Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Laurentino Gomes critica defensores de ‘biografia chapa-branca’

Autor de best-sellers centrados na vida de personagens históricos, como “1808”, “1822” e “1889”, o jornalista Laurentino Gomes fez uma defesa contundente das biografias não autorizadas ontem, em uma apresentação no estande brasileiro da Feira de Frankfurt. Ele afirmou que o Brasil corre o risco de virar um “paraíso da biografia chapa-branca” caso continue a vigorar o artigo 20 do Código Civil, que permite a proibição de biografias “toda vez que os biografados ou seus familiares decidirem recorrer à Justiça, às vezes sem sequer entrar no mérito do conteúdo da obra”, disse o jornalista.

Gomes criticou a postura de músicos que defendem o direito de veto a biografias alegando proteção da privacidade, como Roberto Carlos e os integrantes da organização Procure Saber, que reúne Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan e Chico Buarque, entre outros. Ele disse que “causa estranheza” ver estes artistas “cerrando fileiras com deputados da bancada evangélica para impedir a mudança da lei”. E criticou declarações recentes feitas ao jornal “Folha de S. Paulo” pela produtora Paula Lavigne, presidente da Procure Saber:

– Paula Lavigne diz que os artistas só “querem a verdade”. Esse é um argumento perigoso, usado pelo regime militar. É difícil entender como artistas que foram censurados pela ditadura se arrogam o direito de censurar o trabalho de biógrafos – disse o jornalista depois de sua apresentação.

Gomes disse que artistas, políticos e empresários são figuras públicas, “vivem disso e gostam de ser reconhecidos pelo publico quando isso contribui para o próprio sucesso”, e portanto não podem “se escudar na desculpa de proteção à privacidade para fugir do escrutínio de suas atividades em nome do interesse publico”.

– Nós, jornalistas, escritores e biógrafos, entendemos que toda pessoa tem direito à proteção legal de sua imagem contra difamações, calúnias ou injúrias. Isso, no entanto, não autoriza ninguém a impedir a circulação de um livro ou reportagem. Deixem que jornalistas, escritores e biógrafos trabalhem. Se eles mentirem ou cometerem injustiças, que sejam punidos de acordo com a lei. Mas sem censura!

Em entrevista coletiva realizada também ontem, a ministra da Cultura Marta Suplicy afirmou que a discussão sobre o projeto de lei do deputado Newton Lima (PT-SP), que permite biografias não autorizadas, vai ser “um debate quente”. Na terça-feira, durante um encontro com a delegação de 70 escritores brasileiros em Frankfurt, Marta pediu a opinião deles sobre a lei e ouviu uma defesa enfática da mudança da lei.

– Minha posição é de escutar todos os interessados. Esse é um debate da sociedade – disse Marta.

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Leia abaixo um trecho da apresentação de Laurentino Gomes na Feira de Frankfurt:

O Brasil é hoje um dos raros casos de pais democrático que impõe dificuldade ou mesmo censura ao trabalho dos biógrafos. Há inúmeros casos de jornalistas, escritores e biógrafos que tiveram livros proibidos ou foram obrigados a alterar o conteúdo de suas obras por decisão judicial. O caso mais famoso e dramático é o de Paulo Cesar de Araújo e sua biografia de Roberto Carlos, cujos exemplares foram proibidos e recolhidos por decisão da Justiça. Também tiveram problemas Ruy Castro com a biografia de Mané Garrincha; e Mary Del Priore, com “A história de Dilermando de Assis”, o assassino de Euclides da Cunha. Uma biografia do escritor João Guimarães Rosa, de autoria de Alaor Barbosa, só conseguiu ser publicada depois de uma batalha judicial de cinco anos. Esses são apenas alguns, e os mais famosos, de inúmeros casos.

A Constituição brasileira é uma das poucas, senão a única, do mundo que proíbe censura a criações artísticas, o que no meu entender inclui ou deveria incluir todos os gêneros literários, de ficção ou não ficção. A mesma Constituição assegura o direito à liberdade de opinião e expressão, o que inclui a liberdade de imprensa. O Código Civil brasileiro, no entanto (uma lei que deveria estar subordinada ao texto constitucional) abre margem à proibição de livros, biografias e até mesmo reportagens com o propósito de resguardar a imagem dos biografados ou dos alvos da investigação jornalística.

