Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os velhos preconceitos da elite brasileira

A chegada dos primeiros profissionais cubanos que vão atuar no programa Mais Médicos tem sido o principal destaque da grande mídia brasileira e das redes sociais. Nos últimos dias, presidentes de entidades médicas, jornalistas, cientistas sociais e blogueiros, das mais diversas tendências ideológicas, têm produzido inúmeros artigos e reportagens sobre o polêmico tema.

Como é do conhecimento de todos, os médicos estrangeiros trabalharão em municípios que foram preteridos por seus colegas brasileiros. De acordo com um decreto publicado pelo governo federal na segunda-feira (26/8), a carteira provisória dos médicos com diploma estrangeiro que atuarão pelo Mais Médicos deverá trazer uma mensagem expressa quanto à vedação ao exercício da medicina fora das atividades do programa. Sendo assim, em hipótese alguma se trata de um projeto que esteja tirando o emprego de profissionais brasileiros.

No entanto, a mídia hegemônica, ao invés de explicar à população o verdadeiro escopo do Mais Médicos, ressaltando seus aspectos positivos e negativos, limitou-se a atacar o programa e o governo federal. Desse modo, logo após o desembarque dos primeiros médicos estrangeiros, teve início uma enxurrada de falácias midiáticas e, não obstante, as redes sociais foram tomadas por declarações enfurecidas da elite tupiniquim.

Direito de todos

De acordo com os “especialistas” ouvidos pela imprensa nacional, o programa Mais Médicos, independentemente da falta desses profissionais nos rincões do país e nas periferias das grandes cidades, possui um viés estritamente eleitoreiro. Por outro lado, o fato de o Estado brasileiro não pagar os salários diretamente aos profissionais cubanos, mas repassar o equivalente a essas remunerações ao governo de Havana tem sido utilizado como pretexto para a mídia brasileira qualificar os profissionais cubanos como “escravos” do regime socialista.“Não é um programa para assistir à população, e sim, para repassar o dinheiro para Cuba”, afirmou o presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Geraldo Ferreira, em entrevista para a TV Bandeirantes.

Por sua vez, Eliane Cantanhêde, da Folha de S.Paulo, escreveu que os cubanos chegaram ao Brasil em “aviões negreiros”. Para Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja, os médicos caribenhos são “escravos de jaleco do Partido Comunista Cubano”. Todavia, no final da década de 1990 – quando Fernando Henrique Cardoso era presidente e José Serra, ministro da Saúde –, a publicação da família Civita apoiou a vinda de profissionais cubanos para atuar em alguns municípios brasileiros.

Ora, a não ser que se queira confundir a população e direcioná-la para determinada linha de pensamento, é difícil entender todo esse imbróglio promovido pela grande mídia sobre o repasse financeiro ao governo cubano. Afinal de contas, os médicos em questão são funcionários públicos, não atuam no setor privado. Em Cuba não existe a profissão autônoma de médico, pois ao contrário de nosso país, na ilha caribenha a saúde ainda é concebida como um direito a que toda população deve ter acesso gratuitamente e não se pode cobrar por isso. Como bem frisou o senador Cristovam Buarque, de repente aparecem pessoas que nunca defenderam direitos trabalhistas no Brasil querendo liderar movimento sindical em Cuba. Além do mais, para uma imprensa demasiadamente submissa aos interesses de Washington, não é fácil aceitar que a medicina cubana é uma das melhores do planeta.

Juventude mimada

Contudo, foi nas redes sociais, espaço onde não há limites para a liberdade de expressão, que as reações à chegada dos médicos cubanos foram mais contundentes. Diante de situações em que há a mínima possibilidade de melhoria das condições de vida das parcelas mais carentes da população, os preconceitos inerentes à elite brasileira, escamoteados pela hipocrisia cotidiana, tendem a aflorar. Foi assim com a política de cotas, com o Bolsa Família e com a “PEC das Domésticas” (só para ficar nos casos mais recentes) e não seria diferente com o Mais Médicos.

Para a jornalista Micheline Borges, “as médicas cubanas [negras, em sua maioria] têm cara de emprega doméstica” e não apresentam a postura adequada para exercer a profissão. Pelo Facebook, o médico Rogério Augusto Perillo “denunciou” ter sido demitido pelo prefeito de Trindade (GO) “para dar lugar a um médico cubano”. Segundo Rogério, com a repercussão do fato nas redes sociais, o prefeito teria “reconsiderado” a decisão e mandado readmiti-lo.

Por fim, a foto de um médico cubano negro que foi vaiado por jovens médicas em Fortaleza, publicado pela Folha de S.Paulo e compartilhada nas redes sociais, talvez tenha sido o exemplo mais emblemático da pueril reação da elite brasileira, em especial da classe médica, contra a vinda dos profissionais estrangeiros. Diferentemente de outras nações, onde são celebrados pela população local, no Brasil os médicos cubanos são recebidos com hostilidade. Coisas de uma juventude extremamente mimada que não suporta ter os seus desejos contrariados.

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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas, Brasil: Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG