Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O ‘Estadão’ e a cobertura dos protestos

Ninguém ficou imune à onda de manifestações nestas últimas duas semanas. Mesmo quem somente observava, lançou um olhar mais atento tentando entender o que estava acontecendo. No meu caso, gostaria de contribuir com o que faço rotineiramente, ou seja, nesse caso específico, verificar as principais “reações” do Estado de S.Paulo às manifestações ocorridas, sem me preocupar, entretanto, com o debate interno entre colunistas e colaboradores. O que ganha importância são suas chamadas de capa, títulos internos e editoriais. Como escrevo isto do domingo (16/6)pela manhã, véspera da quinta manifestação, trata-se de algo redigido em meio a um rio caudaloso que não cessa. Portanto, é importante que depois venha a ser revisto.

Tivemos até aqui quatro manifestações em São Paulo, nos dias 6, 7, 11 e 13 e o maior interesse é mostrar que, não somente as manifestações “evoluíram” na sua dinâmica interna, como a própria cobertura do Estadão foi assumindo outras conotações ao longo deste período. Claro que, em meio a tudo isto, é visível que a própria opinião pública, que não tem chances de ficar imune à discussão, tenha, também, a sua dinâmica na forma de entender e encarar as manifestações.

Estou falando, portanto, de um espaço público de discussão da política onde os principais atores (políticos, manifestantes, opinião pública e imprensa) mutuamente se influenciam ao longo de todo o processo. Querer, portanto, analisar a situação partindo de estereótipos traçados para cada um destes atores é, como sempre, incorrer em gravíssimo erro metodológico e de análise. Este é o “jogo de espelhos” do qual fala P. Charaudeau quando observa a relação entre a mídia e os demais atores da cena política.

A raiva, o “outro” e a negociação

Todos se influenciam mutuamente provocando alterações, por vezes substanciais, em sua atuação. O Movimento Passe Livre passou de uma defesa da redução da passagem para algo mais genérico do tipo “lutamos pela melhoria do transporte” e depara com a questão da luta contra a corrupção no governo federal. Da mesma forma, tenta manter-se apartidário, ao mesmo tempo em que começa a identificar-se como algo contrário ao protagonismo de PT-PSDB.

Da parte dos políticos, existe uma luta no sentido de evitar colocar-se como o alvo principal do movimento. E este acontecimento de ontem em Brasília, com ações duras da polícia contra manifestantes e as estonteantes vaias contra a presidente Dilma, só deixaram o quadro ainda mais confuso para todos. Contra quem, ou o que, estas manifestações lutam? Os movimentos do prefeito Haddad são um exemplo: no início mostrou disposição para o diálogo, depois seguiu a linha do governador Alckmin de mostrar-se resistente às manifestações, depois tentou descolar-se do problema e criticar severamente a ação policial. São exemplos de como as posturas de todos os atores são dinâmicas e precisam ser captadas neste dinamismo, para que as análises não se tornem apenas caricaturas do real.

Mas, vou me concentrar na dinâmica específica do Estadão.

Numa tentativa de resumir, em uma frase, esta dinâmica, diria que a cobertura do Estadão das manifestações passou, até o momento, por três fases distintas, mas relacionadas: a da indignação e raiva; a de maior percepção da realidade e do “outro”; e a da negociação e aceitação do fato como legítimo. Vejamos de forma mais didática.

Conflitos se intensificaram

A primeira manifestaçãoocorreu no dia 6. Saindo das proximidades do Anhangabaú, chega a interditar avenidas como a 23 de Maio, 9 de Julho e Paulista, alcança o Shopping Paulista e estações do Metrô (Trianon, Brigadeiro e Vergueiro). A ênfase da cobertura do Estadão, no dia seguinte, dia 7, se dá sobre o “caos”. O título de capa foi “Protesto contra tarifa acaba em depredação e caos em SP” e a principal manchete interna foi “Protesto contra tarifa acaba em caos, fogo e depredação no centro”, numa reafirmação do título de capa. As ilustrações, tanto de capa, quanto internas foram no sentido de evidenciar a “destruição” (jovens destruindo uma cabine da PM, estação do metrô depredada, barricadas com fogo no meio da rua). Apesar do impacto trazido pelas manchetes e pelas fotografias, não houve manifestação do jornal através de editorial.

