Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sem controle

Embora muitos se digam surpresos com o recado das ruas, como a imprensa vem chamando as manifestações que desde 6 de junho tomaram os centros das principais cidades brasileiras, já havia sinais bem claros do descontentamento de parte da população com os rumos dos investimentos públicos no país. A insatisfação cresceu, sobretudo, após a implantação de uma política de remoções e “embelezamento” de amplas áreas urbanas, sob o pretexto de preparar o país para sediar grandes eventos internacionais.

Uma das primeiras reações contra a privatização do espaço público aconteceu em Porto Alegre, no ato de Defesa Pública da Alegria, em outubro de 2012. Convocados através das redes sociais, centenas de jovens tomaram o centro da cidade de forma pacífica e irreverente, partindo da Praça Montevidéu, em frente ao prédio da prefeitura. O alvo, no entanto, estava a alguns metros dali: o boneco inflável de sete metros reproduzindo o Tatu-Bola, símbolo da Copa do Mundo de 2014, que ocupava sem cerimônia o Largo Glênio Peres, em frente ao Mercado Público.

Garoto-propaganda de um dos patrocinadores, o mascote encarnava os interesses corporativos por trás do evento mundial, devidamente protegidos por um grupo de 20 policiais. Com a chegada dos manifestantes e a tentativa de ultrapassar as barreiras de contenção, a reação policial foi imediata: balas de borracha, gás de efeito moral, golpes de cassetetes. A noite acabou com dezenas de jovens feridos e o boneco inflável murcho no chão. Está lá, no YouTube.

Um dos piores

Em março de 2013, após um longo e conturbado processo judicial para retirada dos índios da Aldeia Maracanã, no antigo Museu do Índio, um grupo de jovens fechou as pistas da Avenida Radial Oeste, Zona Norte do Rio, numa última tentativa de barrar a desocupação. A polêmica quanto ao destino do espaço, considerado estratégico pela proximidade do Maracanã, começou em outubro de 2012, quando o governo do estado do Rio de Janeiro decidiu construir um estacionamento e um centro comercial no lugar do casarão onde funcionou o museu entre 1910 e 1978.

A 8ª Vara Federal Cível concedeu ao governo estadual permissão para construir no lugar o Museu do Futebol. Os índios foram notificados em 15 de março. No dia 22, o pequeno grupo que resistia sob os muros foi surpreendido com a invasão do Batalhão de Choque. Lá fora, os jovens estudantes que protestavam contra a desocupação eram contidos com spray de pimenta, cassetetes e armas de fogo. Nas redes sociais, vídeos, fotos, documentários e notícias sobre a apropriação do espaço circulavam livremente, tecendo narrativas que contrastavam com o discurso oficial de preparação da cidade para os eventos mundiais.

Sem falar nas muitas manifestações contra a corrupção e pela melhoria dos serviços públicos. Em março de 2012, os estudantes foram para rua contra o aumento de 60% no valor da passagem das barcas que fazem a travessia Rio-Niterói. Os bilhetes, que custavam R$ 2,80, passaram para R$ 4,50, causando protestos nas duas estações – Praça XV e Araribóia. O serviço foi considerado um dos piores do estado pelos manifestantes, que protestaram sob a vigilância constante do Batalhão de Choque.

Agressões, prisões e acusações infundadas

Se alguém não entendeu que havia uma insatisfação aguda e latente contra os destinos dos investimentos e serviços públicos no país, não foi por falta de recado. Causa surpresa, portanto, que algum governante se diga surpreendido pelos movimentos que têm parado as principais capitais brasileiras.

Há muito em comum entre estas e muitas outras manifestações que pontuaram o país nos últimos anos e a primeira, sem dúvida, é de que sua existência baseia-se na lógica das redes sociais da internet. Os líderes convidam os amigos que convidam os amigos e assim produz-se uma amplificação do convite original. Mas não só isto: a reverberação na rede das primeiras manifestações na rede mostrava o vigor do movimento e estimulava novas adesões.

Também em relação ao tratamento dado pelo Estado, há muito em comum. Em todas as manifestações havia a presença ostensiva da polícia. Em todas, registrou-se o desrespeito aos direitos humanos, com agressões, prisões arbitrárias e acusações infundadas. No Rio, 12 jovens que não se conheciam foram presos aleatoriamente e acusados de formação de quadrilha, na noite do dia 17. Como observaram os advogados da OAB, era a quadrilha mais heterogênea de que se ouviu falar.

Pauta jornalística fora da realidade

Quanto à mídia, a primeira reação, apressada, foi a de reproduzir o discurso oficial, criminalizando os manifestantes, classificados invariavelmente de baderneiros. Mas, nos últimos dias, a persistência dos jovens nas ruas e a repercussão do movimento na mídia internacional obrigaram os órgãos de imprensa a uma revisão no tom do tratamento dado aos manifestantes. A presença de centenas de jornalistas estrangeiros no Brasil, no momento em que se realiza a Copa das Confederações, e a proliferação de canais alternativos de informação, através da internet, criam um clima propício para que as vozes das ruas falem com o mundo em seus próprios termos.

Talvez este tenha sido o dado mais original desta manifestação, além, é claro, da profundidade e extensão da mobilização – várias capitais, dias seguidos, milhares nas ruas. O espaço que o movimento conquistou na imprensa tradicional, que começou com uma cobertura pequena e foi, aos poucos, ampliando e dando mais destaque a ela, sem dúvida foi algo original.

Uma manifestação sem partido, com lideranças dispersas, e bandeiras difusas tinha tudo para ficar relegada ao pé da página. Mas não ficou. Cresceu, tomou a página principal, saiu da editoria de cidade, invadiu a política, conquistou a capa. Roubou a cena e o prestígio da Copa das Confederações, um evento para o qual um batalhão de repórteres – e mídias – havia se mobilizado. Tudo por água abaixo. Se na segunda, 17/6, as primeiras edições dos telejornais continuavam a cobrir os jogos e treinos das seleções que disputam a Copa como se fossem os eventos mais importantes do dia, a noite mostraria quão deslocada da realidade estava a pauta jornalística.

A contrainformação invadiu o circuito oficial

A terça-feira amanheceu coberta de notícias sobre o “o dia histórico” que as cidades viveram na noite anterior. No Rio, a passeata dos 100 mil inspirou dezenas de artigos que a comparavam com outras manifestações que passaram pela Candelária e atravessaram a Rio Branco pedindo por democracia. Mas o momento “histórico” para os movimentos que quebraram a pauta na marra aconteceu na noite do dia 20, em plena Rede Globo. Depois de mais três horas ininterruptas de transmissões ao vivo, nas quais a âncora Patrícia Poeta alternava uma narrativa vaga do que via na tela a pedidos de socorro à produção, um desolado William Bonner jogava a toalha: explicava que estava até aquele momento planejando a edição do Jornal Nacional, mas àquela altura nenhuma edição fazia sentido, já que estavam narrando, ao vivo, um jornal “ao sabor dos acontecimentos”.

Dito isto, prosseguiu alternando uma narrativa repetitiva aos relatos ao vivo de repórteres estrategicamente posicionados a uma distância segura. Nada de personagens, nada de histórias pessoais. A vida sem cortes. Diferente de outras coberturas, mesmo as de catástrofes que irrompem sem aviso, não houve a mobilização de correspondentes ao redor do mundo mostrando as repercussões do fato, nem a de especialistas tentando decifrar o sentido dos acontecimentos. Nada de infográficos ou histórico. Apenas o correr dos acontecimentos e um grupo de experientes repórteres limitando-se a descrevendo as cenas, ainda que tentassem enquadrar os sentidos.

No dia seguinte, nos primeiros jornais de rede, o que se via era a velha fórmula jornalística tradicional. Havia uma versão coesa para o que acontecera no dia anterior e uma série de imagens e testemunhos editados que a confirmavam. Mas para aqueles que acompanharam ao vivo, pela TV e através das redes sociais, a realidade não era tão simples quanto se pretendia mostrar. Foi de fato um dia histórico, em que a contrainformação invadiu o circuito oficial. No jornal O Globo, a manchete principal dizia: “Sem Controle”. Nada mais apropriado.

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Carla Baiense é professora universitária, Rio de Janeiro, RJ