiro relógio de bolso, chamado de o “ovo de Nuremberg”, data de 1504. Os registros mostram que no século seguinte, os chineses já usavam um ábaco – uma calculadora primitiva – pendurado no pescoço, como se fosse um colar, ou no dedo, sob o formato de um anel.

Mas nem os alemães de Nuremberg, nem os matemáticos chineses da Cidade Proibida tinham de lidar com questões complicadas como as que envolvem o mundo on-line do computador de vestir. A mais sensível delas é a privacidade.

Quando estabelecimentos comerciais começaram a exibir o aviso “Sorria, você está sendo filmado”, muita gente não achou graça. Uma parte dos consumidores passou a se sentir vigiada, como se o comerciante suspeitasse de seu comportamento antes mesmo de qualquer delito. Havia também o receio de que as imagens pudessem ser usadas de forma indevida na internet, transformando em piada atitudes embaraçosas.

Esse tipo de invasão de privacidade passou a ser tolerada, no entanto, porque se percebeu que os registros podiam ser úteis para intimidar comportamentos indesejados e até elucidar crimes.

Em 2010, um príncipe saudita foi condenado pela Justiça britânica por ter matado seu secretário pessoal, encontrado morto em um quarto de hotel, em Londres. Uma das provas foi um vídeo do elevador, em que era possível ver o príncipe agredindo o funcionário, que apenas se defendia dos golpes. Mais recentemente, uma filmagem semelhante mostrou Elize Matsunaga deixando o prédio onde morava, em São Paulo, com várias malas. Nelas, segundo as investigações, estava o corpo de seu marido, o empresário Marcos Matsunaga. O caso ainda não foi julgado.

Nesse mundo vigiado, o acordo tácito é que vale a pena abrir mão de parte da privacidade em troca de um certo grau de segurança.

Processo e julgamento

O advento do computador de vestir traz a discussão de volta à tona ao aprofundar o nível de exposição a que as pessoas estão submetidas. Os óculos Google Glass, que a companhia de internet está desenvolvendo, terão câmeras capazes de filmar o que está à frente do usuário. Em tese, uma pessoa poderá capturar e usar imagens de qualquer pessoa que ele encontrar – de amigos e parentes ao estranho que está tomando café na mesa ao lado.

Quem tem imagens divulgadas na web sem autorização prévia pode entrar com um processo para que elas sejam retiradas, mesmo que não haja nenhuma situação constrangedora envolvida. Se o vídeo tiver conteúdo embaraçoso, ou se quem publicou as imagens ganhou algum dinheiro com o material, é possível pedir indenização, explica Leandro Bissoli, sócio do escritório Patrícia Peck Pinheiro, especializado em direito digital. “Não interessa se é um local público. Trata-se de um direito constitucional”, diz o advogado.

Nem sempre captar imagens sem licença é uma ameaça ao indivíduo. Em Salt Lake City, no Estado americano de Utah, os policiais usam câmeras acopladas em roupas ou bonés para registrar a abordagem aos cidadãos. Imagine o efeito de uma medida semelhante no Brasil, onde frequentemente ocorrem relatos de abusos praticados por maus policiais.

Com câmeras espalhadas por todo lado, no entanto, fica mais fácil cometer delitos contra a privacidade, o que leva a outra questão: é necessário ou não criar leis específicas para julgar esse tipo de conduta? Parte dos especialistas diz acreditar que basta enquadrar os crimes via internet na legislação existente. O delito, para esses especialistas, é o mesmo, independentemente de ter sido cometido na web ou fora dela. Outros, porém, afirmam que a internet traz desafios específicos e, por isso, é necessário criar novas leis.

No Brasil, foi sancionada, em dezembro, a Lei 12.737, que ficou conhecida com o nome da atriz Carolina Dieckmann. A atriz teve fotos íntimas roubadas de seu computador e divulgadas na web. Pela nova lei, invadir um dispositivo eletrônico para roubar ou adulterar dados e obter vantagens ilícitas pode acarretar uma pena de três meses a três anos de detenção, além de multa.

O que mais preocupa é o vulto que os crimes contra a privacidade podem tomar em uma sociedade cada vez mais conectada.

Em 2010, nos Estados Unidos, Tyler Clementi, um estudante universitário de 18 anos, cometeu suicídio depois que teve imagens íntimas com outro homem gravadas e reveladas na web pelo indiano Dharun Ravi, seu colega de quarto. Primeiro, Ravi colocou uma câmera escondida no dormitório da universidade para filmar Clementi. Depois de conseguir as cenas, convidou outros universitários, pelo Twitter, a ver o material em um site.

Detido, Ravi foi processado e julgado por espionagem. Ao fim, foi condenado a 30 dias de prisão – saiu depois de 20 dias – e a três anos de liberdade condicional. Não houve acusações formais que o ligassem ao suicídio, mas a morte de Clementi permeou todo o episódio nos tribunais e na opinião pública americana. A pergunta é se a tragédia teria ocorrido se não fosse tão fácil disseminar, sem permissão, aspectos da vida particular de outra pessoa. 

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Gustavo Brigatto e João Luiz Rosa, do Valor Econômico