A segunda manifestaçãoocorreu no dia seguinte, 7/6. Dessa vez, foi a Marginal do Pinheiros que foi afetada. Parte da estação Faria Lima do metrô foi depredada e alguns alcançaram a av. Paulista, mas os confrontos foram mais reduzidos. No dia seguinte (8/6), o Estadão trouxe como título de capa: “Protesto fecha a Marginal e lentidão chega a 226 km”. Internamente, a principal manchete foi: “No 2º dia de confronto e destruição, protesto fecha Marginal do Pinheiros”. A ênfase da cobertura continua sendo a “destruição”, mas dessa vez, mais sob a ótica dos “engarrafamentos” causados e da perturbação da ordem dos habitantes da cidade. Uma “lógica” que sempre vem à tona quando o assunto é alguma das Marginais, que escoam grande parte do fluxo de carros na cidade. Natural, portanto, que, dessa vez, as cenas de “destruição” dessem maior espaço às ilustrações da própria mobilização das pessoas. Recebe bom destaque, também, a iniciativa de se “cobrar” do Movimento Passe Livre, o prejuízo financeiro, principalmente da av. Paulista, e uma entrevista onde o prefeito Haddad diz que irá recorrer à presidente Dilma para baixar a passagem. Pela primeira vez, o jornal se posiciona em termos editoriais: “Puro vandalismo” é o título do editorial. “Festival de vandalismo”, “cidade refém”, “bandos de irresponsáveis travestidos de manifestantes”, “atrevimento dos manifestantes”, “aterrorizar os passantes”, “PM recebida a pedradas”, “seus militantes são radicais”. São estes os termos que definem o editorial, que finaliza com uma forte crítica ao prefeito Haddad que, “em vez de condenar o vandalismo se apressou a informar que está aberto ao diálogo”. O apelo do jornal é para que as autoridades políticas tenham “firmeza” na manutenção da ordem.

A terceira manifestaçãoocorreu no dia 11. Nos dias 09, 10 e 11 o jornal não trouxe em sua capa nenhum título com referências às manifestações. Apenas no dia 11, dia marcado para a terceira manifestação em SP, o jornal traz uma impactante foto do confronto ocorrido na véspera, no RJ, pelos mesmos motivos. Dessa vez, reunidos na av. Paulista, os manifestantes foram barrados e seguiram para o Parque D. Pedro II onde se deram choques e, ao final, retornaram para a av. Paulista, onde os conflitos se intensificaram no final da noite. No dia seguinte, dia 12, o Estadão trouxe como título de capa: “Maior protesto contra tarifas tem bombas e depredação”. E, internamente, a principal manchete foi: “Fogo, bombas e depredação no maior protesto contra as tarifas”.

Ares de “humanidade”

Entretanto, apesar de ainda trazer as ilustrações impactantes de policiais em choque direto com manifestantes, e estes pichando e colocando fogo em um ônibus, a cobertura do jornal começou a “notar” outras coisas além da “destruição” em si. Fala-se muito, por exemplo, do crescimento do movimento e da adesão de outras entidades e grupos sociais. O jornal dá destaque para a “irritação” do prefeito Haddad quando soube das depredações e sua disposição de crítica às manifestações.

Na quinta-feira, dia 13, ocorre a quarta manifestação. Indiscutivelmente, os acontecimentos ganham ares de “espetacularização”. As TVs praticamente transmitem “ao vivo” todo o desenrolar dos fatos. Claro que todo o “caos” e “imprevisibilidade” típicos de movimentos como este são passados para a TV que tenta, sem grande sucesso, acompanhar e dar um “sentido” a toda a cobertura. Vive-se, então, o momento em que o acontecimento se transforma em “espetáculo”, o que foi reforçado pelo fato da manifestação em São Paulo ter sido simultânea com a ocorrida no Rio de Janeiro, e de haver uma maior preocupação dos manifestantes em deixar evidente “situações de paz” retratadas pela mídia através de “gritos contra a violência”, “flores dadas aos policiais” e pelas cenas dos próprios repórteres machucados.