O Artigo 20 do Código Civil determina que “salvo se autorizadas ou se necessárias à administração pública ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”

É esse dispositivo do Código Civil que tem servido de base para que juízes proíbam a circulação de biografias toda vez que os biografados ou seus familiares decidirem recorrer à justiça, às vezes sem sequer entrar no mérito do conteúdo da obra.

Essa situação ameaça transformar o Brasil no paraíso da biografia chapa-branca, aquela que só é publicada mediante autorização prévia do biografado ou de seus familiares e representantes legais. O medo dos prejuízos decorrentes de eventuais embargos judiciais faz com que editoras encaminhem os manuscritos primeiro ao departamento jurídico e só depois ao editorial. O escritor Ruy Castro anunciou que não mais escreverá biografias enquanto a legislação não mudar. E quem leu os livros do Ruy sabe o que o Brasil está perdendo com essa decisão.

Um projeto de lei que mudaria isso, do então deputado Antonio Palocci (texto redigido por meu colega Galeno Amorim, ex-presidente da FBN), foi arquivado. Outro, mais recente, do deputado Newton Lima (PT-SP), garante “a divulgação de informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública, cuja trajetória pessoal tenha dimensão pública ou cuja vida esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade. Mas está parado no Congresso, agora com escassa chance de aprovação, alvo de manobra e chicanas regimentais de parlamentares interessados em zelar, para usar as palavras do Código Civil, pela própria “boa fama ou respeitabilidade” que, como todos sabemos, não é tão boa assim entre a classe política.

Causa estranheza ver artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, para não falar do próprio Roberto Carlos, cerrando fileiras com deputados da bancada evangélica para impedir a mudança da lei. Fiquei chocado ao ler uma entrevista de Paula Lavigne ontem na coluna de Monica Bergamo no jornal “Folha de S. Paulo”. Esses artistas invocam direito de privacidade e da própria imagem. Ela diz, textualmente, na última resposta: “Nosso grupo é contra a comercialização de uma biografia não autorizada”. Imagino e espero que seja um mal-entendido.

Artistas, políticos, empresários e escritores são figuras públicas porque atraem a curiosidade das pessoas pela sua criação artística (vivem disso e gostam de ser reconhecidos pelo publico quando isso contribui para o seu próprio sucesso), porque exercem função de interesse público ou porque afetam a forma como a sociedade funciona e se comporta. São, portanto, alvo legítimo da investigação dos jornalistas e também de escritores, biógrafos, pesquisadores e demais estudiosos que por eles queiram se interessar. Não podem se escudar na desculpa de proteção à privacidade para fugir do escrutínio de suas atividades em nome do interesse publico. Foi lindo, comovente mesmo, ver artistas circulando pelo Congresso, dando tapinhas nas costas de Renan Calheiros, para defender seus interesses.

Nós, jornalistas, escritores e biógrafos, entendemos que toda pessoa tem direito à proteção legal de sua imagem contra difamações, calúnias ou injúrias. Isso, no entanto, não autoriza ninguém a impedir a circulação de um livro ou reportagem. Deixem que jornalistas, escritores e biógrafos trabalhem. Se eles mentirem ou cometerem injustiças, que seja punidos de acordo com a lei. Mas sem censura!

Quero encerrar chamando atenção para um detalhe curioso da História. Ela não é uma ciência exata. Muda o tempo todo pela forma como olhamos o passado, seus eventos e seus personagens. É um instrumento de construção de identidade, e por isso é tão manipulada. É natural que isso aconteça.

A riqueza da historiografia depende da sua pluralidade de visões, narrativas e interpretações. Só assim chegaremos o mais próximo possível da verdade histórica, objetivo ultimo da atividade do historiador e também do jornalista, do escritor e do biógrafo.

Proibir ou dificultar a produção de biografias é engessar a História e tirar dela o seu componente mais encantador: a complexidade e a incerteza que envolve seus acontecimentos e personagens, alvos permanentes de novas descobertas e interpretações.

Um país que incentiva a biografia chapa-branca, pela censura ou pela imposição de obstáculos ao livre trabalho dos escritores, jornalistas e biógrafos, está condenado a não se reconhecer no espelho da História no futuro. Como, aliás, o Brasil tem grande dificuldade em se reconhecer no espelho justamente pela forma como sua Historia foi manipulada no passado, vitima da censura em períodos autoritários ou da propaganda oficial em períodos dominados pelo populismo e pela demagogia.

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Graça Magalhães-Ruether e Guilherme Freitas, do Globo