Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sorry Sigmund

O professor e pesquisador Paulo de Abreu Bruno, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi preso durante o protesto do dia 15 no centro do Rio de Janeiro, enquanto filmava o conflito entre policiais e manifestantes. A filmagem é parte de um projeto de pesquisa, mas ainda assim ele foi enquadrado na Lei 12.850/2013, caracterizado como participante de atos contra o patrimônio público, roubo, incêndio e formação de quadrilha – todos considerados crimes inafiançáveis.

O professor foi preso por documentar um acontecimento público, parte de um processo histórico em pleno desenvolvimento, que por sua vez é documentado todas as vezes que acontece, por toda a mídia. Trata-se, portanto, de um acontecimento histórico, e, por ser assim, o pesquisador procurava legitimamente documentar e reconhecer o que está se passando e que ninguém pode negar.

Concomitantemente a esse fato arbitrário, um grupo ironicamente autointitulado Procure Saber tem dado o que falar, justamente reivindicando o direito de não deixar ninguém saber nada que eles mesmos não queiram que seja sabido, a partir da defesa da proibição de textos que eles mesmos não autorizem. Saber sobre alguém deveria ser, dizem eles, um ato criminalizável, e a vida de um sujeito público pertence a ele como qualquer outra propriedade privada.

O tema, portanto, é urgente e eminentemente histórico – tanto naquilo que revela de nossa época (que confronta superexposição com o desejo de controlar, mesmo por censura, tudo aquilo que se expõe o tempo todo) quanto propriamente historiográfico, uma vez que a biografia, o estudo histórico e crítico do papel do indivíduo na constituição da sociedade e de sua época, é um dos gêneros históricos mais tradicionais. No mundo ocidental, ele começa com Platão e Xenofonte escrevendo sobre a vida de Sócrates e vai, já no período romano, a Plutarco (com sua Vidas Paralelas) ou Suetônio (com os modelares estudos literário-políticos Sobre os Homens Ilustres e A Vida dos Doze Césares), chegando à Idade Média com A Vida de Dante, de Boccaccio.

Contra o direito

Mas a questão atual não diz respeito a justificar a existência da biografia como gênero histórico. Essa discussão, aliás, é cheia de interpretações, refutações e distintas posições que vão do desprezo à apologia. A questão atual, do ponto de vista da história, diz respeito a como entender o que é “vida pública” numa época em que a sociedade desenvolveu uma verdadeira obsessão por essa vida e pela sua legitimidade.

A questão é pois o que significa “público” e o que é de interesse histórico e, portanto, de interesse da comunidade. Basicamente, o que define a figura pública não é sua “visibilidade” ou “fama”, mas o fato de que ao longo de sua trajetória essa figura (que pode ser “importante” ou “medíocre”, tanto faz) deixa rastros, documentos, que por causa da significância dessa trajetória dentro da trajetória histórica de uma comunidade ganha sentido e pode ser narrada, estudada, explicada e interpretada. Nesse caso, o sujeito é “sintoma” de seu tempo tanto quanto é “sintoma” desse tempo o desejo de saber sobre esse sujeito (o tema é muito bem discutido no livro organizado pela psicanalista Fani Hisgail Biografia: Sintoma da Cultura).

Como bem definiu o historiador francês Jacques diz Le Goff em sua biografia de São Luis, o indivíduo “se constrói a si mesmo e constrói sua época tanto quanto é construído por ela. E essa construção é feita de acasos, hesitações, escolhas”. Foi exatamente dentro desses princípios que o historiador Paulo Cesar de Araújo escreveu sua excelente biografia de Roberto Carlos, que deu início a essa síndrome atual de nossos poderosos-famosos em criminalizar a história – não a deles exatamente, mas de sua (e nossa) época. A proibição de circulação de um livro válido como esse é uma arbitrariedade do indivíduo contra a história da qual ele é parte.

Certa vez Freud recusou o pedido de um ex-paciente de biografá-lo. Ele argumentava que a “verdade biográfica” não existia. Nenhum historiador contemporâneo sério diria o contrário. Pois não se trata de buscar a “verdade”, que em história é sempre falível e precária, mas de procurar explicar um tempo, estabelecendo uma narrativa documentada sobre um objeto que se considera válido como testemunho. E são os historiadores que decidem isso.

Felizmente, o desejo do indivíduo Freud não foi respeitado, e graças a esse “desrespeito” podemos ler as biografias dele feitas por Ernest Jones ou por Peter Gay (biografias aliás muito diferentes entre si e em suas “verdades”) e assim aprender a pensar melhor sobre a psicanálise, sobre a sociedade vienense, sobre a ciência, sobre a cultura, sobre o significado dos corpos, da subjetividade, dos desejos. Enfim, sobre tudo aquilo do qual, direta ou indiretamente, somos parte. Quando se prendem professores com câmeras ou se censuram historiadores com suas pesquisas, é contra o direito à cultura e ao autoconhecimento que se está agindo.

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Francisco Alambert é professor de História Social da Arte e História Contemporânea da USP