Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O público e o privado V

A menos que surja um fator novo, essa deve ser a minha última coluna sobre a questão das biografias. Considero minha posição agora bastante formada e esclarecida. Hoje vou comentar alguns aspectos que rondaram a discussão e, por fim, encaminhar o sentido da discussão que penso deve ser realizada para o estabelecimento dos novos parâmetros legais.

A meu ver, foi notável no debate público via imprensa o não reconhecimento da legitimidade da discussão por parte dos defensores peremptórios da liberação das biografias. Os “defensores da liberdade” foram desde o início os que se comportaram da maneira mais autoritária. Vou analisar aqui duas de suas estratégias discursivas. A primeira foi a suposta oposição, martelada ad nauseam, entre o direito à liberdade de expressão e o direito à intimidade. Essa oposição, entretanto, é no mínimo problemática, senão falsa, como penso. A verdadeira oposição é entre o direito à informação e o direito à intimidade. Mas por que essa oposição nunca foi nem sequer aventada? O direito de livre expressão é afim ao direito à intimidade. Ambos dizem respeito ao indivíduo. Expressar-se é uma atividade que parte do si, do indivíduo, e se dirige ao mundo (o pref. ex-, em latim, como o eks, em grego, significam um movimento de dentro para fora). Já o direito à informação é diferente. Ele é um direito que incide diretamente sobre o outro. É, portanto, ele que se choca contra o direito à intimidade. Ora, mascarar a verdadeira oposição e opor o direito à intimidade ao direito à livre expressão é uma prestidigitação que legitima imediatamente a acusação de censura aos que defendem a prevalência daquele.

Histórico obscurantista

O outro recurso empregado foi o uso, também ad nauseam, da expressão “figura pública”. É, entretanto, importante observar, primeiramente, que a expressão é capciosa, pois anula, em seus próprios termos, a dimensão privada da vida do indivíduo que participa da esfera pública. Uma “figura pública” seria um indivíduo já de saída expropriado de seu direito à intimidade. Aqui um problema e uma constatação. Problema: que figura não é pública? Que indivíduo não participa da esfera pública? Constatação: como observa o professor de direito civil Anderson Schreiber (no que considero o melhor artigo entre todos os que li sobre o assunto): “A Constituição de 1988 protege como direitos fundamentais a honra, a imagem e a privacidade de todas as pessoas (art. 5º, inciso X) – sem nenhuma ressalva ou atenuação, registre-se, em relação às chamadas ‘pessoas públicas’”.

Conversando com as pessoas que defendiam imediatamente a liberação das biografias, pude constatar que, para elas, o biografável era sempre o outro (efeito, justamente, da expressão “figura pública”). Questionadas sobre se julgavam que o Estado deveria assegurar que informações privadas de sua vida poderiam se tornar públicas, vacilavam. Ora, que mentalidade é essa, que legisla em causa alheia?

Foi péssimo para o debate que sobre seu centro tenha pairado desde o início (e ainda mais agora) a figura de Roberto Carlos. Os caprichos paranoicos desse histórico obscurantista causaram compreensível resistência geral. Mas a resistência deveria ser ao obscurantismo que ele representa e pratica, e não ao debate, que por definição é o seu contrário.

Radicalismo superficial

Como disse na coluna passada, concluí que, no cômputo de benefícios e prejuízos, no caso específico das biografias, o respeito à vida privada deve ser considerado importantíssimo, mas não decisivo. Penso que um bom equilíbrio seria liberar as biografias não autorizadas junto a um aprofundamento da reflexão sobre os limites entre privado e público e a definição dos parâmetros legais correspondentes. “Em alguns países, por exemplo”, informa Anderson Schreiber, “não se reconhece violação à privacidade ou à honra na menção a dados que já constam de registros públicos (processos judiciais, administrativos etc.), ou já foram divulgados pelo próprio biografado em ocasiões públicas pretéritas, ou, ainda, foram legitimamente obtidas em entrevistas com pessoas identificadas. De outro lado, a transcrição em biografias não autorizadas de trechos de cartas particulares tem sido, em muitos países, considerada violação à privacidade, por infração ao sigilo de correspondência. O mesmo se tem entendido em relação ao uso de dados constantes de prontuários médicos ou de procedimentos sigilosos, ou ainda de informações relativas à intimidade sexual do biografado.”

É essa a discussão que deve ser encaminhada, em vez do tudo ou nada, da histeria das letras de caixa-alta, dos “censores” versus “libertários”. Geralmente, o radicalismo é superficial. O ponto do meio é mais profundo.

******

Francisco Bosco é colunista do Globo