Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O público e o privado IV

Hoje vou abordar dois aspectos da questão das biografias: o comercial e o cultural. Um ponto que tem sido enfatizado até aqui pelo grupo Procure Saber – ou pelo que a imprensa selecionou entre seus argumentos – foi a proposta de pagamento de royalties aos biografados. Penso que ela é equivocada. Vou explicar por quê.

No direito autoral, o autor deve obter uma porcentagem do lucro advindo da exploração comercial de sua obra. Se um editor publica o seu livro, deve lhe pagar parte da receita das vendas. Se um intérprete grava a sua música, idem. Se uma emissora de rádio a toca, ibidem. Toda vez que houver reprodução dessa obra, com finalidade comercial, o pagamento é devido. Mas o pressuposto é que a obra seja reproduzida, isto é, explorada em sua integridade formal. Se, entretanto, um crítico de literatura escreve um ensaio sobre a obra de um autor, a cobrança é indevida, pois se trata de uma nova obra, logo uma nova autoralidade (essa, sim, deve receber royalties de sua editora). Os limites entre a reprodução de uma obra e o que deve ser considerado uma nova obra não são claros, e se tornaram mais confusos com o surgimento de novas tecnologias. Assim, por exemplo, se alguém faz um mashup, usando uma parte de uma obra e misturando-a com partes de outras obras, estamos diante de reprodução ou nova autoralidade? Na minha opinião, de nova autoralidade, diante da qual não cabe pagamento de direitos nem mesmo necessidade de autorização.

Pois bem, sob esse aspecto da autoralidade, o que é uma biografia? Se é que se pode considerar a vida de um biografado uma forma, ela necessariamente não é reproduzida numa biografia. Uma biografia se serve de fragmentos da vida de um indivíduo (Barthes lhes chamava “biografemas”) e os seleciona, edita, compõe, interpreta, perfazendo uma nova forma, logo uma nova obra e, consequentemente, nova autoralidade. Portanto, quanto à autoralidade, uma biografia está para uma vida assim como um texto crítico está para a obra que explora. Não cabe divisão de direito autoral entre biógrafo e biografado porque só o primeiro é autor de uma biografia. O segundo “apenas” serviu de base para essa nova construção.

Sem demagogia

Resta decidir se é justo servir-se da vida privada de alguém para fins públicos. Se defendi a soberania decisória do indivíduo sobre a dimensão privada de sua vida é porque os limites entre público e privado têm sido enfraquecidos, com consequências muitas vezes ruins tanto para a esfera pública quanto para a vida privada. Ao contrário, desejo uma sociedade altamente rigorosa, aberta e participativa na esfera pública; e ao mesmo tempo discreta, independente, respeitosa quanto à vida privada. Liberdade não significa a mesma coisa nas dimensões pública e privada. Na pública, a liberdade de cada indivíduo depende das práticas dele e dos demais indivíduos, e por isso todos devem prestar contas sobre elas. Na dimensão privada, a liberdade de cada indivíduo é antes garantida por sua independência em relação às práticas dos demais.

Entretanto, a confusão entre público e privado reina na cultura, no jornalismo, nas redes sociais, na web em geral e até em políticas de Estado. Jogadores de futebol são denunciados e ameaçados por beberem em horários de folga; pessoas publicam material de autopromoção no mural dos outros no Facebook; nosso celular toca sábado de manhã para nos fazer ouvir uma mensagem gravada de alguma empresa vendendo produtos; o governo dos EUA espiona milhões de mensagens privadas; pessoas são perseguidas e agredidas por práticas – sexuais, comportamentais, morais – de sua vida privada etc. etc.

É esse o pano de fundo em relação ao qual eu escrevo quando insisto no fortalecimento dos limites entre público e privado, e não na sua dissolução. Essa dissolução não leva a uma sociedade mais democrática e livre, e sim a uma sociedade mais moralista, persecutória, infantilizada, acusatória, vigilante – logo menos livre. Biografias participam dessa dissolução, embora sem dúvida fortaleçam, ao mesmo tempo, a esfera pública pela construção crítica da memória. Compreendo e aceito, portanto, a posição dos que, como Wisnik, no cômputo de benefícios e prejuízos, defendem sua liberação.

Penso que Caetano, Gil, Chico e Mautner não entraram no debate com uma posição inarredável sobre a questão das biografias, mas, assim como eu, com a proposta de discuti-la a fundo, sem demagogia ou preconceito, e movidos, sobretudo, pelo sentimento da importância do respeito à vida privada. Compartilho com Chico a perplexidade com o fato de essa importância ser desprezada pela maioria, justo no momento em que novas tecnologias e possibilidades tornam tão necessário o seu fortalecimento.

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Francisco Bosco é colunista do Globo