O que se percebe, em meio à opinião pública, é que a manifestação vai ganhando ares de “humanidade”, ou seja, deixa-se de se observar somente o “caos” e a “destruição” e passa-se a notar o elemento “humano”, a pessoa, ou seja, os efeitos diretos sobre o policial, o manifestante, o passante, o repórter. Isto vai ser percebido no título de capa do Estadão no dia seguinte, dia 14: “Confronto fere mais de 100; paulistano vive dia de caos”. A mudança na cobertura também se nota com as principais manchetes internas: “Paulistano fica “refém” de bombas, gás e tiros de borracha em novo confronto”; “Ação deixa 105 feridos, repórter é atingida no olho”; “130 manifestantes são detidos e lotam DP”; “Haddad critica possível excesso da força policial”.

Jornal apela à PM para manter o “sangue frio”

Ou seja, o “caos” continua sendo retratado, mas sob um olhar distinto. Ele traz prejuízos, mas não só à cidade e seus moradores. Os próprios protagonistas da batalha, policiais, manifestantes e jornalistas (que ficam entre eles) surgem agora como “vítimas” que não podem ser ignoradas. (É nesse contexto que o jornal começa a dar mais atenção àquela violência, potencialmente maior, que vem da polícia, com suas bombas, gás e tiros de borracha.) Entretanto, nenhum pronunciamento do jornal através de editorial.

No dia seguinte (15/6), o jornal traz em seu título de capa: “Alckmin vê ‘ação política’ e Haddad marca reunião”. As principais manchetes internas são: “Alckmin diz que a ação foi política e Haddad marca reunião após protesto”; “Ministros criticam intervenção policial após protesto”; “Repressão da PM faz apoio crescer”. Além disso, o jornal traz um editorial (“Entender as manifestações”) que mostra claramente que a cobertura não é estática, prisioneira de uma opinião, e sim, dinâmica, acompanhando, forçosamente ou não, a dinâmica dos acontecimentos e sua ressonância na opinião pública.

O editorial aponta para a necessidade de um “esforço de compreensão do que exatamente se passa”. A “insistência” das manifestações parece ter causado certa perplexidade na cobertura do jornal e percebeu-se que a forma como a PM se dispôs a manter a ordem acabou por causar maior agitação. Para isso, o jornal usou o número de feridos e de detentos. Nesse sentido o jornal faz um apelo à PM para manter o “sangue frio” e finaliza mostrando o quanto as atitudes do prefeito Haddad não estão sendo “nem um pouco claras”, mostrando uma ida e vinda em sua postura, ora contrária, ora aberta ao diálogo, como se não quisesse “pagar o preço de atitudes nítidas”.

Opinião pública faz algo acontecer

Esses exemplos já mostram o dinamismo de uma cobertura jornalística.

Neste domingo, momento de interregno entre as manifestações, o destaque não poderia ser outro, e não somente no Estadão. As três ondas de vaias que a presidente Dilma sofreu na abertura da Copa das Confederações em Brasília tomam conta dos noticiários e das redes sociais, mostrando que, muito além da “polícia fascista do Alckmin” ou do “fim do aumento de R$ 0,20”, existem outras fortes críticas ocorrendo neste momento, e que se alguém (como a presidente Dilma) ou algum partido (como o PT) pensam em levar vantagens com o que está ocorrendo em São Paulo, a coisa pode se revelar bem mais complicada.

Talvez estejamos vivendo um momento especial. Daqueles em que os políticos e a mídia deixam o lugar de protagonistas do espaço público de discussão e abrem espaço para as manifestações e a opinião pública que, mesmo em seu caráter difuso, faz algo acontecer e faz com que os discursos de políticos e da mídia tenham que ser mais dinâmicos talvez do que gostariam, de fato.

Bem, mas pelo que parece, só estamos no meio do caminho.

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José Henrique P. e Silva é cientista político, São Paulo, SP