Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A banalidade da espionagem

As revelações sobre o sistema de espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA) deveriam ter criado uma tempestade para Barack Obama e o Congresso. Após o vazamento sobre o programa Prism, as autoridades insistiram que só haviam monitorado estrangeiros fora dos EUA e garantiram que o programa só tivera implicações domésticas tangenciais porque grande parte da infraestrutura mundial da internet está no país.

Logo ficou claro, porém, que essas declarações tranquilizadoras eram mentiras. Ao contrário, revelou-se que os programas foram usados sistematicamente para coletar informações de americanos com a cooperação da maioria das principais companhias telefônicas e de internet, Para todos os fins e propósitos, os bancos de dados da NSA retinham registros abrangentes de telefonemas e mensagens de texto de muitos americanos.

Apesar da ira oficial contra Edward Snowden e das afirmações apocalípticas de que ele havia comprometido gravemente a capacidade do governo de proteger os americanos de ataques terroristas, revelou-se que os únicos que não sabiam sobre o Prism era a população. O governo sabia, membros da Câmara e do Senado sabiam e, em alguns casos, haviam colaborado no esforço. E empresas como Apple, Google e Microsoft, embora possam não ter sabido de tudo, sabiam de alguma coisa. A reação do público, porém, foi curiosamente silenciosa. Isso ainda pode mudar, é claro, em particular se Glenn Greenwald, do Guardian, estiver certo e muitos documentos que ele e seu jornal obtiveram de Snowden, mas ainda não foram publicados, forem mesmo mais incendiários do que os divulgados até agora.

Duas reações

Assim como as tentativas ilegais dos EUA de prender Snowden mantiveram a história viva, o governo britânico recentemente, contribuiu ao obrigar o Guardian a permitir que membros do CGHQ, a NSA da Grã-Bretanha, fossem à redação do jornal para destruir os discos que continham materiais de Snowden – apesar de o editor-chefe do Guardian, Alan Rusbridger, ter lhes dito que existiam cópias fora do país e, portanto, fora do alcance deles e à disposição do jornal.

Por enquanto, o peso da espionagem causou pelo menos alguns arrependimentos no Congresso. Vozes da direita tradicional começam a descrever o que está ocorrendo como um ataque aos direitos dos cidadãos, enquanto os democratas se veem na incômoda posição de defender o que muitos deles consideram indefensável ou de causar problemas a um presidente que parece cada vez mais perdido.

A imprensa continuará cobrindo o caso, mas, apesar de o escândalo ter enfurecido as elites, o público parece bem menos preocupado. A questão é por que as coisas são assim? Estamos vivendo uma era dominada pelo utopismo tecnológico – a convicção de que e-mails e mensagens instantâneas são socialmente emancipatórios e a tecnologia joga a nosso favor.

É verdade que o utopismo tecnológico sofreu abalos, em particular aquela variante que proclamava que a mídia social estaria no centro das revoluções da Primavera Árabe. No mínimo, o golpe no Egito sugere que ninguém precisa do Twitter para fazer uma contrarrevolução. Mas, apesar de a ideologia da tecnologia como libertação estar em frangalhos, ela ainda não foi vencida.

A verdade é que, seja a serviço da emancipação ou da repressão, a maioria das pessoas que tem acesso à internet e às novas tecnologias já não consegue se imaginar vivendo sem elas. As novas tecnologias parecem não apenas prazerosas, mas capacitadoras. Ao mesmo tempo, porém, quase todo o mundo sabe que esse prazer e capacitação existem graças à permissão de governos e das corporações que controlam os grandes computadores em rede. Jaron Lanier expressou isso bem quando disse que “toda vez que você posta uma mensagem no Twitter atacando o 1%, você enriquece algum membro do 1%”.

Quanto à privacidade, para a maioria das pessoas ela também virou aquele “artefato reluzente do passado” sobre o qual Leonard Cohen cantou um dia. Aliás, não só alguém com uma hipoteca ou uma conta bancária, mas, no caso, alguém com um telefone celular compreende que tudo, dos registros bancários aos produtos que compra online , é registrado em algum lugar, seja por uma empresa privada, por seus próprios empregadores ou pelo governo.

Visto dessa perspectiva, é a falta de indignação do público sobre o escândalo de espionagem que é surpreendente, e não a indignação exibida por jornalistas, ativistas e políticos? Sim, o governo americano é, de fato, o maior Big Brother de todos, mas a maioria das pessoas toca seus assuntos diários espionada e com seus dados garimpados.

Alguém que esteja indignado com o que a NSA fez, e com a intimidação do governo americano sobre jornalistas e ativistas, insistirá que esse tipo de coisas não seja permitida numa democracia. A distância entre esses dois tipos de reações, porém, mostra a diferença entre o entendimento do mundo da elite e o do público em geral.

O estrondo e o gemido

Em poucas palavras, apesar de a elite acreditar que pode mudar as coisas, a maioria sabe que, exceto em raríssimas circunstâncias, ela não pode. Será que o público toma o escândalo da espionagem como uma afronta a sua liberdade? Possivelmente muitos tomam, mas a vida é cheia de afrontas sobre as quais a pessoa seria idiota de imaginar que se pode fazer alguma coisa. Os registros automáticos pelos quais as pessoas têm de pagar suas contas, marcar um encontro ou tentar obter informações são uma afronta. Os intermináveis códigos e senhas são uma afronta. As onipresentes câmeras de TV de circuito fechado nos centros urbanos, muita das quais foram instaladas antes do 11 de Setembro como medidas de prevenção contra o crime e controle de tráfego, são uma afronta.

E todas aquelas pequenas imposições do mundo pós-11 de Setembro, da exigência absurda de mostrar sua identidade em um prédio público à grosseria dos funcionários dos aeroportos americanos, são afrontas. Mesmo que a longa guerra contra os jihadistas terminasse amanhã com vitória dos EUA, será que alguém sugeriria que qualquer uma dessas medidas fosse cancelada?

O grande mito dos últimos 25 anos pode é a capacitação por meio da tecnologia. A grande verdade, porém, é que o estado de vigilância fica mais forte a cada dia em razão da tecnologia e do controle que Estados e corporações exercem sobre as pessoas. Em certo nível, todos sabem disso, mas alguns parecem surpresos e indignados com o alcance da espionagem da NSA. “É assim que o mundo termina”, escreveu T. S. Eliot em seu grande poema O Homem Oco. “Não com um estrondo, mas com um gemido”. Bem-vindos ao mundo pós-democrático. A propósito, a esta altura, vocês já estão vivendo nele há muito tempo. 

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David Rieff é escritor; publicado originalmente no Foreign Policy