Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

É proibido proibir

Felizmente, todos nós temos opiniões, mas algumas questões parecem nos forçar a emiti-las publicamente. O tema das biografias é um desses temas, com milhares de tweets, posts e comentários favoráveis ou não à publicação de obras da vida de personalidades cultural, histórica ou politicamente relevantes, mesmo que essas não autorizem expressamente.

Sejamos sinceros. Uma parcela do nosso apoio ao direito da publicação de biografias não autorizadas se baseia em um dos mais estranhos e reais sintomas da nossa era, que é o interesse inexplicável nas celebridades, seja para admirá-las ou para achincalhá-las. Alguns podem alegar que ler sobre figuras públicas nos ensina lições do que fazer (ou não fazer), bem como permite nossa projeção, ainda que por instantes, para uma realidade, passada ou presente, repleta de acertos, vivências e erros.

Fato é que o mero caminhar da figura pública deixa rastros. Notícias, fotos, viagens, reportagens, concertos, declarações, tweets, posts. Nós acompanhamos esses rastros, com maior ou menor interesse. Surge, então, a figura do indivíduo que assegura que esses rastros serão seguidos, apurados, analisados. É o biografo ou a biografa.

Atualmente, há entendimentos diversos, incluindo por parte de Tribunais nacionais, de que essa rastreabilidade apenas seria permitida se assim autorizada pela personagem rastreada. No silêncio ou na negação desta, os rastros não poderão ser seguidos, tampouco comentados. Mas afinal, qual é a discussão jurídica efetiva que se trava nesse momento?

Ocorre que se aproxima a data de avaliação, pelo Supremo Tribunal Federal, da ação proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), buscando declaração da inconstitucionalidade dos Artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro, que exigem autorização dos indivíduos biografados ou de seus herdeiros para a publicação de obras que lhes digam respeito. O Artigo 20 do Código Civil estabelece que, exceto se autorizadas, a divulgação de escritos ou a publicação da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, se lhe atingirem a honra, a reputação ou se destinarem a fins comerciais. Ainda, conforme o Artigo 21 será inviolável a vida privada da pessoa.

Personagens públicas

A Anel entende que essas proibições seriam contrárias à Constituição, na medida em que limitariam o direito à informação, bem como instituiriam um cenário de censura privada. Na defesa dos Artigos 20 e 21, um conjunto de personagens folclóricas da cultura brasileira, emitindo opiniões contundentes e contrárias à exploração comercial de obras biográficas sem autorização. Caberá mais uma vez ao STF decidir sobre tema de interessa nacional.

O direito à informação é possivelmente o porto mais seguro da Constituição de 1988. Promulgada em período pós-censura, a Carta atual assegurou que o trânsito de informações é livre. E os excessos, pautados em inverdades e dados integralmente privados serão avaliados individualmente e, na medida do demonstrado, eliminados e reparados pelo causador.

Calúnias, injúrias e difamações? Processo neles! Contudo, alegam as vozes favoráveis à proibição das biografias não autorizadas, que o processo de reparação de danos é demorado e ineficiente. A solução? Proibir a publicação de qualquer obra sem que haja autorização, evitando eventuais transtornos.

Não parece consistente, tampouco eficiente, na medida em que, a partir desse princípio, qualquer relação social com qualquer potencial de dano não deveria ocorrer. Por exemplo, não viajaríamos, pois carro poderia quebrar, nem trabalharíamos, pois poderíamos ser demitidos. A proposta da proibição soa dissonante da proposta da Constituição, de permitir a livre manifestação do pensamento e, ainda, o direito à informação.

O sistema judiciário inglês se deparou, faz décadas, com um caso difícil. Um indivíduo recém-egresso do sistema penitenciário contestou, na Justiça, notícia publicada por jornal local, que avisava aos residentes sobre sua libertação, bem como sobre a sua condenação. De um lado, o direito da população local de ser informada sobre o regresso de um criminoso. De outro, o direito de um indivíduo, responsabilizado pelos seus atos e reformado pelo sistema penitenciário local, de recomeçar. Venceu o direito do indivíduo sobre o sensacionalismo da nota, que não informava, mas apenas renovava desconfianças. Equilíbrio de direitos.

Todos nós temos, individualmente, o direito de manter nossa privacidade preservada. Contudo, todos nós temos o dever de defender o direito à informação, incluindo aquela versando sobre rastros das personagens públicas, ampla e continuadamente deixados. Proibir o direito de rastreabilidade desses marcos é conceitualmente falho e, especialmente, contrário à nossa Constituição.

Biografias são odes às personagens públicas, pautadas em investigações cuidadosas de fatos passados e públicos. Os excessos e os desequilíbrios, assim como no caso inglês, deverão ser sopesados individualmente e, se verificados, reparados exemplarmente.

Podemos não ter interesse ou mesmo discordar daqueles que se interessam pelas personagens públicas. Mas devemos defender arduamente o direito dessas informações serem divulgadas. É nossa obrigação perante a Constituição.

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Benny Spiewak é mestre em direito da propriedade intelectual pela The George Washington University. Sócio de ZCBS Advogados