Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

PRISM está te vigiando

Ele não passava de um fantasma exprimindo uma verdade que ninguém jamais ouviria. Mas enquanto a exprimisse, a continuidade não seria interrompida. Não é fazendo ouvir a nossa voz, mas permanecendo são de mente que preservamos a herança humana. Ele voltou à mesa, molhou a pena e escreveu: Ao futuro ou ao passado, a uma época em que a verdade existir e o que for feito não puder ser desfeito: cumprimentos da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensar”. (“1984”)

Quando George Orwell escreveu “1984”, no final da década de 40, ainda não havia internet, comunicações simultâneas, transmissões por todo o globo. Quando o autor criou o “Grande Irmão” (o Big Brother), as ruas da cidade não eram vigiadas por câmeras de vídeo. Mesmo sem tantos recursos tecnológicos, ele já prenunciava novos mecanismos de poder, que, se naquele tempo pareciam fantasiosos, são hoje metaforicamente encaixados nas técnicas de disciplina que norteiam a sociedade digital. Aliás, não só no sentido metafórico, mas também no literal.

Enquanto os governos expressam a ideia da liberdade de informação, novos métodos de controle se espalham com a mesma velocidade da difusão da própria comunicação. Um paradoxo bem compreensível, quando se pensa que a tecnologia nos proporciona facilidades e aprisionamentos, realidade e distância, informação e desinformação. Uma contradição semelhante ao duplipensar de Orwell.

Novas iniciativas de transparência são cultivadas pelo mundo, governos começam a liberar acesso a registros e documentos. Embora a consciência de interesse público já esteja amadurecida, pouco se viu florescerem os desejos do Estado cristalino, que funcionaria através do vidro, em que seus representantes agiriam em frente aos olhos de quem representam. O vidro virou um espelho, distorcidamente refletido e disfarçado de aspiração comum.

As novas técnicas de vigilância são tão aperfeiçoadas quanto as de vazamento, do acesso ao que se faz por detrás das cortinas. O que muitas vezes a opinião pública menciona e impõe como sigilo é o interesse público, o direito do cidadão, a escolha que deveria ser da sociedade. E assim como os governos constantemente espionam, são também desmascarados.

Edward Snowden, 30, é o ex-analista de sistemas da Agência de Segurança Nacional do governo dos Estados Unidos (veja o site da National Security Agency aqui) que ficou quase 40 dias em zona de trânsito no aeroporto de Moscou, até receber, no dia 1º de agosto último, documento de asilo do governo russo válido por um ano. Após revelar as táticas ilegais de investigação da agência norte-americana, Snowden fugiu do país para Hong Kong e, de lá, procurou abrigo em terras russas.

Snowden denunciou que o governo tem acesso a qualquer informação privada, e-mail, rede social, mensagem de celular em qualquer lugar do mundo. Seriam grampos telefônicos, vigilância de atividades on-line, tudo sem autorização judicial, com a colaboração das empresas de informática, como a Microsoft, o Facebook e o Google (que negam). O PRISM, nome que o programa teria, age como Grande Irmão, como método de vigilância e controle do cotidiano particular dos cidadãos.

Não é segredo que as inteligências espionam seus aliados e rivais. Quanto maior o poder e influência, maior o esforço destinado às estratégias. Snowden afirma também que a Grã-Bretanha possui programa parecido. Nada espantoso em pensar que Rússia, China, França, Brasil, Irã fazem o mesmo, cada um com sua intensidade.

O discurso oficial exalta o sigilo e é defendido pela opinião pública – que, de pública, nada tem. É dito que o Estado combate o terrorismo, o vandalismo, a depredação e, por isso, precisa espionar suspeitos e agir pela defesa do bem maior. Nem é preciso explicar por que as pessoas não acreditam nas intenções heroicas do governo, que zelaria pelo seu povo com rigor. Na prática, o rigor é direcionado a outro objetivo: o da manutenção do status e do poder.

Além do mais, as táticas de vigilância muitas vezes corrompem a Constituição e ferem direitos que deveriam ser assegurados. O segredo acerca desses programas promove figuras obscuras, em que esconder significa dever e as pessoas desconfiam do que lhes foi ofuscado – e questiona o porquê de todo um aparato energicamente defensivo sobre algo que seria para o bem comum. Na verdade, todos se veem como vítimas da invasão, do controle do Estado, de seus passos e ideias revelados, da vigilância do Grande Irmão.

Ministério da Verdade

A população norte-americana reagiu com desprezo, mas também com bom humor. Na internet, Barack Obama se tornou o vizinho fuxiqueiro, aquele que sabe da novidade fresquinha do bar da esquina, que repousa na janela procurando o último “causo”. Foi satirizado e ao mesmo tempo condenado pelo seu povo, pelos governos e a população mundial. O olho do Grande Irmão, que pertencia a todos, foi trocado pelos olhos de Obama e sua falsa esperança de renovação. “Yes, we can”?

