Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O espião que sabia tudo

Em 1974, o presidente dos Estados Unidos, Richard M. Nixon, foi obrigado a renunciar ao cargo por causa da revelação de uma série de gravações secretas, feitas com equipamento especial, cujo alvo era uma única pessoa: o próprio presidente. As gravações demonstravam a cumplicidade de Nixon no arrombamento da sede do Partido Democrata, no edifício Watergate, em Washington, crime organizado por funcionários da Casa Branca.

Hoje, 40 anos depois, qualquer pessoa no mundo pode ser espionada através de sua correspondência eletrônica por agências governamentais extremamente poderosas, o melhor exemplo das quais é a Agência de Segurança Nacional (NSA) do governo americano.

Envolvida numa controvérsia sobre sua maciça vigilância a celulares e e-mails, feita em cooperação com empresas de telecomunicações, a NSA representa o mais recente casamento entre Estado e tecnologia.

Portanto, o que o funcionário da NSA Edward Snowden revelou ao mundo, com a ajuda de Glenn Greenwald, colunista do The Guardian, cujo parceiro brasileiro David Miranda foi preso por agentes britânicos por nove horas num aeroporto londrino no dia 18, em uma suposta ação antiterrorista, não deveria surpreender ninguém.

“Sem sentido”

O filósofo francês Michel Foucault elaborou detalhadamente o conceito “do olho que tudo vê” do Estado moderno no livro Vigiar e Punir (Vozes). Os Estados-Nações têm utilizado as mais modernas tecnologias para observar, controlar, prender, fazer experiencias com pessoas e matar grupos específicos de indivíduos.

Ainda é possível visitar o que sobrou de campos de concentração europeus como Sachsenhausen, ao norte de Berlim, local de atrocidades cometidas pelos nazistas com recursos tecnológicos. Depois da 2ª Guerra, o lugar continuou funcionando como centro de extermínio administrado pelos soviéticos.
Nos EUA, a tecnologia nuclear recebeu grande impulso como projeto secreto respaldado pelo governo na corrida para a primeira bomba atômica. O governo americano tentou monopolizar sua capacidade nesse campo. Hoje, líderes mundiais lutam com as consequências dessa primeira bomba, tentando impedir a proliferação de material nuclear e know-how que terroristas e Estados como Irã e Coreia do Norte poderiam empregar.

O sucesso dessa luta baseia-se na ideia de perpetuação do monopólio atômico sob controle do Estado ou de um grupo de Estados.

Nas comunicações, tal monopólio é impossível em sociedades democráticas porque a tecnologia se difundiu extraordinariamente. Até mesmo em sistemas autoritários, como a China, é difícil para o Estado evitar tal impacto.

Esse emprego da tecnologia fora da esfera governamental é mais uma razão pela qual não deveríamos nos surpreender com as revelações de Snowden. Muitos americanos já manifestaram preocupação com a possibilidade de empresas como Facebook e Google coletarem e usarem informações de usuários. Em conjunto, essas organizações tornam irrisória a capacidade de coleta de informações pelos governos. A vigilância maciça com emprego de recursos tecnológicos é a nova realidade de nosso dia a dia.

Enquanto Nixon, se quisesse, poderia ter destruído fitas da Casa Branca e apagado para sempre as informações nelas contidas, nossas informações digitais são um fato consumado.

Ao revelar que uma ordem para o jornal entregar ou destruir as informações digitais recebidas de Snowden veio do governo britânico, o editor do Guardian, Alan Rusbridger, considerou “sem sentido” a destruição de discos rígidos do jornal, dada a existência de cópias no exterior.

Sociedade livre

Cada vez que alguém navega pela internet, manda e-mails ou faz chamadas pelo celular, cada clique no teclado pode ser recuperado e analisado. Praticamente qualquer pessoa pode nos espionar.

O Estado que tudo vê de Foucault tornou-se a sociedade que tudo vê. O perigo para os sistemas políticos é que certos grupos – governamentais, privados ou criminosos – podem usar secretamente essas valiosas fontes de informação.

Portanto, “tudo ver” não equivale a “superintendência”. A esse respeito, a revelação de Snowden estimulou um debate importante sobre o alcance do Estado. Se não forem supervisionados e confrontados por uma imprensa forte, líderes e agências governamentais podem abusar mais facilmente do poder, sem falar nos possíveis fins criminais no uso da informação.

Sem uma supervisão ou sem uma imprensa livre, países do bloco soviético perpetraram a degradação ambiental e ignoraram suas trágicas consequências para o povo em geral.

A revelação de Snowden também nos lembra, mais uma vez, do delicado equilíbrio entre a necessidade de frustrar ataques terroristas, de um lado, e a defesa das liberdades civis e da imprensa, de outro.

A imprensa também se tornou vítima da sociedade que tudo vê. Talvez tão deletéria quanto a tentativa de bloquear a cobertura de Snowden e da NSA pelo Guardian seja o enfraquecimento da imprensa diante da competição representada por novas fontes de informação.

Os jornalistas e outras pessoas comprometidas com uma sociedade livre devem, em última análise, encontrar maneiras de usar a sociedade que tudo vê para recriar e fortalecer a noção de supervisão – tanto do governo quanto do setor privado.

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Kenneth Serbin é chefe do Departamento de HIstória da Universidade de San Diego. Foi presidente da Brazilian Studies Association de 2006 a 2008