Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Hora de ler David Brin

Milhões de brasileiros espionados pelos EUA dá uma boa manchete. A notícia trazida pelos repórteres Glen Greenwald, Roberto Kaz e José Casado, que desde o domingo se desdobra cá nas páginas do Globo, tem alto impacto e é informação nova, da mais alta relevância. O governo brasileiro vai falar alto, o governo americano fará algum tipo de pedido de desculpas, e dificilmente algo mudará. Os americanos continuarão espionando a rede como provavelmente também o fazem China e Rússia e, se for muito competente, o governo brasileiro tentará iniciar um processo tecnicamente parecido. Se conseguir. Mas, assim como o sociólogo catalão Manuel Castells ajuda a compreender os protestos que assolaram o Brasil nas últimas semanas, o escritor de ficção científica americano David Brin dá uma boa base para entender a maneira como tecnologia interage com grandes empresas e a nossa privacidade.

A tese de Brin, que em 1998 lançou o livro The Transparent Society (A sociedade transparente, não traduzido no Brasil), é a de que o avanço tecnológico está nos levando a uma bifurcação na estrada da democracia. Teremos de optar por que caminho seguir. Em um, governos e grandes empresas terão o monopólio de uma quantidade imensa de informação a respeito de uns, outros e de nós. No outro, a sociedade transparente, tudo, o muito mais, será público.

Operadoras de cartão de crédito, assim como concessionárias de telefonia celular, já sabem muito sobre nossos hábitos. Para não falar sobre seguradoras de saúde. Hoje, fazem pouco com estas informações. Os mecanismos de cruzar dados e perceber padrões ainda são pouco sofisticados. Mas, com o tempo, se tornarão verdadeiros e nítidos retratos de quem somos, o que pensamos, por que fazemos. O governo, enquanto poder estabelecido, terá acesso a muito desta informação acumulada. Muito deste uso será legítimo. E muito será abusivo. Quando uma instituição sabe muito sobre você, ela tem poder enorme. A capacidade de botar preço alto em sua apólice de seguros é apenas a mais óbvia.

O antídoto proposto por Brin é uma experiência radical de Iluminismo, o movimento filosófico e político do século XVIII que inspirou as revoluções americana e francesa além de inspirar as democracias de hoje. Entre suas inúmeras brigas internas, o que os filosofes franceses, alemães, escoceses e tantos outros tinham em comum era o pragmatismo. E um dos traços mais claros do pragmatismo deles era sua crença em que mais informação gerava governos melhores. Em tempos de absolutismo, era uma proposição radical. Em alguns cantos, continua sendo.

Brin não acredita que governos deveriam ser proibidos de espionar. Tampouco que empresas deveriam ser impedidas de utilizar informação sobre seus clientes para fins comerciais. Ele apenas sugere que cidadãos e clientes deveriam saber o que está acontecendo. Deveriam ter também acesso a tecnologia que lhes permita saber quando estão sendo espiados.

A questão é pragmática. Hoje, governos e empresas, com base em inúmeros argumentos, operam em segredo. No caso de governos, o segredo de Estado é utilizado para proteger o legítimo e o incompetente, o necessário e o abusivo. Para manter algo secreto, não deveria bastar a um governo alegar o necessário segredo. Deveria ser obrigado a gastar muita lábia, publicamente, para conseguir o privilégio.

O risco é a criação de uma nova espécie de feudalismo. O capitalismo, quando poucos têm acesso a grandes segredos, é distorcido. O mercado só é livre na aparência. E, como senhores feudais, alguns poucos garantem o domínio sobre instituições. É inevitável, como sugeria Adam Smith, que para o mercado funcionar bem, a maior quantidade possível de compradores e vendedores deva ter amplo acesso a informação. É verdade para o mercado e é uma metáfora perfeita para a sociedade.

Big Data está chegando. Mais informações sobre todos nós estarão nas mãos de uns poucos grupos. Acontecerá. Se seus métodos forem transparentes, se tiverem de justificar como usam cada informação, a liberdade segue garantida. Se, no entanto, a cultura do segredo persistir, a democracia é que perderá.

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Pedro Doria é jornalista do Globo