A situação fica mais embaraçosa por Snowden ser o sucessor de outro escândalo do governo. Bradley Manning foi considerado herói e inimigo após vazar, em 2010, milhares de documentos secretos diplomáticos e das invasões ao Iraque e Afeganistão para Julian Assange, do WikiLeaks, aliás, outro perseguido internacionalmente. Declarado culpado (ainda cabe recurso), no último dia 30 de julho, de 19 das 21 acusações apresentadas, incluindo espionagem e furto, que podem somar 136 anos de prisão, Manning foi responsável pelo esclarecimento de acontecimentos sombrios e ilegais cometidos pelo governo norte-americano – a propaganda do complexo industrial militar. Virou símbolo da transparência no país, aclamado pela juventude, execrado pelos conservadores.

Ironicamente, Manning foi condenado por espionagem, comprovadamente cometida pelo PRISM, denunciado por Snowden. A diferença é que, no primeiro caso, a informação é pública, de interesse de todos os cidadãos, e zela pela consciência e o direito de decisão que a informação proporciona. O segundo caso é invasão privada, do direito íntimo, de guardar, escrever, enviar, pesquisar conteúdo. Como diz o próprio Julian Assange: “Transparência é para os governos e as grandes corporações, privacidade é para os indivíduos” – noção invertida pela lógica do poder.

Os chamados whistleblowers são considerados ativistas por boa parte da população. Tornam-se heróis, pessoas que abdicaram de vidas confortáveis e condenaram o próprio futuro pela verdade, pela informação além dos comunicados oficiais, nunca questionados. Uma espécie de jornalismo radical, num tempo em que o próprio jornalismo vive crise de confiança e investigação. O Grande Irmão também robotizou a prática jornalística, em que uma nota e duas palavras trocadas por e-mail são suficientes para escrever uma matéria. Suficientes para o jornal, seu dono e os comunicadores oficiais. Longe de ser o bastante para o público, para a notícia e para o jornalista.

Não só a internet provoca mudanças irreversíveis para o jornalismo. A queda da credibilidade se dá pelos meios alternativos, sim, mas também pela verdade maior revelada. Manning mostrou o que os jornais não ousaram pesquisar, não poderiam revelar ou ter acesso. Snowden denunciou uma prática do governo que um competente jornalismo investigativo descobriria. Enquanto a mídia tradicional se satisfaz com notas oficiais e respostas manipuladas, o público se identifica com a informação franca e desafiadora. É claro que, após os whistleblowers sacrificarem a carne, os urubus rodeiam em volta pela audiência.

A consequência se dá porque, na era da informação, a verdade é vista como libertação. Aliás, sempre foi, mas hoje essa ideia é consolidada por um público que amadurece a democracia com crescente participação. As informações que os governos devem ter a obrigação de esclarecer, que envolvem questões sensíveis e dependem do conhecimento e do aval da população. É a verdade que tentam esconder porque as pessoas não aceitariam. Revela que a democracia é maquiada, usa uma máscara de leveza enquanto suas ações vigiam e controlam de forma precipitada e irresponsável.

Em “1984”, a população venerava o Grande Irmão, que penetrava no inconsciente e transformava escravidão em desejo. As pessoas queriam o espetáculo ilusório, acreditavam na proteção e nas boas intenções do Estado, e sem a capacidade de pensar por si, refletiam, como espelho deturpado, o que o poder queria. O vidro se torna espelho.

Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força.

Os lemas do Grande Irmão são assombrosos, mas parecem que nunca funcionariam em uma sociedade com as ferramentas disponíveis para o conhecimento. Irônico pensar que essa mesma sociedade aceitou a ideia de “guerra pela democracia”, em que países foram destruídos pela “nobre intenção” de libertar povos, a “violência justificada pela paz”. Ou então pensar que a liberdade seja definida pelo direito do cidadão ter crédito em um banco ou escolher um par de tênis entre 100 modelos. Ou, ainda, o governo que prende denunciantes porque afirma que certas informações são confidenciais e que o sigilo garante a vitória e, às vezes, é preferível ser ignorante sobre alguns assuntos.

Hoje o controle e a vigilância são sofisticados e levam o nome, mais uma ironia, de inteligência. Técnicas que se aperfeiçoam e se travestem de segurança pública, de bem comum, de palavras que facilmente conquistam o imaginário das populações. Caracteriza-se a desumanização, a robotização e a uniformização como evolução, liberdade, democracia. A coragem de analisar as entrelinhas nos mostra páginas condizentes com a mensagem de Orwell. Talvez, ele mesmo diria: “Estimados líderes, '1984' não era para ser um manual de instruções”.

Snowden e Manning aguardam pelo futuro – um futuro pouco esperançoso, talvez. Mas a vitória é maior que o sacrifício, pois sabem que, como anunciadores da verdade, continuam sãos e humanos: “Mas depois de lê-lo tinha maior certeza de não estar louco. Estar em minoria, mesmo em minoria de um, não era sintoma de loucura. Havia verdade e havia mentira, e não se está louco porque se insiste em se agarrar à verdade mesmo contra o mundo todo”. (“1984”)

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Natássia Massote é jornalista