Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nem respostas conclusivas nem pedidos de desculpas

Na sexta-feira à noite [19/7], o vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, telefonou para a presidente Dilma Rousseff. Segundo informou o Palácio do Planalto, Biden comentou as denúncias de que autoridades americanas vêm monitorando telefonemas e mensagens eletrônicas de cidadãos e instituições brasileiras. Consta ainda que ele “lamentou a repercussão negativa do caso na sociedade brasileira” e reforçou o convite para que uma delegação de Brasília vá a Washington receber mais esclarecimentos sobre a imensa confusão que se instaurou no universo delicado das relações internacionais desde que Edward Snowden, ex-agente da CIA, acusou os serviços de inteligência de seu governo de vigiar ilegalmente as comunicações pessoais de, virtualmente, toda a humanidade (o que inclui, como se sabe, a população brasileira). Pelo que foi divulgado, o vice-presidente americano não deu respostas conclusivas sobre nada, nem pediu desculpas. Em suma, ligou apenas para dizer “alô, Dilma, foi mal aí, depois a gente fala melhor”.

Desde que, em 6 de junho, as denúncias de Snowden explodiram no diário britânico The Guardian graças ao trabalho do jornalista Glenn Greenwald, não havíamos visto um gesto tão arrogante quanto esse telefonema. Em lugar de ter representado um sinal de humildade da Casa Branca, foi mais uma demonstração de “complexo de superioridade”. Por três motivos: 1) a ligação não elucidou coisa alguma, 2) veio com atraso e 3) quem deveria estar do outro lado da linha não era o vice, mas o titular, Barack Obama em pessoa. Deixou no ar a impressão de que, aos olhos Washington, em se tratando de Brasil, uma ligação tardia do “sub” deve bastar. É como se Obama desse de ombros, numa atitude de descaso imperial. Ou imperialista.

Falemos, pois, de imperialismo. O que quer dizer essa palavra? Ela andava sumida. Vinha perdendo terreno para uma outra, globalização, que monopolizou as falas sobre a acelerada internacionalização do trabalho, dos mercados e do capital, sempre sob a chave da língua inglesa e a métrica dos modelos de gestão patenteados por marcas americanas, com escassas exceções. Quanto à velha palavra imperialismo, perdeu sua “empregabilidade”, como se fosse um fóssil, incapaz de significar mais nada além de queixumes panfletários.

Exercício do poder

Agora talvez ela volte à praça. Junto trará um pouco da sua história conflituosa. No final do século 19, o escritor Mark Twain – o gênio que ajudou a fundar a literatura moderna dos Estados Unidos – não se cansava de repetir: “Eu sou anti-imperialista e nunca aceitarei que a águia imperial pouse as suas garras em nenhum país estrangeiro.” O que foi feito hoje da “águia imperial”? Dia desses alguém falou de um inacreditável artefato submarino que, estacionado poucos metros acima de cabos intercontinentais estendidos no fundo dos mares, intercepta sorrateiramente os dados digitais que trafegam por ali. Talvez a águia tenha ido parar dentro de um escafandro cibernético, dotada de garras “wifi”, para se imiscuir na correspondência alheia. Mark Twain não aceitaria. “Afirmamos que a política conhecida como imperialismo é hostil à liberdade e tende ao militarismo”, protestava o autor de As Aventuras de Tom Sawyer.

Depois dele, o russo Vladimir Ilitch Lenin deu outros sentidos à mesma palavra. Acreditava que o imperialismo era um modo de produção avançado (a “fase superior do capitalismo”) engendrado pelo capital financeiro (que, por sua vez, resultaria da fusão do capital bancário com o capital industrial). Estudando o movimento de caixa de 19 bancos na Rússia no ano de 1913, constatou que as casas bancárias tinham investido 1,8 bilhão de rublos em atividades produtivas e outros 2 bilhões em atividades especulativas. Descobriu ali o capital financeiro e a natureza profunda do imperialismo, que não decorria apenas da ganância, mas das leis constitutivas de um modo de produção que, tendo internacionalizado a economia, precisava internacionalizar também o exercício do poder.

Imperialismo digital

A partir de então, falar de imperialismo virou coisa de comunista. Até que, a partir do final do século 20, quando o comunismo perdeu freguesia, a palavra imperialismo foi para a Sibéria do vernáculo. Mas não morreu. Ainda guarda significado que atenderia tanto a Mark Twain quanto a Lenin: o imperialismo brota de um Estado que alonga seus tentáculos para além das terras e dos cidadãos a que deve sua legitimidade; o Estado imperialista age além de sua própria soberania, não por estar em guerra contra outro Estado, mas por trazer em si a presunção tácita de que tem o poder (e, por vezes, o dever) de governar continuamente os destinos de outros povos – mesmo que para isso tenha de sacrificar os valores sobre os quais ergueu sua grandeza.

Se voltarmos agora às revelações de Snowden, veremos que estamos diante, sem tirar nem pôr, de uma prática imperialista. A aliança subterrânea entre a tecnologia dos gigantes da internet e as fabulações geopolíticas do Pentágono fez parecer travessura infantil, quase inofensiva, a suposta colaboração do Google com a ditadura de Pequim – e reduziu as redes digitais a um descomunal “Cavalo de Troia”, um supervírus que todos espiona. Quanto mais usam a internet, mais as pessoas são vítimas da rede mundial de bisbilhotagem americana. O Tio Sam da nova era desdenha de valores como a privacidade, a liberdade individual e o direito ao segredo íntimo. Despreza-os. Dá de ombros. Quando chamado a se justificar, fala de segurança. Mas atenção: a sua segurança não é a nossa segurança, não é nem mesmo a segurança dos americanos comuns, é apenas a segurança de uma ideologia militarista que julga ser a encarnação suprema do Estado americano. Uma ideologia contra a democracia.

É por isso que, no caso presente, a garra da águia faz sangrar o coração da própria águia. O imperialismo digital envenena o próprio império.

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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM